Boaventura
Sousa Santos – Público, opinião
A
União Europeia pode estar a mudar no centro mais do que a periferia imagina.
O
fenómeno não é português. É global, embora em cada país assuma uma manifestação
específica. Consiste na agressividade inusitada com que a direita enfrenta
qualquer desafio à sua dominação, uma agressividade expressa em linguagem
abusiva e recurso a tácticas que roçam os limites do jogo democrático:
manipulação do medo de modo a eliminar a esperança, falsidades proclamadas como
verdades sociológicas, destempero emocional no confronto de ideias, etc., etc.
Entendo, por direita, o conjunto das forças sociais, económicas e políticas que
se identificam com os desígnios globais do capitalismo neoliberal e com o que
isso implica, ao nível das políticas nacionais, em termos de agravamento das
desigualdades sociais, da destruição do Estado social, do controlo dos meios de
comunicação e do estreitamento da pluralidade do espectro político. Donde vem
este radicalismo exercido por políticos e comentadores que até há pouco
pareciam moderados, pragmáticos, realistas com ideias ou idealistas sem
ilusões?
Estamos
a entrar em Portugal na segunda fase da implantação global do neoliberalismo. A
nível global, este modelo económico, social e político tem estas
características: prioridade da lógica de mercado na regulação não só da
economia como da sociedade no seu conjunto; privatização da economia e
liberalização do comércio internacional; diabolização do Estado enquanto
regulador da economia e promotor de políticas sociais; concentração da
regulação económica global em duas instituições multilaterais, ambas dominadas
pelo capitalismo euro-norte-americano (o Banco Mundial e o Fundo Monetário
Internacional) em detrimento das agências da ONU que antes supervisionavam a
situação global; desregulação dos mercados financeiros; substituição da
regulação económica estatal (hard law) pela autoregulação controlada pelas
empresas multinacionais (soft law). A partir da queda do Muro de Berlim, este
modelo assumiu-se como a única alternativa possível de regulação social e
económica. A partir daí, o objectivo foi transformar a dominação em hegemonia,
ou seja, fazer com que mesmo os grupos sociais prejudicados por este modelo
fossem levados a pensar que era o melhor para eles. E, de facto, este modelo
conseguiu nos últimos trinta anos grandes êxitos, um dos quais foi ter sido
adoptado na Europa por dois importantes partidos sociais-democratas (o partido
trabalhista inglês com Tony Blair e o partido social-democrata alemão com
Gerhard Schröder) e ter conseguido dominar a lógica das instituições europeias
(Comissão e BCE).
Mas
como qualquer modelo social, também este está sujeito a contradições e
resistências, e a sua consolidação tem tido alguns reveses. O modelo não está
plenamente consolidado. Por exemplo, ainda não se concretizou a Parceria
Transatlântica, e a Parceria Transpacífico pode não se concretizar. Perante a
constatação de que o modelo não está ainda plenamente consolidado, os seus
protagonistas (por detrás de todos eles, o capital financeiro) tendem a reagir
brutalmente ou não consoante a sua avaliação do perigo iminente. Alguns exemplos.
Surgiram os BRICS (Brasil, Rússia, India, China e Africa do Sul) com a intenção
de introduzir algumas nuances no modelo de globalização económica. A reacção
está a ser violenta e sobretudo o Brasil e a Rússia estão sujeitos a intensa
política de neutralização. A crise na Grécia, que antes de este modelo ter
dominado a Europa teria sido uma crise menor, foi considerada uma ameaça pela
possibilidade de propagação a outros países. A humilhação da Grécia foi o
princípio do fim da UE tal como a conhecemos. A possibilidade de um candidato
presidencial nos EUA que se autodeclara como socialista (ou seja, um
social-democrata europeu), Bernie Sanders, não representa, por agora, qualquer
perigo sério e o mesmo se pode dizer com a eleição de Jeremy Corbyn para secretário-geral
do Labour Party. Enquanto não forem perigo, não serão objecto de reação
violenta.
E
Portugal? A reação destemperada do Presidente da República a um qualquer
governo de esquerda parece indicar que o modelo neoliberal, que intensificou a
sua implantação no nosso país nos últimos quatro anos, vê em tal alternativa
política um perigo sério, e por isso reage violentamente. É preciso ter em
mente que só na aparência estamos perante uma polarização ideológica. O Partido
Socialista é um dos mais moderados partidos sociais-democratas da Europa. Do
que se trata é de uma defesa por todos os meios de interesses instalados ou em
processo de instalação. O modelo neoliberal só é anti-estatal enquanto não
captura o Estado, pois precisa decisivamente dele para garantir a concentração
da riqueza e para captar as oportunidades de negócios altamente rentáveis que o
Estado lhe proporciona. Devemos ter em mente que neste modelo os políticos são
agentes económicos e que a sua passagem pela política é decisiva para cuidar
dos seus próprios interesses económicos.
Mas
a procura da captura do Estado vai muito além do sistema político. Tem de
abarcar o conjunto das instituições. Por exemplo, há instituições que assumem
uma importância decisiva, como o Tribunal de Contas, porque estão sob a sua
supervisão negócios multimilionários. Tal como é decisivo capturar o sistema de
justiça e fazer com que ele actue com dois pesos e duas medidas: dureza na
investigação e punição dos crimes supostamente cometidos por políticos de
esquerda e negligência benévola no que respeita aos crimes cometidos pelos
políticos de direita. Esta captura tem precedentes históricos. Escrevi há cerca
de vinte anos: “ Ao longo do nosso século, os tribunais sempre foram, de tempos
a tempos, polémicos e objeto de acesso escrutínio público. Basta recordar os
tribunais da República de Weimar logo depois da revolução alemã (1918) e os
seus critérios duplos na punição da violência política da extrema-direita e da
extrema-esquerda. (Santos et al., Os Tribunais nas Sociedades
Contemporâneas - O caso português. Porto. Edições Afrontamento, 1996,
página 19). Nessa altura, estavam em causa crimes políticos, hoje estão em
causa crimes económicos.
Acontece
que, no contexto europeu, esta reacção violenta a um revés pode ela própria
enfrentar alguns reveses. A instabilidade conscientemente provocada pelo
Presidente da República (incitando os deputados socialistas à desobediência)
assenta no pressuposto de que a União Europeia está preparada para uma
defenestração final de toda a sua tradição social democrática, tendo em mente
que o que se passa hoje num país pequeno pode amanhã acontecer em Espanha ou
Itália. É um pressuposto arriscado, pois a União Europeia pode estar a mudar no
centro mais do que a periferia imagina. Sobretudo porque se trata por agora de
uma mudança subterrânea que só se pode vislumbrar nos relatórios cifrados dos
conselheiros de Angela Merkel. A pressão que a crise dos refugiados está a
causar sobre o tecido europeu e o crescimento da extrema-direita não
recomendará alguma flexibilidade que legitime o sistema europeu junto de
maiorias mais amplas, como a que nas últimas eleições votou em Portugal nos
partidos de esquerda? Não será preferível viabilizar um governo dirigido por um
partido inequivocamente europeísta e moderado a correr riscos de ingovernabilidade
que se podem estender a outros países? Não será de levar a crédito dos
portugueses o facto de estarem a procurar uma solução longe da crispação e
evolução errática da “solução” grega? E os jovens, que encheram há uns anos as
ruas e as praças com a sua indignação, como reagirão à posição afrontosamente
parcial do Presidente e à pulsão anti-institucional que a anima? Será que a
direita pensa que esta pulsão é um monopólio seu?
Na
resposta a estas perguntas está o futuro próximo do nosso país. Para já, uma
coisa é certa. O desnorte do Presidente da República estabeleceu o teste
decisivo a que os portugueses vão submeter os candidatos nas próximas eleições
presidenciais. Se for eleito(a), considera ou não que todos os partidos
democráticos fazem parte do sistema democrático em pé de igualdade? Se em
próximas eleições legislativas se vier a formar no quadro parlamentar uma
coligação de partidos de esquerda com maioria e apresentar uma proposta de
governo, dar-lhe-á ou não posse?
*Director
do Centro de Estudos Sociais, Laboratório Associado, da Universidade de Coimbra
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