segunda-feira, 21 de março de 2016

Portugal. ADSE E O DIREITO À SAÚDE



Carvalho da Silva* – Jornal de Notícias, opinião

Será que vamos ver - quando menos seria de esperar - o Serviço Nacional de Saúde (SNS) definhar e caminhar para um sistema sustentado em seguros de saúde e na medicina privada, sem uma discussão pública, aberta e assumida, sobre o modo como o direito à saúde deve ser assegurado em Portugal?

São fortes os interesses que apostam nessa via: desejam-no os grupos financeiros que veem na saúde um negócio ainda melhor que o da indústria de armamento. Desejam-no partidos de Direita que assumem as tarefas políticas destes grupos. Desejam-no "especialistas" discretos, colocados em posições-chave da política e da administração pública, rendidos à modernidade de tudo mercantilizar.

O extraordinário avanço conseguido nos indicadores de saúde em Portugal depois do 25 de Abril, sem dúvida uma das maiores conquistas da democracia, jamais teria sido obtido com um sistema de saúde de medicina convencionada e os portugueses a pagarem seguros de saúde.

Os ataques ao SNS vêm de longe e têm tido vários episódios: taxas moderadoras que foram crescendo; acordos do Estado com privados fornecendo utentes e dinheiro para a sua viabilização; encerramento de várias maternidades num processo cheio de contradições; especialidades destruídas em hospitais em nome de rentabilizações que iam ser asseguradas nos centros hospitalares e hoje assustamo-nos com os problemas daí resultantes; em simultâneo, assistiu-se à abertura de clínicas privadas em alguns espaços e valências fortemente debilitados por aquelas medidas e ao engordar do escandaloso negócio da cedência de mão de obra médica. O anterior Governo tinha no SNS um inimigo a abater mas, habilidoso, foi-o podando como se o estivesse a tratar.

Não podemos permitir mudanças profundas no sistema pela via do facto consumado e, muito menos, que a deliberação pública seja tomada pelos que têm um interesse na privatização da saúde. Eles sabem muito bem que os portugueses, depois de esclarecidos e interrogados, dificilmente escolheriam o sistema de seguro e de provisão privada em substituição do SNS.

Está agora colocada na agenda política uma proposta que perspetiva o alargamento da ADSE a um maior número de beneficiários. A ADSE é um subsistema de saúde assente numa espécie de seguro público. O sistema - desde 2014 totalmente sustentado pelos descontos feitos nos salários dos trabalhadores da Administração Pública e nas pensões dos aposentados - paga serviços privados de assistência médica, comparticipa despesas em medicamentos e outras despesas da saúde como qualquer seguro. É curioso que o Governo tenha criado uma comissão para a "reforma do modelo da ADSE" em que não participam representantes de quem a paga.

A ADSE é o grande "cliente" do setor privado, entretanto outras áreas do SNS também vão entrando. Será por isso que as forças de Direita nunca sugeriram a extinção da ADSE?

Têm razão os que alertam que o alargamento da ADSE a um maior número de beneficiários, perspetivando chegar a todos os que o queiram subscrever, como defende o CDS, é um passo de gigante na direção da privatização quase total do setor da saúde. A ADSE privatizada seria um seguro de saúde como qualquer outro. Um seguro caro, a encarecer tanto mais quanto mais velhos e doentes formos. Os centros de saúde e os hospitais inseridos nessas lógicas seriam um simples negócio que os tornaria mais dispendiosos e inacessíveis para a maioria. As despesas em saúde aumentariam e, como acontece por exemplo nos EUA, transformar-se-iam num fardo, esse sim insustentável. O que por fim restaria do SNS seria um sistema de último recurso e muito má qualidade para quem não pudesse pagar os seguros de saúde.

É isto que queremos? Ou preferimos um SNS de melhor qualidade ao serviço de todos, financiado por todos na medida dos recursos económicos de cada um?

O atual Governo tem a obrigação de prestar aos portugueses informação séria sobre as origens, a história e a situação atual da ADSE e de todos os subsistemas existentes em vez de, seguindo princípios neoliberais, criar ilusões quanto às condições do futuro e atirar os portugueses uns contra os outros.

Mudanças estruturais, escolhas de modelo social, à socapa é que não!

*Investigador e professor universitário

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