Expresso
das Ilhas, editorial
Vinte
e seis anos após a queda do Muro de Berlim (9 de Novembro de 1989) assiste-se à
emergência do que alguns já chamam de democracias autoritárias. A Terceira Vaga
da Democracia que, a seguir a queda do Muro e do império soviético tinha feito
desaparecer regimes totalitários e autoritários em todos os continentes num
processo tão rápido e tão fatal que já foi chamado de “extinção leninista”,
parece ter perdido o ímpeto. Putin na Rússia e Erdogan na Turquia são dois
exemplos notórios de como a experimentação democrática iniciada nos anos
noventa tem sofrido nos últimos anos uma deriva autoritária. O mesmo já está a
acontecer na Hungria e poderá vir a verificar-se na Polónia na sequência das
eleições da semana passada. Constatam-se nessas sociedades um domínio dos
mídias por um partido, normalmente pela via da autocensura, uma disponibilidade
do poder em manipular a seu favor situações de conflito, o exacerbar do
nacionalismo e de questões identitárias e uma disposição das autoridades em pôr
em causa o primado da lei. A democracia nessas condições não passa de uma mera
fachada.
Vários
factores podem estar na origem dessas derivas. Desde logo, a fragilidade das
instituições democráticas que para se consolidarem têm uma luta tremenda a
travar contra a cultura política iliberal herdada dos regimes anteriores.
Também o facto de a sociedade civil que na maior parte das vezes é incipiente
ter dificuldades em se afirmar, enfrentando em muitos casos um Estado ainda
cioso do seu domínio sobre a vida económica, social e cultural do país. A
coroar todos esses constrangimentos convive-se mal com a ideia da igualdade de
todos perante a lei e com a exigência de que o Estado deve subordinar-se às
leis e prestar contas. Se não houver uma evolução positiva da sociedade e da economia
que contrarie a acção desses factores, tarde ou cedo haverá uma inflexão no
processo de consolidação democrática e as portas ficarão abertas para cenários
mais ou menos autoritários e de partidos hegemónicos. Já está a acontecer em
vários países e nenhuma democracia, em particular as mais recentes, está livre
de uma involução similar.
Cabo
Verde já vai com 15 anos de governo de um mesmo partido. Em si mesmo não é um
mal, até porque não há nenhum impedimento constitucional, mas sabe-se que mesmo
em países com forte tradição democrática a falta de alternância política
aumenta o risco das instituições serem afectadas negativamente. Prejudicadas
são, de imediato, a isenção e a imparcialidade exigidas à função pública.
Segue-se a partidarização da administração pública. Se havia dúvidas disso as
questões à volta do Fundo do Ambiente são elucidativas.
A
longa estadia no governo enfraquece os mecanismos de responsabilização.
Assiste-se permanentemente a uma espécie de batalha campal entre forças da
oposição e vozes da sociedade, por um lado, e o governo, pelo outro, para
apurar responsabilidades em qualquer matéria. Perante algo que corra mal seja
um naufrágio, relocalização de pessoas no Fogo, morte de gado, alocação de
fundos autónomos ou problemas na TACV ninguém quer assumir responsabilidade. O
governo tem uma particular forma de resposta sempre que confrontado. Segue uma
espécie de rotina: começa por declarar que a responsabilidade é de todos
para logo acrescentar que o governo já fez a sua parte e que toda ela está bem
feita. Não explica porquê há maus resultados, mas sente-se o aumento da
crispação política à volta da questão. Invariavelmente o governo que saiu há
quinze anos atrás é trazido à baila e acaba por ser culpabilizado pelos
problemas de hoje. O efeito é duplo sobre a sociedade. As pessoas aprendem a
calar-se para não serem identificadas com a oposição. Por outro lado, constatam
que, para quem tem Poder, a lei e as regras estabelecidas não têm que ser
cumpridas. Os ganhos para a paz e justiça que o Estado de Direito democrático promete
esfumam-se por ai. Inevitáveis são os estragos no tecido social e na confiança
entre as pessoas.
Há
quem argumente que uma democracia mais autoritária na linha de Singapura ou do
Ruanda pode acelerar o desenvolvimento. O problema é que para cada caso do tipo
Ruanda há múltiplos casos do tipo Zimbabwe em que o desenvolvimento continua
uma miragem. No caso de Cabo Verde em que a preocupação central do governo é
com o controlo e a manutenção do poder, dificilmente qualquer deriva
autoritária podia compensar ou legitimar-se em ganhos de crescimento, bem-estar
e desenvolvimento para todos. Não se iria fazer a aposta nos ingredientes
necessários para isso: a autonomia das pessoas, a iniciativa individual e o
respeito escrupuloso pela lei.
Preocupante
é notar o uso de outros ingredientes designadamente os nacionalistas e
identitários para ganhos políticos. O Estado até parece que já adoptou uma
ideologia oficial pela frequência com que Amílcar Cabral é referenciado nas
intervenções do primeiro-ministro e de outras entidades oficiais. A insistência
na ideologia de libertação e a secundarização da liberdade e da democracia na
hierarquia de valores não deixa de criar uma tensão permanente com a
Constituição cujos princípios, baseados na defesa da dignidade humana, são
frontalmente opostos. Tais desenvolvimentos não constituem um bom augúrio para
o futuro da democracia principalmente se um quarto mandato consecutivo vier a
precipitar um quadro hegemónico de poder.
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