Livro
revela: numa época em que EUA tornaram-se antidemocráticos e opacos, site
criado por Julian Assange expôs suas estratégia oculta para Oriente Médio e
América Latina
Mark
Weisbrot – Outras Palavras - Tradução: Inês Castilho
Parte
das informações históricas mais importantes para a compreensão de eventos
atuais vem, não por coincidência, de fontes que previa-se estar ocultas das
sociedades. De novembro de 2010 a setembro de 2011, mais de 250 mil
comunicações entre diplomatas norte-americanos, que nunca deveriam vir à luz do
dia, foram tornadas públicas. Elas estão disponíveis no WikiLeaks, a organização de
mídia sem fins lucrativos que aceita informação confidencial de fontes anônimas
e as divulga para fontes jornalísticas e para o público. Alguns pesquisadores
reuniram um tesouro de informações e análises que pode ser imensamente
esclarecedor. (O livro recém-lançado
a partir dessa pesquisa, publicado pela editora londrina Verso, éWikileaks files: The World according to US Empire [Os
Arquivos do Wikileaks: o Mundo egundo o Império dos EUA, ainda sem edição em
português].
Considere
a Síria, hoje no centro do noticiário internacional por causa da crescente
intervenção militar russa, assim como a onda de meio milhão de refugiados da
região chegando à Europa. Por que passou tanto tempo até que Washington
começasse – sim, infelizmente está apenas começando – a reconsiderar a política
de exigir que o presidente Bashar al-Assad renuncie, antes que aconteçam
negociações significativas de paz? Qualquer diplomata poderia ter dito à Casa
Branca que exigir o suicídio político de uma das partes envolvidas numa guerra
civil, como condição para as negociações, não ajuda a acabar com o fim do
conflito. Em termos práticos, esta política é um compromisso com a guerra sem
fim.
A
resposta pode ser encontrada em comunicações diplomáticas divulgadas pelo
WikiLeaks, que revelam que a mudança de regime na Síria tem sido a política do
governo norte-americano desde 2006. E evidenciam, ainda pior – depois de
centenas de milhares de mortos, incontáveis vidas em ruínas e mais de 4 milhões
de refugiados que fogem do país – que Washington mantém uma política de
promoção da guerra sectária no país com o objetivo de desestabilizar o governo
Assad. Uma mensagem do principal diplomata dos EUA (o chargé d’affaires)
em Damasco, em dezembro de 2006 oferece, sugestões sobre como Washington podia
exacerbar certas “vulnerabilidades” do governo da Siria e tirar vantagem delas.
Vulnerabilidades a ser exploradas incluem “a presença de extremistas islâmicos
em trânsito” e “medo sunita da influência iraniana”.
Ao
descrever essa estratégia em “Os Arquivos WikiLeaks”, o cientista
político Robert
Naiman escreve:
Naquele
tempo, ninguém no governo dos EUA podia alegar inocência sobre as possíveis implicações
de tal política. Esta mensagem foi escrita no auge da guerra civil sectária
entre sunitas e xiitas no Iraque, que os militares dos EUA tentavam sem sucesso
conter. O desconforto do público norte-americano com a guerra civil sectária no
Iraque, desencadeada pela invasão dos EUA, acabava de custar aos republicanos o
controle do Congresso, nas eleições de novembro de 2006. O resultado do pleito
precipitou, de imediato, a demissão de Donald Rumsfeld como secretário de
Defesa. Ninguém trabalhando para o governo dos Estados Unidos na política
externa, naquele momento, podia ignorar as implicações de promover o sectarismo
entre sunitas e xiitas.
As
mensagens revelam também que o apoio aos esforços para derrubar o governo
sírio, iniciados em 2011, não eram uma resposta à repressão do governo Assad
contra os protestos, mas antes a continuação de uma estratégia de anos,
executada por meios mais violentos. Elas explicam por que o governo dos EUA
podia empolgar-se tanto com os protestos e depois com a luta armada que ajudara
a promover, chegando a ignorar o que um grande número de sírios pensava:
independentemente de sua própria visão sobre Assad, bastava enxergar o caos no
Iraque (mesmo antes do surgimento do ISIS) para perceber que um destino muito
pior para o seu país era possível.
Aquele
cenário se materializou. Com centenas de milhares de pessoas mortas e um
impasse militar, ambos facilmente previsíveis, finalmente o governo de Barack Obama
está mostrando alguma flexibilidade em torno de negociações significativas — um
movimento fortemente encorajado por muitos democratas da Câmara. Por que isso
não poderia ter acontecido antes?
Relatórios
de diplomatas dos EUA na América Latina jogam muita luz na política
norte-americana também nesta região. Eles mostram um padrão consistente não
somente de hostilidade mas de ação contra governos de esquerda — Bolívia,
Equador, Honduras, Venezuela e outros. As mensagens veem a Venezuela como tão
influente que é quase como se estivessem falando de uma nova União Soviética a
ser contida. Esboçado em 2006, um plano de cinco pontos para frear o sucesso
político do presidente Hugo Chávez na Venezuela (morto de câncer em 2013),
registrado em mensagem de William Brownfield, embaixador dos EUA no país à
época, inclui “penetrar na base política do chavismo”, “dividir o chavismo” e
“isolar Chávez internacionalmente.” Outros memorandos fornecem mais detalhes de
como isso foi tentado. Por exemplo, a pressão dos Estados Unidos foi exercida
sobre países tão pequenos e carentes como Haiti, Honduras e Jamaica, para que
rejeitassem ajuda da Venezuela em petróleo, o que lhes permitiria economizar
centenas de milhões de dólares.
As
mensagens também mostram como Honduras, sob o governo do presidente Manuel
Zelaya, tornou-se um Estado inimigo, ao aproximar-se de outros governos de
esquerda. Zelaya foi derrubado pelos militares em 2009, e ficou claro desde o
dia do golpe, quando o governo Obama emitiu uma declaração esclarecendo de que
não se opunha ao fato, de que lado Washington estava. Aqui os telegramas do
WikiLeaks respaldam o que poderia ser deduzido no momento pela informação
pública.
Emails
recentemente divulgados pela então Secretária de Estado Hillary Clinton
fornecem detalhes sobre como o governo dos EUA ajudou a garantir que o
presidente de Honduras, eleito democraticamente, não voltasse até queu
“eleições” – que quase toda a América Latina recusou-se a reconhecer – fossem
realizadas sob o governo golpista.
Todos
esses documentos, antes classificados como secretos, ajudam a explicar as
intenções e estratégia do governo norta-americano atual, e quanta coerência
interna elas mantiveram em tantas ocasiões e lugares – exceto acordo histórico
com o Irã. Na América Latina, esses documentos ajudam a entender por que os EUA
ainda se recusam a aceitar um embaixador da Venezuela, mesmo depois de ter
aceito um embaixador de Cuba. Essas políticas são consistentes entre si e com
os últimos cinquenta anos das relações entre EUA e América Latina. Quem
quer que esteja fazendo política internacional no governo Obama (não é assim
tão transparente) está ainda calculando que na Venezuela a oposição pode ser
melhor ajudada pela tentativa de deslegitimizar o governo, enquanto, em relação
a Cuba, aposta-se na abertura de relações diplomáticas e de comércio com os
EUA. Não se trata de negar o significado histórico e simbólico do
restabelecimento de relações diplomáticas dos Estados Unidos com Cuba. Mas em
ambos os casos, a meta se mantém a mesma: mudança do regime.
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