Carvalho
da Silva – Jornal de Notícias, opinião
Em
quarenta dias, pela ação da direita do Governo e do Partido Socialista que o
apoia, mas também em resultado dos compromissos assumidos com o Bloco de
Esquerda, o Partido Comunista e os Verdes, e pela intervenção destes na
Assembleia da República (AR), foram dados ou estão em curso pequenos passos
corajosos de justiça e dignidade - desde o aumento do SMN, à reposição de
mínimos sociais, à reversão de algumas privatizações e concessões, entre muitos
outros - que, se prosseguidos com determinação e coerência, podem ir afastando
medos, trazendo a esperança e a confiança necessárias ao desenvolvimento do
país.
O
caminho é estreito e de forma alguma se pode confundir estes importantíssimos
pequenos passos com uma política alternativa. A construção de uma hegemonia na
sociedade capaz de lhe dar suporte - que penso ser possível, se o povo for
sentindo que estas políticas são assumidas por ele e em resultado das suas
reivindicações e anseios - será um processo muito laborioso a nível interno e
na ultrapassagem dos espartilhos colocados pela União Europeia.
O
entendimento à Esquerda, conseguido na sequência das eleições de 4 de outubro,
proporcionou a todos os portugueses que se opuseram ao descalabro experimentado
em cinco anos de empobrecimento uma certa sensação de objetivo atingido e de
agradável surpresa, que desencadeou uma espécie de alívio. O efeito desses
sentimentos marca ainda o comportamento de muitos.
O
novo ciclo político é muito desafiador: não podemos permitir o prolongamento
dessa descompressão, sob pena de se converter em passividade com efeitos
nefastos no imediato, por exemplo, favorecendo a eleição de um presidente da
República da Direita e, a prazo, comprometendo a busca e a afirmação de uma
efetiva alternativa de políticas.
A
existência de uma nova maioria na AR e de um Governo dotado de um programa
apoiado por essa maioria não deve traduzir-se numa confiança despreocupada ou
preguiçosa, ou numa delegação de responsabilidades por parte de movimentos
sociais e de cidadãos que se opuseram à austeridade. A mobilização de vontades
e de recursos dos movimentos sociais e da cidadania é, pelo contrário, uma
condição de sucesso da nova governação.
O
novo contexto não dispensa um aprofundamento da crítica à interpretação
hegemónica das crises que nos tem subjugado, ou seja, à cartilha neoliberal que
a alimenta. O insucesso político da coligação de partidos e forças económicas e
sociais que promoveu a austeridade significou um rude golpe para a Direita e
forçou-a a um recuo, mas não estamos perante uma derrota da ideologia que lhe
serve de suporte, apesar das (aparentes) alterações programáticas e da mudança
de alguns protagonistas. A "narrativa" das crises laboriosamente
construída e militantemente disseminada no espaço público, sobretudo a partir
de 2010, continua a influenciar muito o debate público e a condicionar a
capacidade coletiva de imaginar e afirmar alternativas de política. É preciso,
por isso, continuar a aprofundar-se o esclarecimento das causas das crises e a
aperfeiçoar a linguagem usada para comunicar este esclarecimento. Há muitos
portugueses encurralados pelos bloqueios em que foram colocadas as suas vidas
e, por outro lado, o enredo de jogos de interesses promíscuos e de "roubo
legal" é quase indecifrável para o comum cidadão.
É
preciso um maior contributo da cidadania à elaboração de alternativas. A
conceção de alternativas de política em domínios cruciais (União Europeia,
segurança social, combate à pobreza, relações laborais, desenvolvimento
territorial, sistema financeiro e endividamento...) constitui uma tarefa
prioritária dos partidos políticos, mas não pode ser entregue apenas aos
partidos e ao diálogo entre eles, ou à Administração Pública. No novo contexto,
é mais importante do que nunca construir um espaço amplo de análise, construção
e deliberação, que transcenda fronteiras partidárias, ideológicas e cognitivas,
onde possam emergir visões, programas, propostas e dinâmicas de mobilização da
sociedade.
Em
todos os campos da vida social e da intervenção cidadã e política, é preciso
não delegar.
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