Miguel
Guedes – Jornal de Notícias, opinião
Sendo
quase impossível, a comparação entre os inícios de mandato de Cavaco e Marcelo
está na ordem do dia e tem um traço identitário político comum. Oriundos da
mesma área política, Cavaco Silva e Marcelo Rebelo de Sousa chegaram a chefe de
Estado ganhando as eleições presidenciais com duas maiorias absolutas à
primeira volta e deram de caras com duas "maiorias absolutas"
sentadas no Governo. Maiorias bem distintas, porém: em 2006, com a de José
Sócrates; em 2016, com a de António, Catarina e Jerónimo, uma "maioria
absoluta" pós-eleitoral e de incidência parlamentar, pronta a
re(des)fazer-se. Cavaco Silva nunca poderia lidar com tamanha pluralidade,
engenho e quantidade mas - convenhamos -, lidar com um Governo maioritário de
Sócrates (e, posteriormente em 2009, com um Governo minoritário do mesmo) era
semelhante a lidar com uma turba ou multidão a irromper a uma só voz. Rezam as
crónicas que Cavaco, ainda assim, preferia mil vezes cooperar inicialmente com
Sócrates do que render-se finalmente a Passos.
O
desejo hegemónico de Sá Carneiro de "uma maioria, um Governo, um
presidente" deve ser interpretado no contexto de época. Nunca foi fácil e
ilude muita gente. Na realidade, concretizou-se no breve espaço temporal em que
Jorge Sampaio e Sócrates coabitaram em Belém e São Bento, entre Março de 2005 e
de 2006. Logo depois, chegaria Cavaco para destruir o velho sonho
social-democrata. As primeiras palavras de Cavaco foram para o desejo de
"fazer obra em comum" com o Governo de Sócrates e em estreita "cooperação
estratégica". Mas se olharmos, no ano de 2016, para a expressão do
deputado do PSD José Matos Correia, após a aprovação do Orçamento do Estado
(OE) por Marcelo, entramos num mundo de ficção científica onde se esperaria que
o novo chefe de Estado derrubasse o Governo mesmo após ter dado uma bela
bofetada política a Passos Coelho há poucos dias. "O país não pode viver
sucessivamente em campanhas eleitorais", sustentava Marcelo há cerca de um
mês, quando parte do PSD parecia não acreditar que fosse tempo de arrumar com
os pin"s da lapela. Lá continuam, à espera do rigor. Matos Correia,
instado a comentar a aprovação do OE por Marcelo, chegou a afirmar não estar
ali para comentar o discurso do presidente. Lá continuam.
Outro
traço identitário comum em forma de interrogação: por que será que Cavaco e
Marcelo ostentam profundo desprezo por Passos Coelho? A social-democracia não
se entende, talvez porque já perdeu o fio à meada da sua corrente ideológica,
desistiu de ir a jogo político apostando na actual abstinência e já nem sequer
o seu mais trivial parceiro de poder mora ao lado. Já não há cirurgias
pendentes ou fio de sutura no PSD de Passos. Este PSD só se entenderá novamente
com "uma maioria, um governo, um presidente" e só se Marcelo quiser.
E não é ele, actualmente, um dos últimos resquícios da social-democracia no
partido?
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