quarta-feira, 30 de março de 2016

SOMÁLIA: TERRA QUEIMADA



Rui Peralta, Luanda 

As Forças Armadas da Somália (SNA), compostas por 20 mil elementos, constituem uma das poucas instituições do Estado Somali que demonstram coesão e um elevado espirito de responsabilidade patriótica. Cerca de 7,5% dos seus combatentes são mulheres (aproximadamente mil e 500 mulheres), algumas delas oficiais e comandantes operacionais. Isto num país mergulhado no caos, uma nação destruturada, onde as culturas tradicionais são patriarcais e atribuem às mulheres funções domésticas. A grande maioria do corpo feminino somali encontra-se nos serviços de saúde, logística e patrulhamento, embora existam mulheres nas frentes de combate (em numero crescente).

Esta questão das mulheres nas Força Armadas foi aproveitada pela al-Shabab que passou a acusar o governo somali de estar a “perverter a tradição islâmica e a desafiar os ensinamentos do Profeta”, campanha que a organização desenvolveu nas aldeias, incentivando os homens a proibir as mulheres a vestirem o uniforme e a alistarem-se nas forças armadas. Desde que exerce a sua actividade terrorista a al-Shabab, afiliada da al-Qaeda, escolhe os seus alvos entre o governo federal e as forças de paz da UA (AMISOM) compostas por 22 mil elementos. Após a ofensiva da AMISOM em 2011-2012, a al-Shabab perdeu o controlo das cidades, embora continue a controlar vastas áreas rurais, onde exerce uma dura versão da Sharia, a lei islâmica. A organização impõe códigos de conduta para as mulheres, o que devem vestir, comer, fazer, etc.. As mulheres não podem expor nenhuma parte do corpo, excepto os olhos. Em caso de não cumprimento são acusadas de adultério e apedrejadas até á morte.

Na Somália 99,8% da população é islâmica, maioritariamente sunita. A destruturação, a falta de entendimento entre as forças politica e o caos a que o país chegou (dominado por “senhores da guerra”), associados aos factores culturais levaram a um rápido crescimento da al-Shabab, que era portadora de uma imagem de ordem. Formada durante a última invasão etíope (2006) a al-Shabab implementou-se no terreno e chegou mesmo a ocupar uma parte da capital somali, Mogadíscio. Dominou vastas zonas do país, mas foi forçada a desocupar as cidades que dominava e a sua acção no terreno limita-se, agora, a algumas áreas rurais.

Nos últimos anos, a organização incrementou os ataques a alvos civis (Em Janeiro atacaram um popular restaurante em Mogadíscio, provocando 20 mortos). O grupo é constituído por cerca de 8 mil combatentes caracterizados por uma grande mobilidade, que no inicio do ano atacaram uma base das forças da UA, matando mais de 100 soldados (algumas fontes revelam 200) quenianos, em El Adde, na região de Gedo.

Após esse ataque surgiram rumores que a al-Shabab preparava-se para juntar-se ao Estado Islâmico (ISIS). O ministro queniano da defesa declarou que estão em curso investigações sobre o ataque às tropas quenianas em El Adde que comprovam a participação do ISIS. Por outro lado a policia queniana afirma que a al-Shabab dividiu-se em duas facções, após esse ataque às forças da UA. Uma das facções mantem-se leal á al-Qaeda (e esta parece ser maioritária no seio do grupo) enquanto a outra quer estreitar os laços com o Daesh, facção liderada por um comandante da região de Puntland, no Norte do país.

As declarações do ministro queniano da defesa não parecem ter substância e até agora aguarda-se que os quenianos apresentem provas. De facto o ataque a El Adde foi efectuado por combatentes da al-Shabab muito próximos á al-Qaeda, sendo grande parte dos elementos que tomaram parte nessa acção, do núcleo formado por Saleh Ali Nabhan, um queniano que foi fundador da célula da al-Qaeda na África Oriental, morto pelas forças norte-americanas na Somália, em 2009. O ataque foi uma prova que a al-Shabab endureceu a sua posição, mas permanece leal á al-Qaeda. Possivelmente a posição do Quénia é para “inglês ver”, pois se a ameaça ISIS for ampliada torna-se maior a assistência estrangeira (o que implica menos custos para o Quénia).

Os quenianos observaram os acontecimentos na região do Lago Chade, afectada pelo Boko Haram, um movimento originário do nordeste da Nigéria, que aderiu ao ISIS em 2015, passando a expandir as suas operações no país, nos Camarões e no Chade. Ao aderir ao ISIS o Boko Haram despertou, também, a atenção internacional. Em Outubro de 2015 os USA enviaram 300 militares para darem assistência às operações nos Camarões e recentemente forneceram 11 milhões de USD em veículos blindados para o exército nigeriano. Efectivamente a polícia queniana parece ter razão nas suas declarações, enquanto as do ministro da defesa parecem mais uma operação de marketing tendente a captar atenções (embora sejam complementares, quanto ás intenções).

A al-Shabab declarou a sua adesão á al-Qaeda em 2009, ainda liderada por Ahmed Abdi Godane, que recebeu treino no Afeganistão. Apesar das suas ligações, a al-Shabab é uma organização essencialmente somali (não no que respeita aos militantes, mas no que respeita aos objectivos). A maioria dos seus ataques ocorrem no país (mesmo os mais recentes, que parece traduzirem um novo modus operandi, como o efectuado numa praia de Mogadíscio, onde morreram 20 pessoas), enquanto os ataques fora das fronteiras da Somália – como os de Abril de 2015 ao Garissa University College, no Quénia, ou ao centro comercial de Westgate, no ano de 2013 – são ostensivamente executados em resposta á presença das tropas quenianas na Somália.

O fenómeno ISIS na al-Shabab é de origem estrangeira, ou seja, muitos combatentes estrangeiros que se encontram nas fileiras do al-Shabab são do ISIS, como o caso do norte-americano, membro da al-Shabab, que foi preso em Dezembro de 2015. Os combatentes estrangeiros e os somalianos na diáspora estão mais próximos ao ISIS, enquanto os combatentes recrutados localmente, somalis, preocupam-se essencialmente com assuntos somalis, com a jihad interna, mais do que com a jihad global.

Claro que esta divisão não é harmoniosa e que existe uma luta interna que, nos últimos meses, se agravou ao ponto do actual líder da organização, Abu Ubaidah (conhecido por Direye), ter afirmado, via rádio, que “se alguém pertencer a outro movimento islâmico – além daquele a que a al-Shabab aderiu – será morto”. A ameaça não é usual – não pelo tom em que foi proferida, ou que não seja hábito de Direye proferir ameaças de morte via rádio - se atendermos ao alvo: directamente os seus correligionários. E estas declarações demonstram as tensões internas na al-Shabab, historicamente ligada á al-Qaeda da África Oriental, mas com diversas tendências pró-Daesh – crescentes - no seu interior. E aqui as palavras do ministro da defesa queniano, embora não expressem a realidade actual, poderão tornar-se “proféticas”, se forem projectadas para uma eventual realidade futura.

O ISIS parece ser irresistível para os diversos grupos fascistas islâmicos. Na Nigéria, em Março do ano passado, o Boko Haram, que operava sem qualquer afiliação, aderiu ao ISIS / Província da África Ocidental. Até agora a al-Shabab permanece na al-Qaeda, á qual aderiu em 2012, o que não implica que exista unanimidade no seio do grupo, quanto a esta lealdade. Na região de Puntland, em Outubro do ano passado, o comandante (e um dos seniores da al-Shabab) Abdiqadir Mumin, com cerca de 20 dos seus elementos, proclamou a sua adesão ao ISIS. Um oficial e alto responsável da organização, no sul do país, foi cercado e morto pelos seus homens, por ter tendências pró-ISIS. Existem várias notícias sobre detenções de militantes que demonstram simpatias ou eventual adesão ao ISIS e uma das tarefas da temida polícia secreta da al-Shabab, a Amniyat é detectar e deter as infiltrações do ISIS no seio da organização.

Embora sem peso significativo, o número de militantes da al-Shabab pró-ISIS pode adquirir importância crescente e revelar-se uma nova ameaça na região da África Oriental. É possível, pois, que algumas acções recentes revelem o peso crescente destas facções (talvez o ataque efectuado á universidade queniana, em Fevereiro, que provocou a morte a 147 pessoas, seja um exemplo). O ISIS adquiriu uma importância internacional que a al-Qaeda nunca obteve e tem uma política de recrutamento muito mais eficaz. A influência que exerce sobre os grupos islâmicos extremistas e sectários é enorme.

As razões que levam a al-Shabab a permanecer afiliada á al-Qaeda são, fundamentalmente, históricas. Godane o primeiro líder da al-Shabab lutou no Afeganistão contra os soviéticos. Conheceu pessoalmente Osama Bin Laden, que lhe escreveu em 2010 lembrando-o da importância de estreitar os laços entre ambas as organizações, o que veio a acontecer em 2012, com a afiliação da al-Shabab na al-Qaeda, que tem um longo historial de operações e redes na África Oriental (antes do 11 Setembro em Nova York, 2001, já a al-Qaeda tinha atacado a embaixada norte-americana no Quénia e na Tanzânia em Agosto de 1998, dos quais resultou a morte de 224 pessoas e mais de 4 mil e quinhentos feridos).

Para a al-Shabab “virar as costas” á al-Qaeda significa abandonar os recursos logísticos e financeiros colocados á sua disposição por estrutura organizacional e trocá-la por uma incerteza que é o ISIS e a sua fraca implementação na África Oriental. O Daesh não tem, na região, as redes e a estrutura organizativa da al-Qaeda. Para a al-Shabab a adesão ao ISIS não representa qualquer vantagem (por enquanto). O ISIS tem efectuado esforços concertados para convencer a al-Shabab a aderir á sua causa. Em Maio do ano passado o Daesh apresentou um vídeo sobre o recrutamento de combatentes somalis e apelava aos jovens somalis para aderirem á sua estrutura. Além disso tem efectuado apelos a Abu Ubaidah (o actual dirigente da al-Shabab) e publicado panfletos que apelam á al-Shabab para seguir o exemplo do Boko Haram, na África Ocidental.

Uma área onde o ISIS focou a sua actividade (e onde conquista posições) foi no recrutamento de combatentes estrangeiros e mesmo de somalis na diáspora. E aqui o ISIS ganhou pontos e isolou a al-Shabab, que já foi a maior “contratadora” de mercenários islâmicos, lugar que perdeu para o ISIS. Se, na África Oriental, a influência do Daesh é, ainda, pouca, e as redes da al-Qaeda dominam a região, um facto é que a médio-prazo a correlação de forças tende a mudar. O cada vez maior silêncio da al-Qaeda é um sinal das tensões internas que atravessam a organização. Em contrapartida o ISIS exerce uma influência e uma actividade crescentes, que jogarão a seu favor, mesmo que seja derrotado na Síria e sofra imensas perdas no Iraque.

Claro que existe ainda um outro cenário: um acordo conducente a uma eventual fusão entre a al-Qaeda e o ISIS. Este cenário é uma forte probabilidade, uma vez que não representa mais do que um upgrade (permitindo ao ISIS acesso ás redes logísticas e financeiras da al-Qaeda). Mesmo que não seja realizado á escala global, poderá ser uma aliança regional que operará, numa primeira fase na África Oriental (e que pode constituir uma “versão africana” da estrutura).

Seja como for a situação para a Somália mantem-se: a de nação destruturada, com um caminho longo que determinará a sua sobrevivência….

Fontes
Gaffey, C. Meet the Female Somali military captain fighting al-Shabab http://europe.newsweek.com
Gaffey, C. Why al-Shabab is not joining ISIS http://europe.newsweek.com
Gaffey, C.  ISIS or al-Qaeda? Somalia`s al-Shabab divided over allegiance http://europe.newsweek.com
Gaffey, C. Militants kill 20 in Somali beach restaurant attack http://europe.newsweek.com
Gaffey, C. al-Shabab killed 180 Kenyan troops in El Adde http://europe.newsweek.com
Gaffey, C. al-Shabab attacks African union Base in Somalia http://europe.newsweek.com
Gaffey, C. U.S. gives Nigeria 24 armored vehicles to fight Boko Haram http://europe.newsweek.com
Gaffey, C.American al-Shabab fighter arrested in Somalia http://europe.newsweek.com
Gaffey, C. Boko Haram looks beyond Nigeria in face of increasing military pressure http://europe.newsweek.com
Gaffey, C.al-Shabab´s most wanted: Abu Ubaidah, ther leader with a $6 million bounty on his head http://europe.newsweek.com
Hatcher, J. After Garissa, Kenyans and Somalis face divided future http://europe.newsweek.com
Moore, J. U.S. send 300 troops to Cameroon to join fight against Boko Haram http://europe.newsweek.com
Moore, J. ISIS target Africa in new issue of recruitment magazine http://europe.newsweek.com
Ohito, D. and Ombati, C. Syrian fighters may have helped plan attack on KDF in Somalia http://www.standardmedia.co.ke
Sheikh, A. Small group of Somali al Shabaab swear allegiance to Islamic State  http://www.reuters.com
The Guardian Somali minister hints at move to ban FGM 2015/08/13

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