Carvalho
da Silva* – Jornal de Notícias, opinião
Será
que vamos ver - quando menos seria de esperar - o Serviço Nacional de Saúde
(SNS) definhar e caminhar para um sistema sustentado em seguros de saúde e na
medicina privada, sem uma discussão pública, aberta e assumida, sobre o modo
como o direito à saúde deve ser assegurado em Portugal?
São
fortes os interesses que apostam nessa via: desejam-no os grupos financeiros
que veem na saúde um negócio ainda melhor que o da indústria de armamento.
Desejam-no partidos de Direita que assumem as tarefas políticas destes grupos.
Desejam-no "especialistas" discretos, colocados em posições-chave da
política e da administração pública, rendidos à modernidade de tudo
mercantilizar.
O
extraordinário avanço conseguido nos indicadores de saúde em Portugal depois do
25 de Abril, sem dúvida uma das maiores conquistas da democracia, jamais teria
sido obtido com um sistema de saúde de medicina convencionada e os portugueses
a pagarem seguros de saúde.
Os
ataques ao SNS vêm de longe e têm tido vários episódios: taxas moderadoras que
foram crescendo; acordos do Estado com privados fornecendo utentes e dinheiro
para a sua viabilização; encerramento de várias maternidades num processo cheio
de contradições; especialidades destruídas em hospitais em nome de
rentabilizações que iam ser asseguradas nos centros hospitalares e hoje
assustamo-nos com os problemas daí resultantes; em simultâneo, assistiu-se à
abertura de clínicas privadas em alguns espaços e valências fortemente
debilitados por aquelas medidas e ao engordar do escandaloso negócio da
cedência de mão de obra médica. O anterior Governo tinha no SNS um inimigo a
abater mas, habilidoso, foi-o podando como se o estivesse a tratar.
Não
podemos permitir mudanças profundas no sistema pela via do facto consumado e,
muito menos, que a deliberação pública seja tomada pelos que têm um interesse
na privatização da saúde. Eles sabem muito bem que os portugueses, depois de esclarecidos
e interrogados, dificilmente escolheriam o sistema de seguro e de provisão
privada em substituição do SNS.
Está
agora colocada na agenda política uma proposta que perspetiva o alargamento da
ADSE a um maior número de beneficiários. A ADSE é um subsistema de saúde
assente numa espécie de seguro público. O sistema - desde 2014 totalmente
sustentado pelos descontos feitos nos salários dos trabalhadores da
Administração Pública e nas pensões dos aposentados - paga serviços privados de
assistência médica, comparticipa despesas em medicamentos e outras despesas da
saúde como qualquer seguro. É curioso que o Governo tenha criado uma comissão
para a "reforma do modelo da ADSE" em que não participam
representantes de quem a paga.
A
ADSE é o grande "cliente" do setor privado, entretanto outras áreas
do SNS também vão entrando. Será por isso que as forças de Direita nunca
sugeriram a extinção da ADSE?
Têm
razão os que alertam que o alargamento da ADSE a um maior número de
beneficiários, perspetivando chegar a todos os que o queiram subscrever, como
defende o CDS, é um passo de gigante na direção da privatização quase total do
setor da saúde. A ADSE privatizada seria um seguro de saúde como qualquer
outro. Um seguro caro, a encarecer tanto mais quanto mais velhos e doentes
formos. Os centros de saúde e os hospitais inseridos nessas lógicas seriam um
simples negócio que os tornaria mais dispendiosos e inacessíveis para a
maioria. As despesas em saúde aumentariam e, como acontece por exemplo nos EUA,
transformar-se-iam num fardo, esse sim insustentável. O que por fim restaria do
SNS seria um sistema de último recurso e muito má qualidade para quem não
pudesse pagar os seguros de saúde.
É
isto que queremos? Ou preferimos um SNS de melhor qualidade ao serviço de todos,
financiado por todos na medida dos recursos económicos de cada um?
O
atual Governo tem a obrigação de prestar aos portugueses informação séria sobre
as origens, a história e a situação atual da ADSE e de todos os subsistemas
existentes em vez de, seguindo princípios neoliberais, criar ilusões quanto às
condições do futuro e atirar os portugueses uns contra os outros.
Mudanças
estruturais, escolhas de modelo social, à socapa é que não!
*Investigador e professor universitário
Sem comentários:
Enviar um comentário