quinta-feira, 7 de maio de 2015

HÁ NEVOEIRO NO CANAL



Teresa de Sousa – Público, opinião

Depois da perda do Império, Londres conseguiu encontrar o seu lugar na Europa. Mais uma razão para olhar com perplexidade esta viragem para o velho isolacionismo

1. Não é novidade para ninguém que a relação dos britânicos com a União Europeia (e, antes, com a CEE) nunca foi fácil. Chegaram atrasados. Apresentaram por duas vezes o pedido de adesão (nos anos 60), que o general De Gaulle se encarregou de vetar. Tiveram de esperar pelo seu afastamento, em 1968, para finalmente conseguirem entrar, em 1973. Em 1975, com os trabalhistas no Governo profundamente divididos quanto à Europa, o tratado de adesão foi sujeito a referendo, ganhando por larga maioria. Desde então, o pragmatismo britânico acabou sempre por prevalecer. Sair não era uma opção, nem sequer para Margaret Thatcher. Winston Churchill foi o primeiro a defender a urgência de “uma espécie de Estados Unidos da Europa”, num célebre discurso em Zurique depois de vencer a guerra e de perder as eleições. O Reino Unido ficaria de fora porque, mesmo que exangue e endividado, continuava à cabeça de um Império.

A adesão à CEE resultou de uma necessidade económica. Thatcher criticava duramente os seus parceiros europeus, detestava as instituições de Bruxelas, desconfiava dos alemães, mas foi uma impulsionadora do Mercado Único e coube-lhe a decisão de colocar a libra no Mecanismo das Taxas de Câmbio do Sistema Monetário Europeu (o prelúdio da moeda única). John Major negociou Maastricht. Tony Blair foi, porventura, o mais europeísta dos primeiros-ministros britânicos desde a II Guerra. Tinha uma visão do papel do seu país no mundo que passava por estar no centro das decisões de Bruxelas, ganhando uma enorme capacidade de influência. Negociou a malograda Constituição europeia. Prometeu sujeitá-la a referendo. Foi poupado a esse risco, quando os franceses e os holandeses a rejeitaram. Thatcher ou Blair nunca puseram em causa a aliança com os EUA, uma espécie de princípio sagrado do lugar do Reino Unido no mundo. Blair via o seu país como uma ponte entre os dois lados do Atlântico.

2. Em 2010, David Cameron chegou a Downing Street com uma visão “moderada” sobre a Europa. Em face da radicalização antieuropeia do seu partido e do crescimento do UKIP, com a sua agenda contra a Europa e contra os imigrantes, resolveu ir subindo a parada. Começou por retirar ostories do PPE, que representa os partidos de centro-direita, incluindo o da chanceler alemã, para aderir a um grupo das direitas que pouco pesa no Parlamento Europeu. Em 2012, vetou o Tratado Orçamental, ficando apenas na companhia da República Checa. Opôs-se ferozmente à escolha do novo presidente da Comissão, Jean-Claude Juncker. Finalmente, em 2013, anunciou um referendo in/out para 2017, e exigiu negociar com Bruxelas a devolução de poderes a Westminster, mesmo que fosse preciso renegociar o Tratado de Lisboa. “O problema é que Cameron ainda disse muito pouco sobre quais são as medidas que quer negociar”, diz o Guardian. Juncker já lhe respondeu: “Quero um acordo justo com o Reino Unido, mas o Reino Unido não pode impor a sua agenda exclusiva aos outros 27 países”.

3. A novidade da política externa de Cameron é que não se trata da tradicional oposição entre os Estados Unidos e a Europa. Em Washington, olha-se com cada vez maior preocupação a indisponibilidade britânica para manter a “relação especial” criada pela II Guerra. A alternativa passou a ser, cada vez mais, falar com Berlim. Robin Renwick, antigo embaixador britânico em Washington, citado por John Carlin, jornalista e escritor britânico, alerta para o risco de a Grã-Bretanha “estar a retirar-se do mundo”. Na crise ucraniana, “é uma ausência impensável há dez anos atrás”. Angela Merkel e François Holande lideraram o processo. “A participação no combate ao Estado Islâmico reduz-se a um voo por dia, a partir de Chipre, usando um velho caça-bombardeiro Tornado”, acrescenta o embaixador. A Economist sublinha que Londres tem apenas três militares no Iraque para ajudar a conter o Estado Islâmico na região curda. “Espanha e Itália têm 300 cada uma”. A excepção pode ser a crise com a Rússia, onde os britânicos reforçaram a sua presença no quadro da NATO para tranquilizar os Bálticos e a Polónia. Xenia Wickett, investigadora da Chatham House, tem uma visão um pouco mais moderada. “A questão ainda não é que a Grã-Bretanha deixou de ser uma potência”, como se viu na Líbia ou no Afeganistão. “A questão é se vai continuar a sê-lo”. “Sem a Europa e sem os Estados Unidos, é difícil que o Reino Unido se mantenha no escalão mais alto do poder mundial. Pode manter alguma relevância, mas perderá o seu estatuto actual”.

No ano passado, durante a cimeira da NATO no País de Gales, Cameron foi um veemente defensor da meta dos 2% do PIB para os orçamentos da defesa, que Obama pede insistentemente aos aliados europeus. Hoje, o seu orçamento já está abaixo (ligeiramente) dessa meta, que a França mantém. O chefe do Estado-Maior americano Raymond Odierno foi recentemente a Londres dizer, preto no branco, que estes cortes são vistos no Pentágono como um sinal muito negativo. “Antes, podíamos contar com uma brigada (5.000 homens) para combater ao nosso lado. Hoje, talvez só com um pelotão, que terá de ser integrado nas nossas divisões”. Cameron contra-argumentou dizendo que vai renovar a frota de submarinos nucleares.  

4. Robin Niblett, o director da Chatham House, reconhece os efeitos políticos do referendo. “Não há dúvida de que a súbita convocação do referendo enfraqueceu a Grã-Bretanha na Europa. Dá a impressão que está sempre com uma mão na porta”, diz. Do lado europeu, toda a gente reconhece o óbvio: uma Europa sem o Reino Unido, num mundo em profunda convulsão, seria mais fraca, menos influente e mais desequilibrada. A Alemanha quer que a Grã-Bretanha fique, porque é o seu maior aliado na defesa dos mercados abertos contra a pulsão proteccionista de vários parceiros europeus, incluindo a França. A própria França assinou um Tratado de Defesa com o Reino Unido há quatro anos que prevê a utilização conjunta dos seus porta-aviões e a cooperação na renovação dos dispositivos nucleares.

Em Bruxelas, a questão é quase tabu. Diz Katya Adler, editora da BBC World para a Europa, que basta mencionar as eleições britânicas para que o interlocutor se afaste ou mude de assunto. Mas também há a consciência de que uma saída do Reino Unido envolveria sérios problemas para Londres. “Se sair da Europa, teria uma grande dificuldade em negociar uma solução fácil e vantajosa para o acesso ao Mercado Único”, diz Mark Leonard, do European Council on Foreign Relations. O equilíbrio político da própria União seria afectado, sobretudo para os países que valorizam mais a dimensão transatlântica. A Europa seria mais continental, o que, neste caso, significaria ainda mais alemã. 

Dean Ashton, o secretário de Estado americano que negociou as novas estruturas políticas e económicas mundiais no pós-guerra e autor do célebre livro Present at the Creation, dizia alguns anos mais tarde que “a Grã-Bretanha perdeu um Império e ainda não conseguiu encontrar um papel”. A realidade provou que Londres conseguiu encontrar o seu lugar na Europa. Mais uma razão para olhar com perplexidade esta viragem para o velho isolacionismo. “Há nevoeiro no canal, o continente está isolado”.

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