Fernanda Câncio | Diário de Notícias, opinião
Quando partilhei com Ana Sá Lopes, hoje redatora principal do Público, a coluna de opinião do DN Contra os Canhões, várias vezes comentámos que quando não tínhamos assunto escrevíamos sobre Cavaco Silva, então presidente da República: a rara conjugação entre megalomania, sonsice, jactância e tacanhez do homem que andou toda a vida a jurar não ser político alimentava-nos sempre o correr das teclas.
Infelizmente o não-político que —segundo ele —ganhou a liderança do partido por ter ido ao respetivo congresso na Figueira da Foz, em maio de 1985, fazer “a rodagem do carro”, foi 10 anos primeiro-ministro e que em 1995, mal saiu do governo, quis ir para Belém, perdendo as eleições em janeiro de 1996 para Jorge Sampaio e, não desistindo, voltando a tentar, com sucesso, em 2006, tem, decerto fatigado de tanto se dedicar a uma coisa que lhe é penosa, aparecido pouco. Temos de nos contentar com uma coluna de opinião aqui, uma presença na primeira fila de uma festividade do PSD acolá, pronunciamentos esparsos às TV e rádios.
Sim, é difícil perceber como pode o país passar sem a superior orientação deste professor de Economia e Finanças que a 21 de julho de 2014, à beira do colapso do Banco Espírito Santo (o dito seria “resolvido” a 3 de agosto), assegurava ao país que os portugueses podiam nele confiar “dado que as folgas de capital são mais do que suficientes para cobrir a exposição que o banco tem à parte não financeira [as empresas do Grupo Espírito Santo], mesmo na situação mais adversa”. (Em 2022, os custos para o Estado da “resolução” do BES já ultrapassavam os oito mil milhões de euros).
O mesmo professor de Finanças que em janeiro 2012, enquanto Presidente da República em segundo mandato e após o anúncio, pelo governo de Passos Coelho, do corte dos subsídios de férias e Natal de pensionistas e funcionários públicos, se queixava amargamente de, tendo optado por receber, ao invés do salário do cargo (de mais de seis mil euros brutos, acrescidos de quase três mil de despesas de representação), as duas pensões a que tinha direito (cerca de 10 mil euros brutos, mais as tais despesas de representação, que continuava a receber), não ganhar o suficiente: “Tudo somado, o que irei receber do Fundo de Pensões do Banco de Portugal e da Caixa Geral de Aposentações quase de certeza que não vai chegar para pagar as minhas despesas”.
E ainda o especialista em
economia que se queixaria em 2009 de ter “grande parte das poupanças”, que
“entregara a quatro bancos para as gerirem”, “desaparecidas”. Este queixume
surgia depois de o Expresso noticiar que havia comprado em 2001, por um euro
cada, mais de 105 mil ações da Sociedade Lusa de Negócios (SLN), a empresa não
cotada em bolsa que controlava o Banco Português de Negócios (o tristemente
célebre BPN, cuja derrocada criminosa seguida de nacionalização, em 2008,
custou acima de seis mil milhões ao erário público), para em 2003 as vender à
mesma SLN por mais do dobro (2,4 euros) — obtendo assim uma mais-valia de 147,5
mil euros. Vir-se-ia depois, no julgamento do caso BPN, a saber que Oliveira e
Costa, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de um dos governos de
Cavaco, homem-forte do banco e da SLN que vendera as ações ao seu ex-primeiro-ministro
(e que seria condenado em
Um mistério nunca esclarecido,
este do preço tão simpático das ditas ações, a somar ao mistério da permuta, em 1998, da moradia que o casal
Aníbal e Maria Cavaco Silva detinha em Albufeira por uma outra moradia algarvia
nova em folha e muito maior, com três pisos e
Mas disperso-me: dizia eu que o ex-PM e ex-PR que em 2010 afirmou que para alguém ser mais honesto que ele “teria de nascer duas vezes” nos brinda pouco, nos últimos anos, com a luz da sua sapiência. Jubilemos, porém, porque o fez esta segunda-feira num artigo no jornal Observador, para nos garantir que, desapaixonada e desinteressadamente como só um puro técnico não-político como ele, procedeu a uma análise dos líderes partidários em confronto nas legislativas de 18 de maio. Para concluir que apenas o presidente do PSD, apenas por acaso partido a que Cavaco sempre pertenceu e só por coincidência líder que o apresenta como exemplo e guru, lhe merece confiança.
E isso porque, explica-nos com a habitual humildade e bonomia, “tendo procurado avaliar objetivamente os comportamentos e atitudes dos diferentes líderes partidários da oposição, não encontrei em nenhum deles qualquer superioridade em relação ao atual Primeiro-Ministro [Luís Montenegro] na dimensão ética e moral na vida política”.
O que houve, diz-nos indignado este estadista que tantas vezes garantiu não gostar de ler jornais e se notabilizou por, enquanto governante, crismar de “forças de bloqueio” todas e quaisquer vozes, incluindo as dos tribunais, que obstassem às suas ações e decisões, foi “uma campanha de suspeições e insinuações”, “mais confusa e desinformativa que esclarecedora”. A qual, lamenta o articulista, “não deixou alternativa” a Montenegro, que na sua opinião deu de “forma superlativa” provas da sua “boa-fé”, senão “confrontar a Assembleia da República com uma moção de confiança”. Foi pois, conclui, “a rejeição pela oposição dessa moção que implicou a demissão do Governo e a realização de eleições antecipadas”.
Cavaco Silva convence-nos, sem qualquer dúvida, de que a apresentação de uma moção de confiança cujo chumbo estava antecipadamente anunciado foi um ato de desespero de um primeiro-ministro que tudo fez para esclarecer o caso da empresa familiar sediada na sua casa, e gerida pela mulher e filhos, que recebia avenças chorudas de contratos angariados pelo próprio Luís Montenegro. E não — nem pensar — uma forma de este conseguir finalmente aquilo em que se empenhou desde o primeiro dia de governo: voltar a eleições na tentativa de, vitimizando-se, obter melhor resultado (emulando, de resto, a primeira maioria absoluta de Cavaco, lograda após uma moção de censura derrubar o seu executivo, formado 18 meses antes).
Continuando a sua análise científica, Cavaco acusa a “incompetência técnica” de alguns partidos da oposição, contrastante a seu ver com o “executivo presidido por Luís Montenegro”, que “nos seus onze meses de vida atuou de modo a aumentar o poder de compra de salários e pensões, defendeu o emprego e a estabilidade financeira e melhorou o clima de confiança”. Decerto por acaso (falta de espaço não pode ter sido, já que se trata de um artigo publicado num jornal digital), este professor de Finanças não abordou a questão da contração do PIB português no primeiro trimestre de 2025, nem explicou quais as “linhas de orientação” que divisa nas “políticas defendidas pela ‘AD–Coligação PSD/CDS’” como “mais adequadas ao desenvolvimento do país, à melhoria do bem-estar das famílias e a um futuro mais promissor para os jovens do que as propostas das outras formações partidárias”. Não é preciso dizer: deve bastar-nos saber em quem vota. E sobretudo que ele, o mais honesto de todos os homens, o homem que nunca foi político (que horror), não acha que “Luís Montenegro tenha violado quaisquer princípios éticos ou cometido ilegalidades”.
Muito obrigada, senhor professor. Tinha saudades.
Imagem em PG: Cavaco Silva, a múmia dislexa, em We Have Kaos in The Garden
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