Pedro
Marques Lopes – Diário de Notícias, opinião
1-Se
não vivêssemos numa República não teríamos um Presidente da República. Teríamos
um primeiro-ministro ou um presidente do Conselho de Ministros, ministérios,
juízes, polícias, câmaras municipais, mas não um Presidente da República.
Poderíamos ter um Parlamento com representantes eleitos pelo povo, mas não lhe
chamaríamos Assembleia da República e também não haveria um Presidente da
República. Existiria uma Constituição, mas não se chamaria Constituição da
República Portuguesa e, de certeza absoluta, logo no seu primeiro artigo não se
declararia que Portugal era uma República. Também não existiria um outro que
esclarecesse que essa República era representada pelo Presidente da República e
que seria ele o garante da independência nacional, unidade do Estado e do
regular funcionamento das instituições.
É
verdade, a nossa forma de governo é a República e a data da sua instauração é
lembrada no artigo 11.º da Constituição: 5 de outubro de 1910. O legislador
constitucional não terá tido a preocupação de escrever a data porque lhe deu na
gana. Está no texto porque é um dia importante, porque é uma data fundadora,
porque nos lembra o que somos e em que acreditamos.
A
preservação da memória é uma tarefa fundamental da comunidade e está,
sobretudo, a cargo de quem nos representa. Nós somos o que for a nossa memória;
os países, as sociedades, não são diferentes. Pelo contrário, mais do que as
pessoas, estas precisam de momentos, de monumentos, de comemorações, de
símbolos. Sem eles corremos o risco de nos desintegrarmos. São em larga medida
os feitos coletivos, as alturas em que tivemos causas que nos uniram, as nossas
derrotas, as nossas mudanças como povo que nos definem, que fazem de nós o que
somos.
Não
indo às comemorações do 5 de Outubro, Cavaco Silva esqueceu tudo isso ou, se
calhar, nunca o soube. Esqueceu que o Presidente da República tem de exercer
todas as tarefas constitucionalmente definidas, mas que, muito provavelmente, a
sua mais importante ação como representante, como provedor do povo, é cuidar da
nossa memória coletiva. Ele mais do que ninguém. Não só não deve deixar que se
apague, mas deve ter uma atitude pedagógica, uma intervenção ativa que nos
recorde da importância da nossa história e do que isso representa no objetivo
de criar laços na comunidade, de coisas que nos unam. Não chegava ter assistido
impávido e sereno ao fim de feriados importantes para a comunidade - um deles o
próprio 5 de Outubro - em razão dum conceito de produtividade arrevesado, como
se o nosso imaginário comum, a necessidade de celebrar a nossa história,
pudesse ser trocada por o que quer que seja, Cavaco Silva resolve não ter tempo
para aquilo que, pelos vistos, considera a minudência de estar presente nas
celebrações do 5 de Outubro.
Estará
assoberbado a refletir sobre o significado das nossas decisões de hoje.
As
eleições de hoje são importantes. Todas as eleições são importantes, nem mais
nem menos do que quaisquer outras desde que a nossa democracia estabilizou, já
lá vão 40 anos. O momento em que o povo fala, em que decide, é sempre
importante. Mas, sejam quais forem os resultados, nada de decisivo para a nossa
comunidade, nada de estruturante estará em jogo. A democracia não estará
ameaçada, a nossa Constituição não estará em risco, as nossas instituições
continuarão a funcionar normalmente, os tribunais abrirão, nada de fundamental
se alterará na vida dos portugueses. Também disto Cavaco Silva se esqueceu.
Parece
que falta tempo a Cavaco. Não lhe falta tempo para tudo e mais alguma coisa,
mas para pensar sequer na importância da data da implantação da República, para
ler um pequeno discurso, para nos representar num dos mais importantes dias da
nossa história é que é mais complicado.
Consta,
também, que tem receio de que o seu discurso seja mal interpretado.
Provavelmente, pensa que nós somos todos estúpidos - conheço um que se sente
particularmente estúpido por o ter achado capaz de representar o povo e ser um
bom Presidente da República - e que poderíamos não perceber um seu eventual discurso
sobre princípios republicanos. Um em que ele falasse sobre a necessidade de os
termos sempre presentes. Sobre liberdade, sobre interesse público, sobre sermos
todos iguais perante a lei, sobre o nascimento não poder trazer direitos
especiais. Talvez o facto de Cavaco poder pensar que nós podemos confundir
valores republicanos com a política do dia-a-dia, que podemos não discernir
entre decisões conjunturais e princípios fundamentais, diga mais sobre ele do
que sobre nós.
Amanhã
teremos uma nova composição da Assembleia da República. A questão é: e
Presidente da República, temos?
2-Abaixo
os privilégios herdados, vivam os direitos conquistados. Viva o 5 de Outubro.
Viva a República.
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