sexta-feira, 16 de maio de 2025

INCANSÁVEIS NO PROPÓSITO DE DEGRADAR PORTUGAL -- Fernanda Câncio

Não é malgrado as mentiras, não é malgrado os insultos, não é malgrado as calúnias, não é malgrado o racismo, o machismo, a grunhice, o obsceno que têm votos. É, como com Trump e Bolsonaro, por tudo isso — e apenas por isso.

Fernanda Câncio | Diário de Notícias, opinião

Não é por acaso que nunca tínhamos visto em Portugal um líder político deitado numa cama, de camisa a rebinchar, relógio no pulso e pensos estrategicamente à vista, empunhando uma garrafa de água enquanto discursa sobre um achaque, as mensagens de apoio recebidas e como está disposto a sacrificar tudo — incluindo a saúde — pelo país. 

Não é porque nunca tivesse havido políticos com piripaques, macacoas, episódios vagais e, inclusive, coisas graves: Sousa Franco, ex-ministro das Finanças do Governo Guterres e cabeça de lista do PS às Europeias de 2004, morreu a 9 de junho desse ano, de ataque cardíaco, no meio de uma ação de campanha no Mercado de Matosinhos; Jorge Sampaio era Presidente da República quando foi operado ao coração, em 1996; Marcelo Rebelo de Sousa também foi em 2019 submetido a uma cirurgia ao mesmo órgão vital devido a “obstruções coronárias”. 

Não; é porque de um modo geral os políticos, quer por desejarem estabelecer uma fronteira entre o público e o privado, por considerarem de mau gosto ou por acharem que dá deles uma imagem de fraqueza e/ou inestética, resistem a instrumentalizar situações relacionadas com a sua saúde (ou falta dela). Essa regra, porém, tem vindo a ser contrariada pelos Bolsonaros da vida, que insistem, num delírio obsceno, em publicar imagens em macas e camas de hospital.

Trata-se, como escrevia a 10 de janeiro de 2023 um articulista na revista brasileira Veja, de uma “tática de engajamento sentimental”, para “tentar humanizar através da fragilidade e do apelo à compaixão” e, em simultâneo, de uma afirmação paradoxal de força, resistência sacrificial e unção dos deuses. Ou o ex-presidente do Brasil não tivesse já este ano, em abril, partilhado um vídeo no qual, após uma cirurgia, o vemos no hospital, a caminhar, de tronco nu e andarilho, ligado a aparelhos e rodeado de enfermeiros e médicos, falando, qual Lázaro, de “mais um milagre”.

Uma alegada bênção do além a conviver, na mesma proclamação, com o acicatar contra adversários políticos, ao associar a cirurgia à “facada sofrida por (sic) um antigo integrante do PSOL [Partido Socialismo e Liberdade], aliado histórico do PT [Partido dos Trabalhadores, de Lula da Silva].”

É toda uma cartilha, na qual se inscreve a imagem de Trump, ensanguentado após o tiroteio num comício da última campanha presidencial, erguendo o punho (e a cabeça, contra todas as regras de segurança): uma liderança ungida, heroica, sobrenaturalmente grandiosa mas sempre em perigo, com os inimigos à espreita.

Há quem goste, e sobretudo quem ache que resulta — e resultará, sobretudo numa determinada “demografia”, quando se sabe usar uma comunicação social ansiosa por ser usada. Daí que tenhamos nos últimos dias assistido a um folhetim interminável sobre as indisposições do líder do partido de extrema-direita, ao qual não faltaram vídeos na cama (inclusive de hotel), alegações falsas de que teria sido alvo, no hospital, de tentativas de agressão, necessitando de segurança à porta (o que foi vigorosamente desmentido pela unidade em causa, a de Faro, epela PSP), e o costumeiro acicatar de ódio racista que caracteriza a pessoa e a agremiação — com o respetivo presidente do grupo parlamentar a justificar o facto de o correligionário ter tido, num hospital público, ao ser colocado num quarto individual, o “tratamento vip” que antes criticara ao primeiro-ministro (quando este, em março, deu entrada em Santa Maria com uma arritmia), porque “é um líder especial, é ameaçado e atacado nas ruas (…), não podem querer que vá para uma cama onde ao lado esteja por exemplo alguém de etnia cigana”. 

Estas alegações mentirosas e criminosas (porque se trata de puro discurso de ódio, ao retratar toda uma comunidade como “perigosa”) não podem surpreender ninguém, como não pode surpreender o facto de delas não resultarem consequências, repúdio generalizado ou, sequer, daqueles que deveriam ser os “guardas do portão”: os jornalistas. Porque foi exatamente esta a fórmula — uma fórmula de falsidades, de ódio, de absoluta ausência de seriedade nas propostas (aliás, o programa deste partido é tudo e o seu contrário) — que levou a agremiação em causa a conquistar 50 deputados e a mantém em terceiro nas sondagens. Não é malgrado as mentiras, não é malgrado os insultos, não é malgrado as calúnias, não é malgrado o racismo, o machismo, a grunhice, o obsceno. É, como com Trump e Bolsonaro, por tudo isso — e apenas por isso. 

Usar camas de hospital, pensos e ambulâncias para monopolizar a atenção é só mais um episódio do processo de degradação em curso — um processo de degradação que, como na história do sapo cozido a fogo lento, triunfa pela dormência. 

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