Teresa
de Sousa – Público, opinião
Depois
da perda do Império, Londres conseguiu encontrar o seu lugar na Europa. Mais
uma razão para olhar com perplexidade esta viragem para o velho isolacionismo
1.
Não é novidade para ninguém que a relação dos britânicos com a União Europeia
(e, antes, com a CEE) nunca foi fácil. Chegaram atrasados. Apresentaram por
duas vezes o pedido de adesão (nos anos 60), que o general De Gaulle se
encarregou de vetar. Tiveram de esperar pelo seu afastamento, em 1968, para
finalmente conseguirem entrar, em 1973. Em 1975, com os trabalhistas no Governo
profundamente divididos quanto à Europa, o tratado de adesão foi sujeito a
referendo, ganhando por larga maioria. Desde então, o pragmatismo britânico
acabou sempre por prevalecer. Sair não era uma opção, nem sequer para Margaret
Thatcher. Winston Churchill foi o primeiro a defender a urgência de “uma
espécie de Estados Unidos da Europa”, num célebre discurso em Zurique depois de
vencer a guerra e de perder as eleições. O Reino Unido ficaria de fora porque,
mesmo que exangue e endividado, continuava à cabeça de um Império.
A
adesão à CEE resultou de uma necessidade económica. Thatcher criticava
duramente os seus parceiros europeus, detestava as instituições de Bruxelas,
desconfiava dos alemães, mas foi uma impulsionadora do Mercado Único e
coube-lhe a decisão de colocar a libra no Mecanismo das Taxas de Câmbio do
Sistema Monetário Europeu (o prelúdio da moeda única). John Major negociou
Maastricht. Tony Blair foi, porventura, o mais europeísta dos
primeiros-ministros britânicos desde a II Guerra. Tinha uma visão do papel do
seu país no mundo que passava por estar no centro das decisões de Bruxelas,
ganhando uma enorme capacidade de influência. Negociou a malograda Constituição
europeia. Prometeu sujeitá-la a referendo. Foi poupado a esse risco, quando os
franceses e os holandeses a rejeitaram. Thatcher ou Blair nunca puseram em
causa a aliança com os EUA, uma espécie de princípio sagrado do lugar do Reino
Unido no mundo. Blair via o seu país como uma ponte entre os dois lados do
Atlântico.
2.
Em 2010, David Cameron chegou a Downing Street com uma visão “moderada” sobre a
Europa. Em face da radicalização antieuropeia do seu partido e do crescimento
do UKIP, com a sua agenda contra a Europa e contra os imigrantes, resolveu ir
subindo a parada. Começou por retirar ostories do PPE, que representa os
partidos de centro-direita, incluindo o da chanceler alemã, para aderir a um
grupo das direitas que pouco pesa no Parlamento Europeu. Em 2012, vetou o
Tratado Orçamental, ficando apenas na companhia da República Checa. Opôs-se ferozmente
à escolha do novo presidente da Comissão, Jean-Claude Juncker. Finalmente, em
2013, anunciou um referendo in/out para 2017, e exigiu negociar com
Bruxelas a devolução de poderes a Westminster, mesmo que fosse preciso
renegociar o Tratado de Lisboa. “O problema é que Cameron ainda disse muito
pouco sobre quais são as medidas que quer negociar”, diz o Guardian.
Juncker já lhe respondeu: “Quero um acordo justo com o Reino Unido, mas o Reino
Unido não pode impor a sua agenda exclusiva aos outros 27 países”.
3.
A novidade da política externa de Cameron é que não se trata da tradicional
oposição entre os Estados Unidos e a Europa. Em Washington, olha-se com cada
vez maior preocupação a indisponibilidade britânica para manter a “relação
especial” criada pela II Guerra. A alternativa passou a ser, cada vez mais,
falar com Berlim. Robin Renwick, antigo embaixador britânico em Washington,
citado por John Carlin, jornalista e escritor britânico, alerta para o risco de
a Grã-Bretanha “estar a retirar-se do mundo”. Na crise ucraniana, “é uma
ausência impensável há dez anos atrás”. Angela Merkel e François Holande
lideraram o processo. “A participação no combate ao Estado Islâmico reduz-se a
um voo por dia, a partir de Chipre, usando um velho caça-bombardeiro Tornado”,
acrescenta o embaixador. A Economist sublinha que Londres tem apenas
três militares no Iraque para ajudar a conter o Estado Islâmico na região
curda. “Espanha e Itália têm 300 cada uma”. A excepção pode ser a crise com a
Rússia, onde os britânicos reforçaram a sua presença no quadro da NATO para
tranquilizar os Bálticos e a Polónia. Xenia Wickett, investigadora da Chatham
House, tem uma visão um pouco mais moderada. “A questão ainda não é que a
Grã-Bretanha deixou de ser uma potência”, como se viu na Líbia ou no
Afeganistão. “A questão é se vai continuar a sê-lo”. “Sem a Europa e sem os
Estados Unidos, é difícil que o Reino Unido se mantenha no escalão mais alto do
poder mundial. Pode manter alguma relevância, mas perderá o seu estatuto
actual”.
No
ano passado, durante a cimeira da NATO no País de Gales, Cameron foi um
veemente defensor da meta dos 2% do PIB para os orçamentos da defesa, que Obama
pede insistentemente aos aliados europeus. Hoje, o seu orçamento já está abaixo
(ligeiramente) dessa meta, que a França mantém. O chefe do Estado-Maior
americano Raymond Odierno foi recentemente a Londres dizer, preto no branco,
que estes cortes são vistos no Pentágono como um sinal muito negativo. “Antes,
podíamos contar com uma brigada (5.000 homens) para combater ao nosso lado.
Hoje, talvez só com um pelotão, que terá de ser integrado nas nossas divisões”.
Cameron contra-argumentou dizendo que vai renovar a frota de submarinos
nucleares.
4.
Robin Niblett, o director da Chatham House, reconhece os efeitos políticos do
referendo. “Não há dúvida de que a súbita convocação do referendo enfraqueceu a
Grã-Bretanha na Europa. Dá a impressão que está sempre com uma mão na porta”,
diz. Do lado europeu, toda a gente reconhece o óbvio: uma Europa sem o Reino
Unido, num mundo em profunda convulsão, seria mais fraca, menos influente e
mais desequilibrada. A Alemanha quer que a Grã-Bretanha fique, porque é o seu
maior aliado na defesa dos mercados abertos contra a pulsão proteccionista de
vários parceiros europeus, incluindo a França. A própria França assinou um
Tratado de Defesa com o Reino Unido há quatro anos que prevê a utilização
conjunta dos seus porta-aviões e a cooperação na renovação dos dispositivos
nucleares.
Em
Bruxelas, a questão é quase tabu. Diz Katya Adler, editora da BBC World para a
Europa, que basta mencionar as eleições britânicas para que o interlocutor se
afaste ou mude de assunto. Mas também há a consciência de que uma saída do
Reino Unido envolveria sérios problemas para Londres. “Se sair da Europa, teria
uma grande dificuldade em negociar uma solução fácil e vantajosa para o acesso
ao Mercado Único”, diz Mark Leonard, do European Council on Foreign Relations.
O equilíbrio político da própria União seria afectado, sobretudo para os países
que valorizam mais a dimensão transatlântica. A Europa seria mais continental,
o que, neste caso, significaria ainda mais alemã.
Dean
Ashton, o secretário de Estado americano que negociou as novas estruturas
políticas e económicas mundiais no pós-guerra e autor do célebre livro Present
at the Creation, dizia alguns anos mais tarde que “a Grã-Bretanha perdeu
um Império e ainda não conseguiu encontrar um papel”. A realidade provou que
Londres conseguiu encontrar o seu lugar na Europa. Mais uma razão para olhar
com perplexidade esta viragem para o velho isolacionismo. “Há nevoeiro no
canal, o continente está isolado”.
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