Rui Peralta, Luanda
1° Corda - A (falsa) identidade
São
complexos os tempos que correm perante nós. De tal forma complexos que nos
deixam, muitas vezes, mergulhados numa perplexidade angustiante. Ocorrem
fenómenos que parecem confirmar o Eterno Regresso (desafiando a nossa
percepção do Universo e contrariando a infinidade do espaço-tempo) como fossem
produtos de um universo finito, que se repete até á exaustão.
O
ópio da identidade é um desses fenómenos das sociedades actuais. Regresso
às origens, resgate de valores, etnicidade, tradição, raízes culturais
sorumbáticas, que não são raízes, nem são culturais, mas apenas singelas
mercadorias sujeitas á acção da oferta e da procura. Surgem estes fenómenos
como reação às realidades nascentes num mundo que é cada vez mais amplo e
essa reacção comporta, também, outros fenómenos, uns induzidos pelas
oligarquias dominantes, outros pela multidão excluída dos benefícios que as
novas realidades produzem.
Um
ponto comum a todas estas "identidades" é o facto de serem sempre
sociais, colectivas, comunitárias, serem sempre etnia, povo, nação, classe,
grupo, clube e nunca individuo, ou seja nenhuma é intrinsecamente humana,
nenhuma tem algo que seja Eu (o principal elemento formador do Homem e o factor
determinante da condição humana, o fio condutor do livre-arbítrio). A própria
ética é sempre social (como se a única forma de manifestação da ética não fosse
o Individuo, enquanto tal) a moral é sempre social (os "atentados" á
moral são à "moral social" e nunca á moral do individuo e é curioso
que, quanto muito, fala-se em "moral dos indivíduos", no plural e
nunca no singular).
Ao
recear o Eu, o Individuo, as "identidades" que por este pululam criam
o medo de sermos, afinal, todos iguais, diferentemente iguais e igualmente
diferentes. É esse medo que produz as carradas de identidades centradas nos
umbigos próprios (quando se centram nos umbigos alheios geram fenómenos como a
expansão territorial, o colonialismo e o imperialismo), fechadas,
impenetráveis, convertendo a sociedade dos Homens em guetos sociais, habitados
por diversas comunidades étnicas, com os seus espaços definidos, onde cada um
está proibido de passar para o "outro lado", o "lado de
lá", a "terra deles".
Fora
deste contexto fica a identidade individual e o seu cosmopolitismo inato,
própria do judeu errante, do tuaregue, do nómada, da transumância, da gente que
circula pelo mundo, dos contadores de histórias e assimiladores de saberes e
culturas que formam a pluridimensionalidade do universo. É uma luta épica
travada através dos séculos contra os "profetas da identidade", os
criadores de universos unidimensionais e concentracionários.
Neste
conflito, que perdura desde os tempos míticos, a obsessão da pureza é
confrontada com a maravilha da hibridação cultural, da mestiçagem, realidades
do arco-íris...
2°
Corda - A Magna Carta
800
anos. Foi assinada a 15 de Junho de 1215, em Runnymede, perto de Windsor, no
Berkshire e guardada na Catedral de Lincoln, adjacente ao Castelo de Lincoln
(hoje um estabelecimento prisional). A Magna Carta é um armistício que concluiu
uma guerra civil que dilacerou a Inglaterra do século XIII e que opunha o poder
real (o Rei João, que iniciou uma politica de expansão territorial em França,
sendo essa expansão suportada pelos impostos e taxas pagas pelo povo) a uma
aliança de interesses, constituída pela nobreza, camponeses,
comerciantes, artificies, banqueiros, comunidades florestais e largos sectores
da Igreja, ou seja uma guerra entre o Estado e a Nação, ou entre o Estado e os
cidadãos.
O
texto foi redigido por Stephan Langton, arcebispo de Canterbury e o documento
defende a soberania popular, revindica a abolição da pena capital, constitui a
figura do "Habeas Corpus", os direitos das comunidades florestais, os
direitos dos camponeses, o apoio às mulheres (por exemplo concedia às viúvas o
direito aos bens da floresta, à manutenção da habitação, o direito a dispor das
ferramentas e utensílios necessários à sua subsistência) e aos direitos
individuais. Foi um alicerce dos actuais Estados de Direito, um percursor da
Carta dos Direitos Humanos e um documento indispensável para a praxis
democrática.
Seculos
mais tarde (1628) o parlamento britânico apresenta ao rei Carlos I a Petition
of Right, que limitava os poderes da coroa e no qual se protesta contra as
prisões arbitrárias e uso da lei marcial). Em 1689 Guilherme III é forçado a
aceitar a Bill of Rights, que estabeleceu as regras a observar na sucessão
dinástica e integra na ordem jurídica britânica a lista de imunidades e os
direitos proclamados na Petition of Right de 1628, legitimando as suas
revindicações com base na Magna Carta de 1215.
Para
lá da ilha a Magna Carta está no cerne da Declaração da Independência dos USA,
em 1776, na Revolução Francesa e na proclamação dos 17 artigos da I Declaração
dos Direitos do Homem (um documento-base da Revolução Francesa), em 1789, na
luta contra a escravatura e contra o tráfico de escravos, na criação da Liga
das Nações em 1919, na Carta da ONU, em 1945 e na Declaração Universal dos
Direitos do Homem, em 1948.
Hoje,
David Cameron, primeiro-ministro "torie", emite uns sons guturais e
faz-se entender com algumas palavras onomatopaicas sobre uma "eventual
reforma dos Direitos Humanos"...talvez cumprindo o sonho de Pinochet e de
Pol-Pot...
3°
corda - Os construtores de muros e muralhas
Cameron,
ao contrário dos seus antepassados do século XII (Magna Carta) e do século XVII
(Petition of Right e Bill of Rights) é um identitário, o que, no caso
britânico, quer dizer que é um ilhéu assumido, daqueles que andam sempre à coca
das malandrices dos preguiçosos do continente (que quando não são preguiçosos -
como os francos, os vikings e os germanos - dão um "trabalho do
caraças"). E os "conservatives" não hesitam em afirmar a sua
identidade avançando para a fortaleza britânica que se os tipos do continente
fossem espertos poderia ser um baluarte da "fortaleza europeia" uma
espécie de Grande Muralha contra as hordas vindas do Médio-Oriente e da Núbia.
E se a coisa fosse bem-feita juntava-se tudo até ao muro da Palestina e se o
Donald Trump ganhasse as eleições nos "states", estendia-se a Grande
Muralha ao Novo Mundo para travar os hispânicos e outros indígenas.
Neste
sentido Cameron tem um pensamento de "skinhead", membro de uma claque
de clube de bairro (aliás bem lá no fundo, num desvario freudiano, essa é a sua
real identidade) que, aliás, partilha com outras figuras como Marine Le Pen,
Netanyahu e Donald Trump, espíritos empreendedores que constroem muros e
muralhas a baixo preço (juntar a estes personagens o Rei de Marrocos, pela
construção daquele muro no Sahara e a titulo póstumo Estaline, pela construção
e manutenção do muro de Berlim, podendo as credenciais serem entregues a Putin,
que deve andar a magicar um muro que impeça os e as gays de circularem no
sagrado território por ele administrado).
E
quanto aos herdeiros da Magna Carta, David Cameron e os tories irão soterrá-los
sob a muralha...e esse será com certeza o primeiro artigo da
"cameroniana" reforma dos Direitos Humanos...
4°
corda - A identidade racial e a identidade social
A
identidade racial é um factor curioso e que pode criar algumas duplicidades.
Vejamos dois exemplos: a Republica Dominicana e os USA. Na Republica Dominicana
basta um negro ter um antigo descendente branco para ser "blanco".
Nos USA os negros podem ter descendentes diversos em todas as gerações que são
sempre negros, em termos raciais e sempre "afro" em termos socioculturais.
Nem mesmo os mestiços livram-se da identidade racial negra e da identidade
social e cultural africana.
O
problema nos USA é que existem negros, racialmente identificados que não se
consideram "afro-americanos" mas "apenas" norte-americanos,
como qualquer cidadão branco dos USA. Aceitam a evidência biológica da
melanina, mas não o critério de identidade social africana. O mesmo se passa
com os mestiços. Podem não aceitar o epiteto "afro", porque
consideram-se (e com toda a razão que os assiste) norte-americanos e não
afrodescendentes (que podem não ser). Mas pode, nos USA, um branco ser
afro-americano, ou seja, será que a sociedade norte-americana é verdadeiramente
uma "open-society" para aceitar a prevalência da identificação social
e cultural sobre a identificação racial? (Esta pergunta é válida, também,
naquela parte de Africa que é designada por África Negra - conceito
que é imposto como realidade factual, uma obra-prima do neocolonialismo,
ignorando todos os factores migratórios pré-coloniais - e em sentido inverso no
Magreb).
Na
Republica Dominicana o "blanco" é um critério de descendência que
provoca de imediato uma subida no escalão social, passando para segundo plano a
identidade racial, que constitui um obstáculo à mobilidade social. Os mestiços
são "blancos", os negros que ocupam determinadas posições sociais ou
profissionais são "blancos", sendo negros os desempregados, os
marginais e os muito pobres ou os haitianos e seus descendentes. Encontramos -
se estivermos atentos - no período colonial em África, muitas mulheres negras
que optaram por conceber filho de branco, porque assim o seu filho teria mais
possibilidades de ter uma vida condigna (este fenómeno é ainda visível em
muitos países da África pós-colonial e praticado em muitas sociedades, para
permitir ter uma forma de educar o filho e dar cuidados médicos através do pai
branco, ou da criança ir estudar para o pais de origem do pai).
Temos,
pois, uma nova dimensão da identidade, que nunca surge no discurso identitário
e que nos transporta para os mecanismos primários da aculturação, como um
filtro que separa o assimilado do assimilador de culturas. O assimilado é um
produto do domínio, um subserviente. O assimilador um resistente, que assimila
e acultura de forma consciente, alimentado a sua resistência ao domínio...
5°
corda - A "purga dominicana"
A
Republica Dominicana prepara uma purga étnica. Centenas de milhares de
dominicanos descendentes de haitianos (perto de meio milhão de pessoas) serão
expulsos para o Haiti, às quais juntam-se cerca de 300 mil haitianos
"ilegais". O governo dominicano justifica a medida dizendo que aplica
uma lei de 1929 que permite desnacionalizar cidadãos dominicanos. Por sua vez o
presidente haitiano Michel Martelly considerou que o governo dominicano está a
cometer um "genocídio civil" e a ONU colocou o governo dominicano nas
instâncias jurídicas internacionais.
Uma
das mais importantes lições do Holocausto ensina que um dos indícios do
fascismo é a paulatina institucionalização do racismo e da xenofobia. A
História do fascismo na Alemanha, Itália e Japão, nas décadas de 20 e 30 do
século passado testemunha que um dos sintomas da decomposição da democracia é a
legislação anti-migratória, a criação de obstáculos à legalização dos
"ilegais" a expulsão de estrangeiros (sob a acusação, geralmente, de
serem "espiões", agentes ao serviço de potências estrangeiras, ou com
acusações menos elaboradas, como sejam as do desemprego, da "alteração dos
costumes e valores", etc.) e a legislação que retira o direito da
cidadania aos seus próprios cidadãos, por serem minorias étnicas, descendentes
de estrangeiros, indígenas, etc.
Estas
aberrações jurídicas, imbuídas do "espirito identitário" que
caracteriza a barbárie fascista e que está por detrás de todo o totalitarismo
(e da tentação totalitária que reside no Estado de Direito) foi recentemente
denunciada pelo escritor peruano (e nobel da literatura) Vargas Llosa, num
excelente texto sobre a Republica Dominicana, publicado na passada semana no
jornal espanhol "El Pais". A extrema-direita e os grupos
ultranacionalistas dominicanos responderam com um abaixo-assinado que exige a
retirada dos livros de Vargas Llosa das livrarias dominicanas e a proibição de
entrada do escritor na Republica Dominicana.
Purga
dominicana, Fortaleza Europeia, Muralha norte-americana, muro de Israel, muro
marroquino na Republica Árabe Sahari Democrática, os muros legislativos,
invisíveis mas sentidos, são a expressão do terrorismo do Estado, dos
mecanismos de acumulação e de reprodução de capital, de reprodução e renovação
de elites oligárquicas que entram em contradição com os processos de
desenvolvimento da Economia-mundo. A arena de combate não tem fronteiras,
ultrapassa o conceito caduco de Estado-Nação e os mitos identitários. De um lado
a submissão e a tirania, o Homem reduzido à sua condição de assimilado, do
outro a inebriante sensação de estar vivo, de viver e de construir uma nova
vida num mundo de liberdade e de justiça social, do Homem projetado na
sua condição de assimilador de culturas.
6°
Corda - A necessária construção de uma Nova Cultura Politica
A
Nova Cultura Politica só o será se avançar, se der os primeiros passos na
construção de uma civilização distinta da produzida pelo capitalismo, ou seja,
se ultrapassar as contradições do mundo actual e iniciar o processo de
transformação social assente no fim da alienação economicista e na ruptura com
a alienação do trabalho; liberta do patriarcado; que estabeleça novas relações
com a natureza; que desenvolva e aprofunde a democracia; e que seja um mundo
globalizado numa base e num marco que não só não reproduza a polarização, mas
que acabe de vez com os processos que a originam.
As
estratégias de luta têm de levar em conta quatro desafios fundamentais: 1)
mercado, definindo os objectivos e os meios jurídicos, administrativos,
organizativos, sociais e políticos que enquadrem o mercado e o transforme em
espaço de reprodução social; 2) economia-mundo, utilizando as margens que
permitem inverter a relação interior/exterior e ajustar o sistema mundial às
exigências do desenvolvimento; 3) democracia, rejeitando o populismo,
aprofundar os mecanismos participativos e harmonizá-los com os processos
representativos e superar a aparente contradição liberdade/igualdade,
fundamento da oligarquia liberal (assente noa direitos de propriedade e nas
liberdades individuais) e das oligarquias socialistas-estatistas (que utilizam
os direitos sociais como forma de estabelecerem o seu domínio e a sua forma de
exploração do trabalho, asfixiando as liberdades individuais e sociais); 4)
pluridimensionalidade, organizando a coexistência e a interação de comunidades
na maior diversão possível, no quadro do mais amplo espaço político possível.
A
vocação cosmopolita e internacionalista desta transformação tem, obviamente, um
sentido contrário ao "culturalismo" e á "identidade", que
criam uma suposta "diversidade" conducente, na prática, ao etnicismo
e ao obscurantismo teocrático (por exemplo o Califado, a Ásia Resplandecente,
as diversas formas xenófobas bantos fundamentadas nas supostas tradições de uma
mítica era pré-colonial e refletidas no tribalismo e nos regimes neocoloniais,
a extrema-direita europeia, ou a supremacia branca inerente às seitas
fundamentalistas cristãs nos USA) respostas profundamente reacionárias e que,
inclusive, representam um retrocesso em relação ao que o capitalismo (hoje um
obstáculo ao desenvolvimento) já produziu de avanços para a Humanidade. A
economia-mundo, dominada pelo modo de produção capitalista, não é apenas palco
de intercâmbios comerciais, novas tecnologias e interdependências
geoeconómicas, geoestratégicas e geopolíticas. É também cultura e produziu uma
cultura dominante á escala mundial, a cultura capitalista e não a cultura
Ocidental, historicamente cristã e europeia, dominada, também ela, pelo
"modus" capitalista, ao ponto de ser o seu centro difusor.
A
agonia da crucificação é a imagem da condição humana no presente e o enigmático
rosto desconhecido do Profeta representa o estado actual de uma humanidade
acorrentada à submissão. Desvendar, retirar os véus que escondem a realidade,
retirar os pregos que aprisionam o Homem e sacudir os espinhos causadores dos
sofrimentos que o atormentam, criar um mundo melhor, são históricas aspirações
humanas, sempre presentes em cada novo trilho percorrido...
Fontes
Amin, S. Os desafios da globalização Ed. Dinossauro, Lisboa, 2000
Amin, S. Os desafios da globalização Ed. Dinossauro, Lisboa, 2000
Diaz,
J. + Alvarez, Z. + Danticat, E. and Kurlansky, M. Two versions of a Dominican
tale in New York Times - Archives, 2013/11/01
New
York Times 2015/06/17
Cobb,
J. Black like her http://www.newyorker.com
Patton,
S. Rachel Dolezal case leeves a campus bewildered and some schoolars disgusted http://www.chronicle.com
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