segunda-feira, 1 de junho de 2015

AFROCAPITALISMO, DESENVOLVIMENTO E LUTA DE CLASSES EM ÁFRICA (Parte 3)



Rui Peralta, Luanda

Classes sociais?

Os factores de diferenciação social que podem determinar a formação de categorias com capacidade de tornarem-se grupos actuantes são de diversa ordem e de diferentes níveis da esfera social. Origem familiar, nível de rendimentos, propriedade de bens materiais, profissão, actividade económica, nível educacional, religião praticada ou assimilada, características étnicas, propriedade, graus de acesso aos detentores do Poder, são factores que, combinados em determinadas conjunturas determinam a posição das pessoas e das famílias na hierarquia social. São factores de "status" social que associados aos factores gerados pelos seus interesses podem suscitar a formação de classes.

A expressão classe tem, assim, conteúdos variáveis. Umas vezes podem referir grupos de interesses económicos análogos e noutras referem grupos de "status" semelhante. Ora estas realidades são autónomas, pois expressam diferentes estruturas do Poder numa determinada sociedade. A esfera económica, a social e a legal são estruturas relacionadas mas com conteúdo específico. As diferenciações na esfera económica exprimem-se em classes e as da esfera social em grupos de status. Como estas esferas relacionam-se entre si e criam as suas próprias dinâmicas socioeconómicas as diferenças entre classe e grupo de status diluem-se na dinâmica social, aparecendo muitas vezes como extractos sociais, grupos socioprofissionais, ou mesmo grupos de Poder.

Pode falar-se de classe quando os elementos de um grupo têm em comum um componente causal próprio, característico, das suas oportunidades de vida. Este componente é exclusivamente formado por interesses económicos específicos e encontra-se representado no mercado, seja como mercadoria seja como trabalho, ou seja a classe é definida por interesses económicos, sendo, por isso, uma situação do mercado.

As situações fundamentais de classe são definidas pela detenção ou não detenção de propriedade. Estas são as categorias básicas. E tanto no aglomerado proprietário como no não-proprietário (proletário) há que distinguir e diferenciar grupos, referenciados -no caso dos aglomerados proprietários -  pelo tipo de bens, volume de dinheiro movimentado ou em sua posse, edifícios, terras, gado, maquinas, capital financeiro, bens de produção, rendimentos; na categoria dos não-proprietários há que diferenciar o tipo de serviços e a forma como são prestados.

Apesar de existirem múltiplos interesses e uma multiplicidade de cruzamentos de interesses, o número de classes numa determinada sociedade é limitado. Isto porque as classes funcionam como plataformas de interesses inter-relacionados o que conduz à estruturação das relações estabelecidas na classe (relações de classe).

O factor principal dessa estruturação é a mobilidade social existente, tanto ao nível geracional como ao nível individual. São os obstáculos à mobilidade que consolidam os indivíduos em grandes categorias, ou em plataformas categóricas, perpetuando condições de vida semelhantes de uma geração para outra. A propriedade dos meios de produção, a posse de habilitações educacionais e/ou técnicas e a força de trabalho manual são as três grandes capacidades básicas de mercado que mais influenciam os mecanismos de mobilidade social.

Também os factores da estruturação das relações de classe (divisão de trabalho no seio da empresa; relações hierárquicas e a influencia dos modelos de consumo definidos pelos rendimentos) têm de ser levados em conta na afirmação das classes e nas diferenciações no interior de uma mesma classe. A separação entre trabalho manual e não-manual, a diferenciação de funções, o tipo de tarefas são elementos de diferenciação entre trabalhadores assalariados provocados pela divisão de trabalho nas empresas. A hierarquia e o exercício de autoridade dela resultante geram diferenciações entre os trabalhadores. Os trabalhadores de chefia, embora não- proprietários, detêm parcelas relevantes de autoridade e contactam com mais frequência com os proprietários da empresa ou com a administração, o que os separa das camadas mais baixas dos trabalhadores das empresas. Todos estes elementos correspondem a uma diferenciação salarial, responsável por diferentes modelos de consumo.

Além destes factores existe um outro, decisivo mas não directo ou resultante das dinâmicas da estruturação de classe ou do relacionamento de classe, que é o factor da articulação de Poder em cada sociedade e que define os termos da acção do Estado. Por exemplo o "socialismo real" transformou a dinâmica antagónica das relações entre classes em dinâmica não-antagónica, submetendo os trabalhadores a uma taxa de exploração muito mais elevada do que a sua forma concorrente Ocidental e liberal, eliminando as elites de mercado (a burguesia no seu todo) e colocando no seu lugar a burocracia estatal, que com o desenvolvimento do processo de acumulação torna-se em elite activa e autónoma de mercado que,  embora longe do know-how da burguesia, assume os tiques sociais da burguesia (mas não a sua cultura).

Por fim existem dois factores de consciencialização dos interesses específicos de uma determinada classe. A tomada de conhecimento do fenómeno da classe (a percepção de classe) geralmente inicia-se na negação da sua existência. Por exemplo, nas sociedades africanas pós-coloniais é usual negar a existência do antagonismo de classe ou mesmo de classes, embora este ultima caso seja facilmente desmentido pela realidade social e pelo quotidiano de todos os africanos, que sentem na pele as agruras da pobreza, da miséria e da precariedade. Pode-se, também, apontar o exemplo da burguesia na Europa, que formou-se como classe na luta contra as relações tributárias pré-capitalistas, antes de tomar consciência de si própria.

A consciência de classe é a percepção clara e indesmentível de que a sociedade assenta numa dinâmica de classes. Podem ser diferenciados três níveis de consciência de classe: 1) apreensão da situação de pertença a uma classe; 2) a oposição de interesses em relação a outra(s) classe(s); 3) o reconhecimento da possibilidade de uma organização global da mediação institucional do Poder (que marcou o movimento operário nos seculos XIX e XX).

Classes sociais em África

No congresso da Union Generale des Travailleurs d'Afrique Noire (UGTAN) realizado em Conacri durante o mês de Janeiro do ano de 1959 debateu-se de forma apaixonada a existência de classes na sociedade africana, tema que preencheu grande parte dos debates, esquecendo-se os seus participantes que aquele era um congresso sindical, logo um congresso representativo dos interesses de uma determinada classe e que mais importante do que discutir a existência de classes no continente, seria analisar a sociedade africana tal como era na época e saber quais eram as classes existentes naquele período de transição da fase colonial para o pós-colonialismo. Todos referiram a contradição proletariado-burguesia-campesinato pobre, todos debateram a existência ou não de uma burguesia africana ou de um proletariado africano constituído em classe autónoma, todos os delegados ao congresso procuravam saber se em África existiam ou não a estrutura social da Europa Ocidental. No entanto ninguém se lembrou de perguntar se não existiram nas sociedades africanas contradições sociais especifica, diferentes das existentes na Europa Ocidental ou nas sociedades capitalistas avançadas. E esse deveria ser o ponto principal da discussão, o que provavelmente teria efeitos positivos nas futuras governações africanas, pois teria permitido menos erros de administração e leituras mais cuidadas da realidade.

Durante muitos anos (e principalmente na década de 50) o continente africano foi teorizado pelas elites que conduziam na época o processo de libertação nacional que o continente não possuía classes diferenciadas. Mas tornou-se evidente durante as lutas de libertação nacional que o proletariado africano opõe-se efectivamente á burguesia, mas á burguesia francesa, inglesa, belga, portuguesa, etc. e não á burguesia nacional. Mais tarde, na segunda metade da década de 60 já após a maioria das independências africanas realizadas, o proletariado africano trava uma luta contra os jovens Estados e as burocracias nascentes e em menor escala contra as burguesias nacionais (exceptuando algumas regiões do Magreb e a África do Sul onde a luta de classes era travada entre a burguesia africânder (e as camadas descendentes da burguesia colonial britânica) e o proletariado africano (aliado às burguesias nacionais - e sectores da pequena e média-burguesia -africanas negras ou mestiças, hindus, islâmicas e judaicas).

Afrocapitalismo e luta de classes: a situação actual

O continente africano encontra-se numa encruzilhada, atravessado por fortes dinâmicas internas, geradas pelo desenvolvimento ou pela ausência do mesmo, mas todas com origem no atraso estrutural provocado pelo colonialismo e pelas políticas de submissão dos regimes neocoloniais. Esta encruzilhada é também provocada pelas dinâmicas externas que atravessam a economia-mundo e que muitas vezes cruzam-se com as dinâmicas internas, criando turbilhões indefinidos de causa-efeito.

O afrocapitalismo sofre do mesmo mal dos processos anteriores, a negritude, a autenticidade, o socialismo africano ou outras etnosofias. Em última análise são processos frustrados de "arranque" ou "descolagem", de modernização. Estes processos terminam, geralmente, em grandes lodaçais, em pântanos, transformados em mecanismos de manutenção do subdesenvolvimento, ninhos de elites parasitárias, de oligarquias gastadoras e de irracionais e "impensantes" camadas burocráticas.

A grande novidade do afrocapitalismo reside na sua eficácia, qualitativamente superior aos seus antecedentes, agindo sobre os mercados, mais do que sobre o Estado e abrindo caminho para novas formas de percepção e de consciencialização de grupos sociais que actuam de forma autónoma nos mercados africanos. A autonomização dos mercados africanos ê um passo em frente, mas exige profundas alterações por parte do funcionamento dos aparelhos políticos dos Estados africanos. E aqui reside o problema fundamental do afrocapitalismo. Ao pretender transportar as características e dinâmicas africanas para a economia-mundo o afrocapitalismo comete "hara-kiri", acto nada africano. È que a economia-mundo implica aculturação e no caso africano isso é, por enquanto, uma impossibilidade para a maioria das burguesias nacionais.

Do afrocapitalismo nascerá a primeira tentativa de autonomização do mercado africano e pouco mais. As situações de fundo que impedem um processo de desenvolvimento permanecem intactas, adaptando-se ao novo discurso. No entanto alguns mecanismos de negociação (por exemplo acordos entre entidades patronais e sindicais), institucionalização de parcerias sociais e de auscultação tornam-se aos poucos normalizados. Isto será de grande importância para as economias africanas, asfixiadas pelo temor á instabilidade, tornando-se amorfas e estagnadas por sua opção em prol da estabilidade.

As políticas de emprego (causadoras dos índices mais baixos de produtividade da economia mundial) seguidas por um grande número de governos africanos começam a ser desmanteladas, não pelos Estados ou por vontade politica ou exigência dos actores económicos, mas pelo desenvolvimento e autonomização dos mercados africanos. Em alguns casos este processo poderá representar um passo em frente na integração dos mercados africanos, mas será sempre uma integração parcial, devido às distorções dos mercados nacionais.

No sector laboral as marcas do afrocapitalismo serão tão profundas como as dos processos anteriores, tanto os neocoloniais ou os de desenvolvimento não-capitalista, que originaram o estrangulamento dos aparelhos sindicais, colocando-os ao serviço do Estado ou dos aparelhos político-partidários. È possível que a maior autonomia do mercado faça-se sentir nas estruturas sindicais e que estas possam autonomizar-se, sacudindo o jugo do Estado e dos aparelhos partidários. No entanto é sobre os trabalhadores que recairá a dureza das reformas, a extrema precariedade e o desemprego que estes processos comportam.

No fim desta "vaga liberalizadora" ficará a sensação da montanha que pariu um rato. O imenso pântano africano permanecerá, com as suas areias movediças e as águas paradas e fétidas da estagnação, a desertificação continuará a avançar, imparável. O afrocapitalismo não é a solução para retirar o continente da sua posição ultraperiférica. Mas, ao contrário da alternativa - o capitalismo nacional e social, vulgata BRICS - ele obriga a alterações que ultrapassam a cosmética e que são geradores de novas dinâmicas fundamentais para o desenvolvimento e que serão decisivas para o futuro do continente.

Talvez as condições para uma Nova Politica Africana amadureçam neste processo e viabilize os projectos soberanos democráticos e populares que permitam ao Homem Africano reconstruir a sua cidadania em liberdade e enveredar em passo firme pelos trilhos do Futuro.
Fim

Bibliografia
Traoré, A. D. et M'Dela-Mounier L' Afrique mutilée Ed. Taamas, 2012
Weber, M. Essays in Sociology Ed. Routledge & Kegan, London, 1967
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Marx, K. e Engels, F. A Ideologia Alemä Ed. Presença, Lisboa, 1976
Diop, M. Classes et ideologies de classe au Senegal Ed. CC-PAIS, Dacar, 1964
Seytane, S. Materialism dialéctique et materialism historique in Partisan, n° 29-30
En Afrique la montée en puissance de banques locales redistribue les cartes - Liberation, 2015/04/21
Nouvelle Revue Internationale, n°12, 1960

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