quinta-feira, 19 de março de 2015

O ANO DA GRANDE VIRAGEM PARA ANGOLA – II



Martinho Júnior, Luanda (textos anteriores

5 – Sair de Angola em plena colonização, era quantas vezes, para os jovens angolanos que viveram 1961 e toda a década de 60 (bem como a primeira metade da década de 70), o primeiro acto patriótico e revolucionário, uma verdadeira passagem para a maioridade, mas a vida não se podia esgotar aí, pois os desafios impunham-se individual e colectivamente, em prol da Libertação do continente e da própria Angola, impunham-se, duma forma ou de outra, às trajectórias de cada um e era sempre premente optar.

O simples acto de estudar nas condições do exílio, era uma das respostas possíveis perante a multiplicidade dos desafios, mas as respostas mais esclarecidas, tarimbadas pela dialéctica da vida, obrigaram muitos até a abandonarem os estudos, por que para a uma grande parte da juventude participar na Luta de Libertação era algo que os mobilizava e os fazia deixar para um segundo plano os projectos individuais!

O ambiente em África, tinha-se alterado profundamente com as independências e havia muitos estados e entidades que eram, consciente e resolutamente, incondicionais apoios não só em relação aos estudantes, refugiados e suas aspirações, mas para com aqueles que entendiam não haver outra alternativa senão “dar o corpo ao manifesto” na e pela Luta armada.

Os jovens que chegavam ao exterior a partir das mais diversas vias e das mais diversas conjunturas, tiveram opções distintas: uns continuaram os seus estudos sem nunca ingressarem nessa Luta, outros preencheram as mais diversas organizações, desde a CONCP, à CVAAR, à UNTA, para além das organizações sócio-políticas elas mesmas empenhadas na Luta, como a UPA e o MPLA.

Assim sendo, ingressar nas fileiras era a confirmação do acto revolucionário e patriótico, até por que em muitos países africanos essa opção era tida como a única possível, legítima, digna e perfeitamente justificável!
  
6 – Países como a Argélia, a Tunísia, Marrocos, a Guiné Conacry ou o Gana, foram entre outros e a seu tempo, suportes que permitiram a formação guerrilheira.

A Argélia destacou-se mesmo antes de chegar à independência alcançada a ferro e fogo por que, em função da conjuntura histórica, se tornou no cadinho que permitiu contactos e troca de experiências de jovens revolucionários provenientes sobretudo de três continentes: África, América Latina e da própria Europa.

A Frente Nacional de Libertação da Argélia, conforme o compêndio histórico relativo a 1961 fez lembrar e bem, considerava “que a abertura de novas frentes de combate constituía uma base de apoio para a sua própria luta”…
  
7 – Alguns quadros da Frente Nacional de Libertação da Argélia, como Frantz Fanon, eram provenientes da América Latina, eles próprios descendentes de escravos de origem africana, pelo que a inteligência na compreensão dos fenómenos e as energias que se levantavam, eram movidas pela ânsia em levar a cabo resgates históricos que se impunham de há séculos, que se impunham colocando desde logo a nu a psicologia tanto do colonizador como do colonizado, como fundamento da própria legitimidade de Luta de Libertação para todos aqueles que sofriam a opressão!

Assim foi que em 1962, já com a Argélia independente, em Marnia passaram a ser viabilizados vários tipos de apoio e a ser formados muitos guerrilheiros.

Na Mensagem que Ernesto Che Guevara endereçou mais tarde (publicada no dia 16 de abril de 1967 por via da Tricontinental), havia traços dessa saga: … “cómo podríamos mirar el futuro de luminoso y cercano, si dos, tres, muchos Viet-Nam florecieran en la superficie del globo, con su cuota de muerte y sus tragedias inmensas, con su heroísmo cotidiano, con sus golpes repetidos al imperialismo, con la obligación que entraña para éste de dispersar sus fuerzas, bajo el embate del odio creciente de los pueblos del mundo!

Y si todos fuéramos capaces de unirnos, para que nuestros golpes fueran más sólidos y certeros, para que la ayuda de todo tipo a los pueblos en lucha fuera aún mas efectiva, qué grande sería el futuro, y qué cercano!”…

… e Ernesto Che Guevara passou por Marnia em Julho de 1963, juntando suas convicções profundas à Luta de Libertação em África determinante na Luta contra o colonialismo e, mais tarde, na Luta contra o “apartheid” e suas sequelas!

Foi nesse ambiente que se formaram alguns dos jovens guerrilheiros e por isso não é de estranhar suas profundas convicções, seus princípios e a sua indómita vontade de levar por diante a Luta que se alimentava da legitimidade dos povos africanos para assumirem por inteiro a possibilidade de um dia se tornarem autores do seu próprio destino!
  
8 – Logo nas primeiras fornadas de guerrilheiros da Luta de Libertação em Angola, se integraram muitos daqueles cuja trajectória de vida tinha passado pelas próprias Forças Armadas Portuguesas, o que nos introduz um tema bastante rico, que tem sido muito pouco explorado pelos historiadores: que tipo de contradições se foi acumulando dentro dos próprios instrumentos de poder fascista e colonial, cuja radicalização poderia levar não só à deserção, mas também ao alinhamento incondicional de tantos, de armas na mão, ou noutras frentes (incluindo dentro das FAP e apesar da NATO), no sentido de potenciar o amplo espectro de acção e influência do Movimento de Libertação em África?

Como essas contradições internas contribuíram para o desgaste dos instrumentos de poder do Estado Novo, ao ponto de, entre outras evidências, haver a explosão libertária do 25 de abril de 1974 em Portugal?

Muito recentemente, o General Miguel Júnior que publicou “Guerra colonial – o envolvimento das Forças de Defesa da África do Sul, no Sudeste de Angola – 1966-1974” (“Um estudo de contra-insurreição”), pelo recurso a relatórios das SADF em relação às Forças Armadas Portuguesas, abriu um pouco a janela nessa direcção, não indo mais longe por que ficou pelo realce do facto dos oficiais sul-africanos terem um pensamento estruturalista incapaz de perceber o ambiente académico que se viveu em Portugal no ocaso do Estado Novo, incapaz de recorrer à dialéctica na observação dos fenómenos e por isso limitados na radiografia e na análise ampla e bem documentada que fizeram da actuação dos instrumentos de poder colonial em Angola, na época a que se reportam e tudo isso apesar dos privilegiados acessos que tiveram.

Os oficiais sul-africanos, se bem que preparados para a contra-subversão, subvalorizaram, ou nem sequer tiveram minimamente em conta a análise dos contraditórios (muitos ocorridos em cenários que também ultrapassavam o território por eles observado) e por isso não souberam prever a eclosão do 25 de abril, algo que aliás escapou também a muitos outros, inclusive dentro da própria NATO…
  
9 – O compêndio histórico da ATD, traz-nos em relevo muitas evidências humanas das contradições que existiam quer na sociedade de então, quer dentro dos próprios instrumentos de poder do Estado Novo fascista e colonial, que resultaram por exemplo em muitas deserções de angolanos; cito algumas delas:

- Africano Neto (alferes Miliciano) e médico;

- José Rodrigues Ferreira (1º cabo de artilharia);

- Tomás Ferreira “tornar-se-ia o primeiro Comandante das Milícias do MPLA”;

- Henrique Teles Carreira, “Iko” (Comandante na guerrilha e o primeiro Ministro da Defesa da Angola independente);

- Benigno Vieira Lopes (Ingo), general e membro da “Associação Tchiweca de Documentação”…

O Movimento de Libertação em África, pelas contradições que foi gerando na sociedade portuguesa, como nos instrumentos de poder do Estado Novo, pode-se considerar como um factor de liberdade que transcendeu África e América Latina e fez-se repercutir em alterações sócio-políticas profundas pelo menos nas periferias da Europa e da NATO!...

Estudo histórico algum de empenhamento em termos de contra-subversão deveria perder de vista a análise dos factores contraditórios dentro das sociedades que fossem envolvidas por tais tensões, nem da evolução dos múltiplos sectores de vida nessas sociedades, sobretudo sectores componentes dos instrumentos de poder de estado!

Em relação ao fascismo, ao colonialismo, ao “apartheid” e às suas respectivas sequelas, nada há que os possa justificar e por isso se tornaram tão dignos os exemplos daqueles que assumiram precisamente a opção contraditória, no caso de 1961, ao poder do Estado Novo.

O compêndio “1961 – Memória dum ano decisivo” está recheado de exemplos de muitos que assumiram quantas vezes duma forma heróica e sacrificada essa contradição, sem esgotar a libertária torrente humana de então mas abrindo caminho para explorar esse tema imenso muito para lá dos seus próprios intervenientes e suas trajectórias, algo que aliás não se pode deixar de ter bem presente nos dias de hoje, até por que, quando o MPLA alcançou finalmente a independência, foi a juventude empenhada na Luta que garantiu a soberania, a sua preservação e a sua continuidade contra o “apartheid” e contra as sequelas a que me tenho referido, ainda que houvessem alterações substanciais de época para época no carácter do aparelho de estado…
  
10 – … Hoje, sobretudo a juventude pode e deve ser o garante da Luta contra o subdesenvolvimento crónico que em África advém do passado, num longo processo que se tem agora e durante as próximas décadas a oportunidade de travar, dando seguimento lógico à história da Libertação em África, onde se inscreve a Luta de Libertação Nacional!

Angola tem rumo numa lógica distinta, com sentido de vida, pelo que a responsabilidade histórica deve ser entendida como constante e determinante nos esforços de resgate que deverão nortear as gerações presentes e futuras em benefício de todo o povo angolano, conforme à responsabilidade e à determinação cujo exemplo se bebe no passado ainda próximo “que estamos com ele”!

Essa é uma lição que se descobre por via de muitos contributos, entre eles o contributo inestimável e tão responsável da ATD! 

Foto recolhida do compêndio “1961 – Memória dum ano decisivo” – Campo de Marnia /Argélia (julho de 1963). Da esquerda para a direita: Benchehida (argelino); João Pedro Camilo (EPLA); Ernesto Che Guevara; Sala Hadji (FNL); Augusto Germano Araújo (EPLA); Benigno Vieira Lopes, “Ingo” (EPLA); combatente argelino – foto cedida por B. Vieira Lopes.

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