quinta-feira, 25 de junho de 2015

AS 6 CORDAS DA GUITARRA



Rui Peralta, Luanda

1° Corda - A (falsa) identidade

São complexos os tempos que correm perante nós. De tal forma complexos que nos deixam, muitas vezes, mergulhados numa perplexidade angustiante. Ocorrem fenómenos que parecem confirmar o Eterno  Regresso (desafiando a nossa percepção do Universo e contrariando a infinidade do espaço-tempo) como fossem produtos de um universo finito, que se repete até á exaustão.

O ópio da identidade é um  desses fenómenos das sociedades actuais. Regresso às origens, resgate de valores, etnicidade, tradição, raízes culturais sorumbáticas, que não são raízes, nem são culturais, mas apenas singelas mercadorias sujeitas á acção da oferta e da procura. Surgem estes fenómenos como reação às realidades nascentes num mundo que é  cada vez mais amplo e essa reacção comporta, também, outros fenómenos, uns induzidos pelas oligarquias dominantes, outros pela multidão excluída dos benefícios que as novas realidades produzem.

Um ponto comum a todas estas "identidades" é o facto de serem sempre sociais, colectivas, comunitárias, serem sempre etnia, povo, nação, classe, grupo, clube e nunca individuo, ou seja nenhuma é intrinsecamente humana, nenhuma tem algo que seja Eu (o principal elemento formador do Homem e o factor determinante da condição humana, o fio condutor do livre-arbítrio). A própria ética é sempre social (como se a única forma de manifestação da ética não fosse o Individuo, enquanto tal) a moral é sempre social (os "atentados" á moral são à "moral social" e nunca á moral do individuo e é curioso que, quanto muito, fala-se em "moral dos indivíduos", no plural e nunca no singular).

Ao recear o Eu, o Individuo, as "identidades" que por este pululam criam o medo de sermos, afinal, todos iguais, diferentemente iguais e igualmente diferentes. É esse medo que produz as carradas de identidades centradas nos umbigos próprios (quando se centram nos umbigos alheios geram fenómenos como a expansão territorial, o colonialismo e o imperialismo), fechadas, impenetráveis, convertendo a sociedade dos Homens em guetos sociais, habitados por diversas comunidades étnicas, com os seus espaços definidos, onde cada um está proibido de passar para o "outro lado", o "lado de lá", a "terra deles".

Fora deste contexto fica a identidade individual e o seu cosmopolitismo inato, própria do judeu errante, do tuaregue, do nómada, da transumância, da gente que circula pelo mundo, dos contadores de histórias e assimiladores de saberes e culturas que formam a pluridimensionalidade do universo. É uma luta épica travada através dos séculos contra os "profetas da identidade", os criadores de universos unidimensionais e concentracionários.

Neste conflito, que perdura desde os tempos míticos, a obsessão da pureza é confrontada com a maravilha da hibridação cultural, da mestiçagem, realidades do arco-íris...

2° Corda - A Magna Carta

800 anos. Foi assinada a 15 de Junho de 1215, em Runnymede, perto de Windsor, no Berkshire e guardada na Catedral de Lincoln, adjacente ao Castelo de Lincoln (hoje um estabelecimento prisional). A Magna Carta é um armistício que concluiu uma guerra civil que dilacerou a Inglaterra do século XIII e que opunha o poder real (o Rei João, que iniciou uma politica de expansão territorial em França, sendo essa expansão suportada pelos impostos e taxas pagas pelo povo) a uma aliança de interesses, constituída pela  nobreza, camponeses, comerciantes, artificies, banqueiros, comunidades florestais e largos sectores da Igreja, ou seja uma guerra entre o Estado e a Nação, ou entre o Estado e os cidadãos.

O texto foi redigido por Stephan Langton, arcebispo de Canterbury e o documento defende a soberania popular, revindica a abolição da pena capital, constitui a figura do "Habeas Corpus", os direitos das comunidades florestais, os direitos dos camponeses, o apoio às mulheres (por exemplo concedia às viúvas o direito aos bens da floresta, à manutenção da habitação, o direito a dispor das ferramentas e utensílios necessários à sua subsistência) e aos direitos individuais. Foi um alicerce dos actuais Estados de Direito, um percursor da Carta dos Direitos Humanos e um documento indispensável para a praxis democrática. 

Seculos mais tarde (1628) o parlamento britânico apresenta ao rei Carlos I a Petition of Right, que limitava os poderes da coroa e no qual se protesta contra as prisões arbitrárias e uso da lei marcial). Em 1689 Guilherme III é forçado a aceitar a Bill of Rights, que estabeleceu as regras a observar na sucessão dinástica e integra na ordem jurídica britânica a lista de imunidades e os direitos proclamados na Petition of Right de 1628, legitimando as suas revindicações com base na Magna Carta de 1215.

Para lá da ilha a Magna Carta está no cerne da Declaração da Independência dos USA, em 1776, na Revolução Francesa e na proclamação dos 17 artigos da I Declaração dos Direitos do Homem (um documento-base da Revolução Francesa), em 1789, na luta contra a escravatura e contra o tráfico de escravos, na criação da Liga das Nações em 1919, na Carta da ONU, em 1945 e na Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948.

Hoje, David Cameron, primeiro-ministro "torie", emite uns sons guturais e faz-se entender com algumas palavras onomatopaicas sobre uma "eventual reforma dos Direitos Humanos"...talvez cumprindo o sonho de Pinochet e de Pol-Pot...

3° corda - Os construtores de muros e muralhas

Cameron, ao contrário dos seus antepassados do século XII (Magna Carta) e do século XVII (Petition of Right e Bill of Rights) é um identitário, o que, no caso britânico, quer dizer que é um ilhéu assumido, daqueles que andam sempre à coca das malandrices dos preguiçosos do continente (que quando não são preguiçosos - como os francos, os vikings e os germanos - dão um "trabalho do caraças"). E os "conservatives" não hesitam em afirmar a sua identidade avançando para a fortaleza britânica que se os tipos do continente fossem espertos poderia ser um baluarte da "fortaleza europeia" uma espécie de Grande Muralha contra as hordas vindas do Médio-Oriente e da Núbia. E se a coisa fosse bem-feita juntava-se tudo até ao muro da Palestina e se o Donald Trump ganhasse as eleições nos "states", estendia-se a Grande Muralha ao Novo Mundo para travar os hispânicos e outros indígenas.

Neste sentido Cameron tem um pensamento de "skinhead", membro de uma claque de clube de bairro (aliás bem lá no fundo, num desvario freudiano, essa é a sua real identidade) que, aliás, partilha com outras figuras como Marine Le Pen, Netanyahu e Donald Trump, espíritos empreendedores que constroem muros e muralhas a baixo preço (juntar a estes personagens o Rei de Marrocos, pela construção daquele muro no Sahara e a titulo póstumo Estaline, pela construção e manutenção do muro de Berlim, podendo as credenciais serem entregues a Putin, que deve andar a magicar um muro que impeça os e as gays de circularem no sagrado território por ele administrado).

E quanto aos herdeiros da Magna Carta, David Cameron e os tories irão soterrá-los sob a muralha...e esse será com certeza o primeiro artigo da "cameroniana" reforma dos Direitos Humanos...

4° corda - A identidade racial e a identidade social

A identidade racial é um factor curioso e que pode criar algumas duplicidades. Vejamos dois exemplos: a Republica Dominicana e os USA. Na Republica Dominicana basta um negro ter um antigo descendente branco para ser "blanco". Nos USA os negros podem ter descendentes diversos em todas as gerações que são sempre negros, em termos raciais e sempre "afro" em termos socioculturais. Nem mesmo os mestiços livram-se da identidade racial negra e da identidade social e cultural africana.

O problema nos USA é que existem negros, racialmente identificados que não se consideram "afro-americanos" mas "apenas" norte-americanos, como qualquer cidadão branco dos USA. Aceitam a evidência biológica da melanina, mas não o critério de identidade social africana. O mesmo se passa com os mestiços. Podem não aceitar o epiteto "afro", porque consideram-se (e com toda a razão que os assiste) norte-americanos e não afrodescendentes (que podem não ser). Mas pode, nos USA, um branco ser afro-americano, ou seja, será que a sociedade norte-americana é verdadeiramente uma "open-society" para aceitar a prevalência da identificação social e cultural sobre a identificação racial? (Esta pergunta é válida, também, naquela parte  de Africa que é designada por África Negra  - conceito que é imposto como realidade factual, uma obra-prima do neocolonialismo, ignorando todos os factores migratórios pré-coloniais - e em sentido inverso no Magreb).

Na Republica Dominicana o "blanco" é um critério de descendência que provoca de imediato uma subida no escalão social, passando para segundo plano a identidade racial, que constitui um obstáculo à mobilidade social. Os mestiços são "blancos", os negros que ocupam determinadas posições sociais ou profissionais são "blancos", sendo negros os desempregados, os marginais e os muito pobres ou os haitianos e seus descendentes. Encontramos - se estivermos atentos - no período colonial em África, muitas mulheres negras que optaram por conceber filho de branco, porque assim o seu filho teria mais possibilidades de ter uma vida condigna (este fenómeno é ainda visível em muitos países da África pós-colonial e praticado em muitas sociedades, para permitir ter uma forma de educar o filho e dar cuidados médicos através do pai branco, ou da criança ir estudar para o pais de origem do pai).

Temos, pois, uma nova dimensão da identidade, que nunca surge no discurso identitário e que nos transporta para os mecanismos primários da aculturação, como um filtro que separa o assimilado do assimilador de culturas. O assimilado é um produto do domínio, um subserviente. O assimilador um resistente, que assimila e acultura de forma consciente, alimentado a sua resistência ao domínio...

5° corda - A "purga dominicana"

A Republica Dominicana prepara uma purga étnica. Centenas de milhares de dominicanos descendentes de haitianos (perto de meio milhão de pessoas) serão expulsos para o Haiti, às quais juntam-se cerca de 300 mil haitianos "ilegais". O governo dominicano justifica a medida dizendo que aplica uma lei de 1929 que permite desnacionalizar cidadãos dominicanos. Por sua vez o presidente haitiano Michel Martelly considerou que o governo dominicano está a cometer um "genocídio civil" e a ONU colocou o governo dominicano nas instâncias jurídicas internacionais.

Uma das mais importantes lições do Holocausto ensina que um dos indícios do fascismo é a paulatina institucionalização do  racismo e da xenofobia. A História do fascismo na Alemanha, Itália e Japão, nas décadas de 20 e 30 do século passado testemunha que um dos sintomas da decomposição da democracia é a legislação anti-migratória, a criação de obstáculos à legalização dos "ilegais" a expulsão de estrangeiros (sob a acusação, geralmente, de serem "espiões", agentes ao serviço de potências estrangeiras, ou com acusações menos elaboradas, como sejam as do desemprego, da "alteração dos costumes e valores", etc.) e a legislação que retira o direito da cidadania aos seus próprios cidadãos, por serem minorias étnicas, descendentes de estrangeiros, indígenas, etc.

Estas aberrações jurídicas, imbuídas do "espirito identitário" que caracteriza a barbárie fascista e que está por detrás de todo o totalitarismo (e da tentação totalitária que reside no Estado de Direito) foi recentemente denunciada pelo escritor peruano (e nobel da literatura) Vargas Llosa, num excelente texto sobre a Republica Dominicana, publicado na passada semana no jornal espanhol "El Pais". A extrema-direita e os grupos ultranacionalistas dominicanos responderam com um abaixo-assinado que exige a retirada dos livros de Vargas Llosa das livrarias dominicanas e a proibição de entrada do escritor na Republica Dominicana.

Purga dominicana, Fortaleza Europeia, Muralha norte-americana, muro de Israel, muro marroquino na Republica Árabe Sahari Democrática, os muros legislativos, invisíveis mas sentidos, são a expressão do terrorismo do Estado, dos mecanismos de acumulação e de reprodução de capital, de reprodução e renovação de elites oligárquicas que entram em contradição com os processos de desenvolvimento da Economia-mundo. A arena de combate não tem fronteiras, ultrapassa o conceito caduco de Estado-Nação e os mitos identitários. De um lado a submissão e a tirania, o Homem reduzido à sua condição de assimilado, do outro a inebriante sensação de estar vivo, de viver e de construir uma nova vida num mundo de liberdade e de  justiça social, do Homem projetado na sua condição de assimilador de culturas.

6° Corda - A necessária construção de uma Nova Cultura Politica

A Nova Cultura Politica só o será se avançar, se der os primeiros passos na construção de uma civilização distinta da produzida pelo capitalismo, ou seja, se ultrapassar as contradições do mundo actual e iniciar o processo de transformação social assente no fim da alienação economicista e na ruptura com a alienação do trabalho; liberta do patriarcado; que estabeleça novas relações com a natureza; que desenvolva e aprofunde a democracia; e que seja um mundo globalizado numa base e num marco que não só não reproduza a polarização, mas que acabe de vez com os processos que a originam.

As estratégias de luta têm de levar em conta quatro desafios fundamentais: 1) mercado, definindo os objectivos e os meios jurídicos, administrativos, organizativos, sociais e políticos que enquadrem o mercado e o transforme em espaço de reprodução social; 2) economia-mundo, utilizando as margens que permitem inverter a relação interior/exterior e ajustar o sistema mundial às exigências do desenvolvimento; 3) democracia, rejeitando o populismo, aprofundar os mecanismos participativos e harmonizá-los com os processos representativos e superar a aparente contradição liberdade/igualdade, fundamento da oligarquia liberal (assente noa direitos de propriedade e nas liberdades individuais) e das oligarquias socialistas-estatistas (que utilizam os direitos sociais como forma de estabelecerem o seu domínio e a sua forma de exploração do trabalho, asfixiando as liberdades individuais e sociais); 4) pluridimensionalidade, organizando a coexistência e a interação de comunidades na maior diversão possível, no quadro do mais amplo espaço político possível.

A vocação cosmopolita e internacionalista desta transformação tem, obviamente, um sentido contrário ao "culturalismo" e á "identidade", que criam uma suposta "diversidade" conducente, na prática, ao etnicismo e ao obscurantismo teocrático (por exemplo o Califado, a Ásia Resplandecente, as diversas formas xenófobas bantos fundamentadas nas supostas tradições de uma mítica era pré-colonial e refletidas no tribalismo e nos regimes neocoloniais, a extrema-direita europeia, ou a supremacia branca inerente às seitas fundamentalistas cristãs nos USA) respostas profundamente reacionárias e que, inclusive, representam um retrocesso em relação ao que o capitalismo (hoje um obstáculo ao desenvolvimento) já produziu de avanços para a Humanidade. A economia-mundo, dominada pelo modo de produção capitalista, não é apenas palco de intercâmbios comerciais, novas tecnologias e interdependências geoeconómicas, geoestratégicas e geopolíticas. É também cultura e produziu uma cultura dominante á escala mundial, a cultura capitalista e não a cultura Ocidental, historicamente cristã e europeia, dominada, também ela, pelo "modus" capitalista, ao ponto de ser o seu centro difusor.

A agonia da crucificação é a imagem da condição humana no presente e o enigmático rosto desconhecido do Profeta representa o estado actual de uma humanidade acorrentada à submissão. Desvendar, retirar os véus que escondem a realidade, retirar os pregos que aprisionam o Homem e sacudir os espinhos causadores dos sofrimentos que o atormentam, criar um mundo melhor, são históricas aspirações humanas, sempre presentes em cada novo trilho percorrido...

Fontes
Amin, S. Os desafios da globalização Ed. Dinossauro, Lisboa, 2000
 
Diaz, J. + Alvarez, Z. + Danticat, E. and Kurlansky, M. Two versions of a Dominican tale in New York Times - Archives, 2013/11/01 
New York Times 2015/06/17 
Cobb, J. Black like her http://www.newyorker.com 
Patton, S. Rachel Dolezal case leeves a campus bewildered and some schoolars disgusted http://www.chronicle.com 

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