Nunca
houve tantos afroamericanos em postos de governo. Mas revolta de Baltimore
revela que, apesar disso, desigualdade, preconceito e discriminação
persistem
Keeanga-Yamahtta
Taylor, no In These Times – Outras Palavras - Tradução Inês
Castilho
Este
ano marca o 50º aniversário de vários dos mais significativos eventos da Luta
pela Liberdade Negra nos Estados Unidos, nos anos 1960s. Dois anos atrás,
celebramos a Marcha sobre Washington; ano passado rememoramos o Ato dos
Direitos Civis de 1964, que acabou com o apartheid de Jim Crow no Sul.
Este ano, já assistimos às comemorações do aniversário do Voting
Rights Act (Leis dos Direitos de Voto), e o fim do verão
norte-americano verá o 50º aniversário do Watts Rebellion (Tumultos
de Watts) em Los Angeles.
Claro,
o país já havia visto, em 1964, rebeliões em Rochester, Nova York; Filadélfia;
e Trenton, Nova Jersey, para nomear só algumas cidades, mas até aquele momento
Watts não tinha precedentes em escala, danos, mortes e fúria absoluta no verão
de 1965. O levante no sul central de Los Angeles representou uma dura conclusão
da fase não-violenta do movimento.
As
cáusticas fileiras de fumaça que pairam sobre a cidade de Baltimore são uma
dura lembrança do passado recente da década de 1960. Mas os levantes pela morte
de Freddie Gray, de 25 anos, vistos naquela cidade semana passada não são
simplesmente repetição de acontecimentos que tiveram lugar há cinquenta anos.
As
desigualdades que incendiaram centenas de cidades norte-americanas nos
anos 1960s ainda existem e têm, na verdade, se aprofundado durante o último
meio século. Então como agora, violência generalizada e assédio policial definem
a humilhação e impotência da vida de milhões de afro-americanos pobres e da
classe trabalhadora.
Mas
o que torna o levante de Baltimore diferente daqueles de uma era anterior é que
os ataques perversos aos afro-americanos ocorreram num momento de poder
político negro sem precedentes.
A
menos de 60 quilômetros de Baltimore, na capital da nação, reside o primeiro
presidente afro-americano do país. Há 43 membros do Congresso e dois senadores
negros – o mais alto número de parlamentares negros da história
norte-americana. E exatamente quando a parte oeste de Baltimore explodia contra
o assassinato de Freddie Gray pela polícia, Loretta Lynch tornava-se a primeira
mulher negra indicada como procuradora geral.
Este
não é apenas um fenômeno nacional; ele se reflete também na política local. Em
Baltimore, os afro-americanos controlam virtualmente todo o aparato político. A prefeitaStephanie
Rawlings-Blake e o comissário de
polícia Anthony Batts têm sido os rostos mais notáveis do poder político em
Baltimore nas últimas semanas. Mas a Câmara Municipal de Baltimore tem quinze
membros, e a maioria – oito – são afro-americanos, inclusive seu presidente. O
superintendente da rede pública de educação e todos os conselheiros do serviço
habitacional do município são afro-americanos. Por todos os Estados Unidos,
milhares de funcionários negros eleitos estão governando muitas das cidades e
subúrbios do país.
Nesse
sentido, os acontecimentos de Baltimore são dessemelhantes dos ocorridos em
Ferguson, Missouri, no último verão. Lá, o pequeno subúrbio ao norte de Saint
Louis tinha uma população majoritariamente negra governada principalmente por
brancos suburbanos, e a carência de poder e representação política dos negros
tornou-se o fio narrativo das explicações populares para o que deu errado.
Eleger afro-americanos para cargos políticos em Ferguson tornou-se, assim, um
ponto focal para muitos ativistas locais e nacionais.
Mas,
se o assassinato de Mike Brown e a rebelião em Ferguson eram uma reminiscência
do velho Jim Crow, então o assassinato de Freddie Gray e o levante de Baltimore
são simbólicos do novo poder negro.
Na
verdade, a busca de poder eleitoral negro tornou-se uma das principais
estratégias que emergiram da era do “Black Power”, o Poder Negro. No fim dos
anos 1960, tornaram-se mais intensos os apelos pelo “controle comunitário”
sobre as cidades em que os negros viviam. Esses apelos faziam sentido: a
“Grande Migração” trouxe milhões de afro-americanos para as cidades e ajudou a
transformar as preocupações dos negros em discussões políticas (embora raras
vezes em ação). Em muitas cidades, a demografia metropolitana mudou, à medida
em que os negros se mudavam para elas e os brancos as abandonavam.
O
controle político branco de cidades crescentemente negras exacerbou as tensões
existentes sobre as condições daqueles municípios. Em cidades como Chicago, a
máquina de clientelismo poderia puxar alguma participação negra, mas isso
dificilmente se assemelhava a qualquer real controle político ou econômico
negro sobre a infraestrutura da cidade. A destruição e a instabilidade causadas
pelos levantes urbanos ao longo da década fizeram avançar a noção, entre as
elites, de que talvez mais propriedades e controle negro nas cidades pudesse
ajudar a acalmar a rebelde população negra.
Hoje,
temos mais governantes negros eleitos nos Estados Unidos do que em qualquer
outro momento da história norte-americana. Ainda assim, para a ampla maioria da
população negra, a vida mudou muito pouco. Os funcionários públicos negros
eleitos governaram geralmente do mesmo modo que seus pares brancos, refletindo
todo o racismo, a corrupção e as políticas de favorecimento dos ricos
praticadas em toda a política dominante.
Baltimore
é um exemplo revelador. A prefeita Blake Rawlings pode ser afro-americana, mas,
sob sua liderança, grandes áreas da Baltimore negra permaneceram pobres,
desempregadas e eternamente perseguidas e abusadas pela polícia.
Apenas
nos últimos quatro anos, mais de cem pessoas venceram processos civis contra a
brutalidade da polícia. Durante o mandato de Rawlings-Blake, a cidade foi
forçada apagar 5,7
milhões de dólares para resolver ações cíveis relacionadas à má conduta e
brutalidade policial – quantia que não inclui os 5,8 milhões de dólares que o
município pagou para defender os policiais que abusaram da população negra.
A
despeito da ilegalidade do Departamento de Polícia de Baltimore, a prefeita
reservou seus comentários mais duros para aqueles que se envolveram no levante,
tachando-os de “criminosos” e “bandidos”. Para qualquer pessoa remotamente
informada da história da prefeita Rawlings-Blake, seu ataque às vítimas da
corrupção e da brutalidade policial não seria surpreendente.
Ainda
que injustificados ataques tenham sido amplamente documentados e julgados, um
mês antes dos tumultos a prefeita culpou os homens negros pela violência em Baltimore. Invocando
o ex-prefeito de Nova York Rudy Giuliani,
Rawlings-Blake disse sobre a violência na cidade: “Muitos de nós, na comunidade
negra, nos tornamos complacentes com os crimes de negros contra negros. …
Enquanto muitos de nós estão dispostos a marchar e protestar e tornar-se ativos
diante da má conduta policial, muitos de nós fazem vista grossa quando nós
mesmos nos matamos.”
Ignorando
a longa história de racismo e a epidemia de terrorismo policial que atormentam
a vida dos negros em Baltimore, a prefeita, como tornou-se típico da elite
política negra, culpou os afro-americanos que vivem na cidade pelos problemas
lá existentes.
A
maior diferença entre a vida hoje e 50 anos atrás, em cidades como Baltimore, é
não apenas a existência de um estrato político negro que governa e gerencia boa
parte da América negra, mas também a maneira como essa poderosa classe política
negra ajuda a desviar o sério questionamento sobre a desigualdade estrutural e
o racismo institucional. Ao contrário, os líderes dessa classe política
ressuscitam velhas e convenientes narrativas que colocam a cultura e as
famílias negras no centro da explicação sobre a persistente desigualdade
racial.
Para
manter a legitimidade dentro do Partido Democrata, considerado como a própria
casa pela maioria desses políticos negros, eles se posicionaram na linha do
partido que enfatiza a responsabilidade pessoal e rejeita aumentar impostos de
modo a conseguir fundos para programas sociais desesperadamente necessitados.
E
governantes negros eleitos tanto criam quanto ampliam o espaço para brancos
questionarem os hábitos morais dos negros comuns. Quando o presidente Obama, a
prefeita Rawlings-Blake e o procurador geral Lynch se referem aos manifestantes
negros como “arruaceiros” e “criminosos”, os republicanos brancos não precisam
dizer nada.
Os
governantes negros eleitos frequentemente invocam um senso de solidariedade e
familiaridade racial, e falam sobre a vida dos negros pobres e da classe
trabalhadora – apenas para, então, castigar ou culpar os afro-americanos comuns
pelas condições de deterioração de seus próprios bairros.
Isso
não é apenas produto do desprezo pelos negros pobres, mas também resultado das
pressões de governar grandes cidades numa era de austeridade. As cidades têm
sido levadas a concorrer entre si para atrair capital, resultando numa corrida
que acaba por cortar impostos e essencialmente excluir aqueles que necessitam
dos serviços sociais.
O
foco no fracasso individual e falhas morais (ao invés de em desigualdades
estruturais) justifica cortes de orçamento e redução da esfera pública que
essas elites políticas negras são acusadas de realizar. O que os
afro-americanos em cidades de todo o país necessitam, de acordo com essa
narrativa, é de transformação pessoal, não de expansão dos serviços sociais.
As
práticas dos políticos negros se dão no mesmo terreno que as de seus pares
brancos. Eles competem para manter-se nas boas graças de doadores ricos,
enquanto maximizam as conexões políticas para reforçar seus cofres de campanha.
Também contam com policiamento agressivo para compensar os problemas sociais
criados quando a pobreza, os serviços sociais destruídos e a falta de
perspectivas de sucesso na sociedade norte-americana convergem e,
eventualmente, entram em combustão.
O
levante de Baltimore cristalizou o aprofundamento da divisão política e de
classe na América negra. Esse é um novo desdobramento da luta pela liberdade
dos negros, que historicamente têm se unido cruzando linhas de classe para
lutar contra o racismo.
Da
Casa Branca às prefeituras de todo o país, o crescimento e maturação da classe
política negra a tem colocado numa posição de gerenciar as crises que continuam
a se desenrolar nos bairros negros. Os operadores políticos negros não oferecem
aos afro-americanos comuns soluções melhores que qualquer outro governante
eleito.
Em
Ferguson e agora em Baltimore, é o movimento nas ruas que está trazendo a
atenção global para o racismo e a desigualdade que ainda prosperam na sociedade
norte-americana – e não rostos negros em altos cargos.
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