sábado, 12 de dezembro de 2015

Cabo Verde. Partidos hegemónicos, lideranças hegemónicas: uma ameaça permanente à democracia



Carlos Sá Nogueira – A Nação, opinião

Tem sido recorrente perguntar se o PAICV é um partido idiossincraticamente de compleição democrática, atendendo aos sucessivos contextos em que se formou e se foi formatando.

As diferenças com os partidos modernos e democráticos são inúmeras, designadamente nos traços constitutivos, na origem genética, nos percursos, nas motivações políticas, na natureza funcional, nos processos de decisão, nos mecanismos de participação, na mentalidade exclusivista e na estrutura e composição dos diferentes órgãos.

Enquadra-se na classe de organizações muito rígidas e hierarquizadas, marcadas por vínculos de simpatia e de fidelidades rigorosas. Para fora da família assentam a sua prática na exclusão e na marginalização.

Tem enorme apego ao poder, à centralização e à concentração, por força de desconfianças e sentimento de exclusividade. Exerce o poder tendo o Estado como seu refém e não resiste à tentação totalitária, de se erguer como centro controlador e manipulador de instituições e consciências, usando da arbitrariedade e da discricionariedade como arma de discriminação.

Têm grande propensão para dominar, controlar e manipular, sobretudo movimentos sociais, manifestações culturais, cidadãos activos, organizações de cidadania, órgãos de comunicação social e demais actividades que englobem multidões. Por vezes desconfiam do próprio silêncio, como se as pessoas não tivessem o direito de não falar ou opinar.

Preferem lideranças de incidência pessoal e personalizada, na medida em que têm apetência pela idolatria e pautam-se pelo culto de personalidade, perseguindo sempre a vocação hegemónica na linha de prestação de vassalagem.

Se o poder é centralizado já as responsabilidades são partilhadas, o que, em si, demonstra os automatismos, a mecanicidade e irracionalidade que campeiam nos processos de construção de consensos.

As disputas internas são condicionadas pela disciplina partidária à mistura com o pressuposto da unidade, por sinal castradora e limitadora.

Os processos decisórios são eivados de secretismos doentios, como reflexo de hábitos importados das técnicas de guerrilha.

A burocracia dificilmente será combatida com frontalidade, porquanto também constitui forma de controlar, segregar e bloquear.

O contraditório, quando a ele é obrigado, é exercido sistematicamente com o propósito de destruir e não de desconstruir, em decorrência da matriz político-ideológica.

Negação do individualismo

A negação do individualismo e da dignidade humana individual é feita pela via da prática e institucionalização do colectivismo, onde a valorização e o reconhecimento do indivíduo são secundarizados no mar da abstracção.

Nessa lógica, não é de se estranhar que esse partido possa ser classificado como uma organização de inspiração e doutrinação comunista, a partir de relações mantidas no passado com o bloco pró-soviético, o qual ajudou a manter a guerrilha até o seu desfecho final.    

Eis, pois, a razão por que a maioria dos apoios de natureza marcadamente militar terá vindo do lado comunista, ciente de que a moeda de troca seria sempre a vinculação a doutrinas e processos políticos constitutivos da esquerda comunista.

E foi o que se viu e veio a acontecer. O modelo político de pensamento único adoptado na guerrilha foi posteriormente transposto para Cabo Verde independente, enquanto traço dominante e de dominação, não dando sequer espaço a outros grupos para se afirmarem como partidos políticos, na qualidade de possíveis alternativas.

Todavia, não foi só o pensamento único a ser importado para Cabo Verde. Com ele chegaram os guerrilheiros, o armamento, a estrutura, os métodos e os processos, todos eles com o fito de semear o medo, fazendo uso de campanhas sistemáticas de intimidação.

Resulta claro que partidos forjados em tempo de guerra dificilmente se adaptam ao tempo de paz, e muito menos à democracia.

A sociedade, vivendo momentos prolongados e angustiantes de perda de capacidade de expressão e manifestação, foi-se encolhendo, já que o direito à palavra estava reservado aos chamados “melhores filhos da terra”, isto é, àqueles que compunham a nomenclatura do regime, por via de cumplicidade partidária e de integração na família ou núcleo político dominante.

Esse encolhimento da sociedade não se fez, porém, sem impulsos de revolta aparente, que, no entanto, eram de imediato neutralizados pela força, através de agentes armados (milícias populares e polícia política) ao serviço do regime, devidamente treinados para o efeito.

Enquanto a sociedade ia vivendo num colete-de-forças, sem vez nem voz, o PAICV se desdobrava em acções e actividades demagógicas de teor restritivamente social e selectivo, fazendo emergir organizações de massas (Pioneiros “Abel Djassi”, JAAC-CV e OMCV, que mais não eram que o suporte partidário suficientemente doutrinado e destinado a criar espaços de controlo e dominação contínua.

São justamente esses agentes das unidades constitutivas das organizações de massas que, erigindo-se em políticos de segunda e terceira geração do PAICV, irão tentar, com relativo sucesso, tomar de assalto a direcção desse partido, assumindo a sua condução a partir de 1991.

Na verdade, eles não representam gerações de rotura, mas sim de continuidade reforçada e de utilização mais sofisticada dos processos e métodos repressivos e regressivos que se entranharam no corpo partidário. Senão vejamos.

A partidarização desenfreada da máquina do Estado nos moldes em que hoje se assiste, não é senão a reprodução e aplicação avançada do modelo de “Partido-Estado” vigente no antigo regime de partido único.

A centralidade excessiva do Estado, sob o comando do PAICV, constitui um processo e mecanismo velado, destinado a sufocar o desenvolvimento do privado, aliás sector contra o qual esse partido, enquanto tutela do Estado, vem agindo abertamente de forma hostil e concorrencial.

Herança perversa

Mas a herança perversa não fica por aí. A natureza persecutória e selectiva está bem presente nos inúmeros processos de favorecimento já denunciados, designadamente no domínio da educação e cultura, da arte, no plano das ONGs e na ocupação de elevados postos da Administração Pública. E como se não bastasse este mesmo partido que outrora buscou dividir e silenciar as ilhas, fá-lo hoje com a maior naturalidade e desplante, esfrangalhando completamente os escassos recursos globais que deviam estar a ser juntados e capitalizados em prol da riqueza nacional. Isso para o PAICV não tem importância. O que importa é o poder. Para tanto, nada como dividir para reinar.

O PAICV de outrora que reprimiu, perseguiu, discriminou e castigou não se diferencia do PAICV de hoje que também reprime, persegue, discrimina e castiga numa outra dimensão, provavelmente mais dolorosa e mais danosa, pelos efeitos nocivos de longo prazo que provoca na alma dos cidadãos e na alma colectiva. A título de exemplo, as transferências forçadas, a tortura psicológica no trabalho, a discriminação, a marginalização, a colocação na prateleira, a privação de trabalho e de ferramentas indispensáveis, a não promoção, etc.

Com efeito, enquanto a sociedade se debate com a sua libertação e sobrevivência, o partido no poder ganha tempo no assalto final ao aparelho do Estado e na distribuição de tachos e benesses.

A luta interna que dilacera o PAICV, nada tem a ver com os projectos políticos de Cabo Verde. Ela é, acima de tudo, fruto de uma divisão não consensualizada das partes gordas do país que, pela sua suculência nutritiva e geradora de prosperidade, tem que ser cuidadosamente distribuída, já que o partido engrossou e há mais bocas exigindo a sua quota-parte. Foi o que aconteceu internamente com as últimas presidenciais entre Manuel Inocêncio e Aristides Lima. E também o que ora está acontecendo entre José Maria Neves, Janira H. Almada e Felisberto Vieira.

São sintomas e tiques de autoritarismo e de totalitarismo que emergem quando está em causa o poder e sua concentração. Há-de ser seguramente nessa linha que o PAICV se revela inquieto, por não ter, no passado recente, logrado alcançar, de forma cumulativa, o Governo e a Presidência da República. E não será por força dos mesmos tiques e manifestações inusitadas que JMN vem demonstrando certa inquietude e perturbação, movido pela ambição, ainda que de forma velada, de chegar, no futuro, a Presidência da República?      

Nesta esteira, prudente é lutar com um olho bem atento nessa parcela, enquanto o outro aguarda por novas oportunidades que se avizinham e que, embora sem muitas garantias, servem pelo menos para alimentar jogos, distrair os incautos e sonhar com a possibilidade de um dia poder exercer, a um nível diferente, outro tipo de represália, em jeito de vingança.

Enquanto isso vai acontecendo, os outros que não são do partido no poder vão se digladiando num exercício acrobático à espera que, por acidental golpe de felicidade, alguma migalha caia fora do espaço delimitado.

Que sufoco é este de operar num partido em que para sobreviver é preciso exercitar golpes, ser trapezista, vender a alma e venerar sem fé nem bandeira.

O PAICV está deveras desnorteado, na medida em que os recursos estão a escassear e súbditos estão a crescer à dimensão e extensão das carências nacionais, fruto de uma gestão governativa danosa, parasitária e dilapidadora.

Neste imenso mar das tormentas e nos tempos que correm, quem terá tempo e disponibilidade para pensar em democracia no seio desse partido? Valha o contorcionismo democrático e o Estado de Direito seletivo e segregacionista, enquanto manobra de recurso preferencialmente adoptado no regime imposto pelo PAICV.

Espera-se, porém, que nessa sangrenta arena os principais responsáveis do desaire não venham a servir de carne para abutres, esfomeados e revoltados como ficarão os seus seguidores.  

Até lá, os mais cautelosos que se ponham a fresco e em lugar menos inseguro. Os porcos estão em delírio e o abismo é o desfecho final.

E, nesta toada, será que o PAICV, na sua sanha totalitária, não acabará por ter o desplante e a ousadia de “demitir” o Estado, a Administração Pública e o Povo, se em 2016 não formos capazes de exibir com determinação e firmeza o cartão vermelho ao PAICV, ao JMN e à JHA?

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