Carlos
Sá Nogueira – A Nação, opinião
Tem
sido recorrente perguntar se o PAICV é um partido idiossincraticamente de
compleição democrática, atendendo aos sucessivos contextos em que se formou e
se foi formatando.
As
diferenças com os partidos modernos e democráticos são inúmeras, designadamente
nos traços constitutivos, na origem genética, nos percursos, nas motivações
políticas, na natureza funcional, nos processos de decisão, nos mecanismos de
participação, na mentalidade exclusivista e na estrutura e composição dos
diferentes órgãos.
Enquadra-se
na classe de organizações muito rígidas e hierarquizadas, marcadas por vínculos
de simpatia e de fidelidades rigorosas. Para fora da família assentam a sua
prática na exclusão e na marginalização.
Tem
enorme apego ao poder, à centralização e à concentração, por força de
desconfianças e sentimento de exclusividade. Exerce o poder tendo o Estado como
seu refém e não resiste à tentação totalitária, de se erguer como centro controlador
e manipulador de instituições e consciências, usando da arbitrariedade e da
discricionariedade como arma de discriminação.
Têm
grande propensão para dominar, controlar e manipular, sobretudo movimentos
sociais, manifestações culturais, cidadãos activos, organizações de cidadania,
órgãos de comunicação social e demais actividades que englobem multidões. Por
vezes desconfiam do próprio silêncio, como se as pessoas não tivessem o direito
de não falar ou opinar.
Preferem
lideranças de incidência pessoal e personalizada, na medida em que têm
apetência pela idolatria e pautam-se pelo culto de personalidade, perseguindo
sempre a vocação hegemónica na linha de prestação de vassalagem.
Se
o poder é centralizado já as responsabilidades são partilhadas, o que, em si,
demonstra os automatismos, a mecanicidade e irracionalidade que campeiam nos
processos de construção de consensos.
As
disputas internas são condicionadas pela disciplina partidária à mistura com o
pressuposto da unidade, por sinal castradora e limitadora.
Os
processos decisórios são eivados de secretismos doentios, como reflexo de
hábitos importados das técnicas de guerrilha.
A
burocracia dificilmente será combatida com frontalidade, porquanto também
constitui forma de controlar, segregar e bloquear.
O
contraditório, quando a ele é obrigado, é exercido sistematicamente com o
propósito de destruir e não de desconstruir, em decorrência da matriz
político-ideológica.
Negação
do individualismo
A
negação do individualismo e da dignidade humana individual é feita pela via da
prática e institucionalização do colectivismo, onde a valorização e o
reconhecimento do indivíduo são secundarizados no mar da abstracção.
Nessa
lógica, não é de se estranhar que esse partido possa ser classificado como uma
organização de inspiração e doutrinação comunista, a partir de relações
mantidas no passado com o bloco pró-soviético, o qual ajudou a manter a
guerrilha até o seu desfecho final.
Eis,
pois, a razão por que a maioria dos apoios de natureza marcadamente militar
terá vindo do lado comunista, ciente de que a moeda de troca seria sempre a
vinculação a doutrinas e processos políticos constitutivos da esquerda
comunista.
E
foi o que se viu e veio a acontecer. O modelo político de pensamento único
adoptado na guerrilha foi posteriormente transposto para Cabo Verde
independente, enquanto traço dominante e de dominação, não dando sequer espaço
a outros grupos para se afirmarem como partidos políticos, na qualidade de
possíveis alternativas.
Todavia,
não foi só o pensamento único a ser importado para Cabo Verde. Com ele chegaram
os guerrilheiros, o armamento, a estrutura, os métodos e os processos, todos
eles com o fito de semear o medo, fazendo uso de campanhas sistemáticas de
intimidação.
Resulta
claro que partidos forjados em tempo de guerra dificilmente se adaptam ao tempo
de paz, e muito menos à democracia.
A
sociedade, vivendo momentos prolongados e angustiantes de perda de capacidade
de expressão e manifestação, foi-se encolhendo, já que o direito à palavra
estava reservado aos chamados “melhores filhos da terra”, isto é, àqueles que
compunham a nomenclatura do regime, por via de cumplicidade partidária e de
integração na família ou núcleo político dominante.
Esse
encolhimento da sociedade não se fez, porém, sem impulsos de revolta aparente,
que, no entanto, eram de imediato neutralizados pela força, através de agentes
armados (milícias populares e polícia política) ao serviço do regime, devidamente
treinados para o efeito.
Enquanto
a sociedade ia vivendo num colete-de-forças, sem vez nem voz, o PAICV se
desdobrava em acções e actividades demagógicas de teor restritivamente social e
selectivo, fazendo emergir organizações de massas (Pioneiros “Abel Djassi”,
JAAC-CV e OMCV, que mais não eram que o suporte partidário suficientemente
doutrinado e destinado a criar espaços de controlo e dominação contínua.
São
justamente esses agentes das unidades constitutivas das organizações de massas
que, erigindo-se em políticos de segunda e terceira geração do PAICV, irão
tentar, com relativo sucesso, tomar de assalto a direcção desse partido,
assumindo a sua condução a partir de 1991.
Na
verdade, eles não representam gerações de rotura, mas sim de continuidade
reforçada e de utilização mais sofisticada dos processos e métodos repressivos
e regressivos que se entranharam no corpo partidário. Senão vejamos.
A
partidarização desenfreada da máquina do Estado nos moldes em que hoje se
assiste, não é senão a reprodução e aplicação avançada do modelo de
“Partido-Estado” vigente no antigo regime de partido único.
A
centralidade excessiva do Estado, sob o comando do PAICV, constitui um processo
e mecanismo velado, destinado a sufocar o desenvolvimento do privado, aliás
sector contra o qual esse partido, enquanto tutela do Estado, vem agindo
abertamente de forma hostil e concorrencial.
Herança
perversa
Mas
a herança perversa não fica por aí. A natureza persecutória e selectiva está
bem presente nos inúmeros processos de favorecimento já denunciados,
designadamente no domínio da educação e cultura, da arte, no plano das ONGs e
na ocupação de elevados postos da Administração Pública. E como se não bastasse
este mesmo partido que outrora buscou dividir e silenciar as ilhas, fá-lo hoje
com a maior naturalidade e desplante, esfrangalhando completamente os escassos
recursos globais que deviam estar a ser juntados e capitalizados em prol da
riqueza nacional. Isso para o PAICV não tem importância. O que importa é o
poder. Para tanto, nada como dividir para reinar.
O
PAICV de outrora que reprimiu, perseguiu, discriminou e castigou não se
diferencia do PAICV de hoje que também reprime, persegue, discrimina e castiga
numa outra dimensão, provavelmente mais dolorosa e mais danosa, pelos efeitos
nocivos de longo prazo que provoca na alma dos cidadãos e na alma colectiva. A
título de exemplo, as transferências forçadas, a tortura psicológica no
trabalho, a discriminação, a marginalização, a colocação na prateleira, a
privação de trabalho e de ferramentas indispensáveis, a não promoção, etc.
Com
efeito, enquanto a sociedade se debate com a sua libertação e sobrevivência, o
partido no poder ganha tempo no assalto final ao aparelho do Estado e na
distribuição de tachos e benesses.
A
luta interna que dilacera o PAICV, nada tem a ver com os projectos políticos de
Cabo Verde. Ela é, acima de tudo, fruto de uma divisão não consensualizada das
partes gordas do país que, pela sua suculência nutritiva e geradora de
prosperidade, tem que ser cuidadosamente distribuída, já que o partido
engrossou e há mais bocas exigindo a sua quota-parte. Foi o que aconteceu
internamente com as últimas presidenciais entre Manuel Inocêncio e Aristides
Lima. E também o que ora está acontecendo entre José Maria Neves, Janira H.
Almada e Felisberto Vieira.
São
sintomas e tiques de autoritarismo e de totalitarismo que emergem quando está
em causa o poder e sua concentração. Há-de ser seguramente nessa linha que o
PAICV se revela inquieto, por não ter, no passado recente, logrado alcançar, de
forma cumulativa, o Governo e a Presidência da República. E não será por força
dos mesmos tiques e manifestações inusitadas que JMN vem demonstrando certa
inquietude e perturbação, movido pela ambição, ainda que de forma velada, de
chegar, no futuro, a Presidência da República?
Nesta
esteira, prudente é lutar com um olho bem atento nessa parcela, enquanto o
outro aguarda por novas oportunidades que se avizinham e que, embora sem muitas
garantias, servem pelo menos para alimentar jogos, distrair os incautos e
sonhar com a possibilidade de um dia poder exercer, a um nível diferente, outro
tipo de represália, em jeito de vingança.
Enquanto
isso vai acontecendo, os outros que não são do partido no poder vão se
digladiando num exercício acrobático à espera que, por acidental golpe de
felicidade, alguma migalha caia fora do espaço delimitado.
Que
sufoco é este de operar num partido em que para sobreviver é preciso exercitar
golpes, ser trapezista, vender a alma e venerar sem fé nem bandeira.
O
PAICV está deveras desnorteado, na medida em que os recursos estão a escassear
e súbditos estão a crescer à dimensão e extensão das carências nacionais, fruto
de uma gestão governativa danosa, parasitária e dilapidadora.
Neste
imenso mar das tormentas e nos tempos que correm, quem terá tempo e
disponibilidade para pensar em democracia no seio desse partido? Valha o
contorcionismo democrático e o Estado de Direito seletivo e segregacionista,
enquanto manobra de recurso preferencialmente adoptado no regime imposto pelo
PAICV.
Espera-se,
porém, que nessa sangrenta arena os principais responsáveis do desaire não
venham a servir de carne para abutres, esfomeados e revoltados como ficarão os
seus seguidores.
Até
lá, os mais cautelosos que se ponham a fresco e em lugar menos inseguro. Os
porcos estão em delírio e o abismo é o desfecho final.
E,
nesta toada, será que o PAICV, na sua sanha totalitária, não acabará por ter o
desplante e a ousadia de “demitir” o Estado, a Administração Pública e o Povo,
se em 2016 não formos capazes de exibir com determinação e firmeza o cartão
vermelho ao PAICV, ao JMN e à JHA?
Sem comentários:
Enviar um comentário