quarta-feira, 6 de abril de 2016

AS ÁGUAS CORREM CALMAS NO NILO



Rui Peralta, Luanda

As negociações, politicas e técnicas, entre o Cairo e Adis Abeba sobre a gestão conjunta das águas e recursos do rio Nilo mantêm-se paralisadas, devido á insistência etíope de prosseguir com a construção da barragem Renaissance, algo que o Egipto considera uma ameaça aos seus interesses no Nilo. Isto obriga os egípcios a procurar outros parceiros do Nilo, sendo o Congo Democrático (RDC) um aliado estratégico do Egipto desde o início da disputa com a Etiópia.

Em Fevereiro, o primeiro-ministro da RDC, Augustin Matata Ponyo, visitou o Cairo, por três dias, chefiando uma delegação que incluiu os ministros da energia, água e industria. Ponyo, o primeiro-ministro egípcio, Sherif Ismail, e o presidente egípcio, Abdel Fattah al-Sisi, efectuaram encontros e prolongadas reuniões, que culminaram com a assinatura de um memorando de entendimento entre ambos os Estados, em torno do projecto da barragem de Inga.

Numa conferência de imprensa os dois primeiros-ministros anunciaram que o Egipto participaria nas fases 3 e 4 da construção da barragem de Inga. O Egipto prestará assistência técnica, tecnológica e financeira para a construção da barragem. Nas palavras do ministro egípcio para a Electricidade e Energia, Mohamed Shaker, o Egipto “beneficiará da interconexão da rede eléctrica entre a África do Sul e o Norte de África”. O Egipto concederá 10 milhões de USD á RDC, para a execução de 6 projectos, incluindo os estudos de design, além da formação dos trabalhadores e será o “responsável pela coordenação e implementação de todos os projectos de cooperação, assinados em torno da barragem de Inga”, segundo Hossam Maghazi, ministro egípcio da Irrigação e Recursos Hidráulicos.

A barragem fica localizada no Rio Congo, a 140 milhas (225 Km) a sudoeste da capital da RDC, Kinshasa e será um dos maiores projectos hidroeléctricos do continente africano, gerando 40 mil megawatts de electricidade. O custo final estimado ronda os 80 mil milhões de USD. O ministro congolês da Energia e Águas, Matadi Gamanda referiu que a “construção da barragem comporta imensos desafios (…) e que com Egipto esses desafios serão superados com êxito. (…) Decidimos competir com a Etiópia em termos de produção de electricidade (…) a barragem de Inga produzirá muito mais energia eléctrica e não pode ser comparada ao projecto etíope da barragem Renaissance (…) A posição da RDC nesta disputa é simples e explícita: nunca iremos assinar quaisquer acordos contrários aos interesses egípcios”.

Os interesses do Egipto na RDC não se limitam á barragem de Inga. Nos últimos três anos os egípcios apresentaram diversas propostas sobre gestão de recursos fluviais, alicerçadas num tecnicamente controverso projecto sobre a ligação do rio Nilo ao rio Congo. Este projecto nasce como resposta a diversos factores: 1) necessidade do Egipto em aumentar o seu consumo de água por habitante (660 metros cúbicos por habitante, um dos mais baixos do mundo e que não é suficiente para satisfazer e suportar o crescente demográfico egípcio nos próximos 50 anos, que se prevê duplique o numero de habitantes); 2) reacção ao projecto etíope da barragem Renaissance; 3) resposta ao Acordo de Entebe sobre a Bacia do Nilo, assinado pela Etiópia, Quénia, Uganda, Tanzânia, Ruanda e Burundi (e aqui a RDC constitui, simultaneamente, uma aliado e um mediador, que permitirá ao Egipto a possibilidade de renegociar o Acordo com alguns dos seus signatários).

O Cairo vê no relacionamento privilegiado e estratégico com Kinshasa um importante passo para o fortalecimento da presença egípcia na região dos Grandes Lagos, passo essencial para as pretensões egípcias. A RDC é um consistente suporte para o Egipto. Efectivamente, a RDC recusou assinar o Acordo de Entebe sobre a Bacia do Nilo (ao contrário do Burundi, que em 2011 mudou de posição) e apoia as posições egípcias no diferendo com a Etiópia sobre a barragem Renaissance. Por outro lado o Egipto tenta compensar, através da RDC, a insipida coordenação até agora obtida com um outro aliado, na questão dos recursos do Nilo, o Sudão. O projecto de Inga constitui uma forte pressão sobre a Etiópia, que pretende ser o grande fornecedor de energia de África, pressão política, mas também económica, uma vez que constitui uma alternativa mais segura e de menor custo.

A posição egípcia é a de gerir a situação, de forma a ganhar aliados na região, assegurando os seus interesses na questão da água. O desafio desta posição é se o Egipto conseguirá conjugar os seus interesses com os dos seus aliados (presentes e futuros) que aspiram ao desenvolvimento. É desta conjugação de interesses que depende o êxito da política egípcia na questão da água. É dos resultados práticos e do que estes projectos podem representar para o desenvolvimento destes países - através de políticas de coordenação e de cooperação de interesses e não das promessas e das visitas oficiais - que o Egipto poderá realizar a efectivação dos seus interesses.

Mas, enquanto as relações com a RDC se fortalecem, as relações com o Sudão (um dos aliados do Egipto nesta questão) atravessam um momento de turbulência. Uma das causas do mal-estar existente entre os dois países é o Triângulo de Halayeb-Shalateen, um território com cerca de 13 mil quilómetros quadrados, localizado na fronteira com o Sudão, a sul do Egipto. Este território é revindicado pelo Sudão, embora, nas palavras do presidente sudanês Omar al-Bashir, o Sudão não tenha intenções de “ir para a guerra por isto” e opte pela via negocial. Entretanto o presidente egípcio Abdel Fattah al-Sisi afirmou, durante uma entrevista á TV egípcia, logo após ter ganho as eleições, que “ o triângulo de Halayeb-Shalateen é parte do território egípcio e apelamos ao Sudão que não entre em conflito connosco”. Por outro lado, pela primeira vez na história parlamentar egípcia, a região elegeu um deputado, Mamdouh Amara.

Esta região faz face a diversos problemas, principalmente nas áreas da saúde pública e da educação. O governo egípcio alocou cerca de 11,2 milhões de USD na política de saúde, restruturando o hospital e estabelecendo novos departamentos médicos, mas os médicos recusam-se a trabalhar na região, devido á falta de condições. O mesmo se passa com os professores e o governo iniciou uma política de incentivos que se tornem atraentes para os médicos e professores estabelecerem-se na região. O governo central anunciou recentemente que planeia investir mais 86 milhões de USD em infra-estruturas administrativas, rodoviárias, aeroportuárias, abastecimento de água e energéticas (está em curso a construção de uma central solar).

Contudo o problema principal reside nos recursos humanos. As populações da região, através do seu representante parlamentar, efectuaram um apelo ao governo para a instalação de um pólo universitário. Muitos estudantes terminam o ensino secundário e depois não prosseguem os estudos. Alguns optam pela formação profissional, mas as opções não são muitas. Como resultado a região fica sem quadros superiores e com poucos quadros médios, dificultando ainda mais o seu desenvolvimento e encarecendo as despesas com quadros vindos do Cairo e de outras províncias egípcias.

Mas é noutra região fronteiriça, Sinai, que muitas das atenções se concentram. O Daesh desenvolve aqui uma intensa actividade e o exército egípcio desencadeou uma série de operações no território (em alguns casos em cooperação com as forças israelitas) que obrigaram o Daesh a alterar as suas tácticas, passando a atacar alvos civis, perante a dificuldade em atacar alvos militares.

A Wilayat Sinai (WS) é a afiliada do Daesh, na península do Sinai. Um dos seus maiores ataques foi, no ano passado, ao posto de controlo militar em Sheikh Zuweid que provocou a morte de 17 militares egípcios. Hoje a organização, perante as dificuldades que sente no terreno, está praticamente impossibilitada de atacar as forças egípcias. Os alvos civis e a vida económica tornaram-se alvos da WS, que com esta alteração pretende, também (além de constituir um aviso á população civil para não colaborar com as autoridades), adquirir maior visibilidade, o que lhe pode ser vantajoso em termos de suportes financeiros.

Em 2015 as estatísticas confirmam que as organizações terroristas que actuam no Egipto tornaram-se mais agressivas. O número de atentados subiu de 349 em 2014, para 617, em 2015, de acordo com o índice de estabilidade do Centro Regional de Estudos Estratégicos, no Cairo. Segundo esta mesma fonte, no Sinai, o número de ataques terroristas subiu para 90, em 2015. Mas nem tudo é mau. Os detalhes do índice confirmem que existiu uma quebra na actividade terrorista após os ataques de Sheikh Zuweid. O número total de ataques terrorista e atentados no Egipto, no segundo semestre de 2015 foram de 64, contra 170 no mesmo período de 2014. Este declínio de actividade está reflectido no Sinai, que representa 15% do total de acções terroristas em 2015.

A alteração táctica da WS reflecte esta realidade. No passado dia 1 de Março a WS revindicou a decapitação de um cidadão egípcio e o fuzilamento do seu filho, por colaborarem com o exército e com as forças de segurança egípcias. O grupo rapta homens de negócios e intimida trabalhadores. Em Dezembro último fez circular um panfleto, ameaçando de morte os condutores de ambulâncias, se estes transportarem militares ou agentes de segurança feridos, para os hospitais. Em Outubro e Novembro do ano passado o WS desviou ambulâncias e atacou um posto de saúde em el-Arish. Destruiu,também, um posto de saúde em Sheikh Zuweid.

O presidente egípcio anunciou recentemente um plano de desenvolvimento do Sinai, orçamentado numa primeira fase em um milhão e 280 mil USD. Com este plano o governo egípcio, além de apostar no desenvolvimento económico da região fronteiriça com Israel, espera delimitar a actividade terrorista na região.

Um outro problema do Egipto é o relacionamento com a Arábia Saudita. No dia 8 de Fevereiro os sauditas e os Emiratos Árabes Unidos (EAU) anunciaram a preparação para o envio de forças militares para a Síria, com o objectivo de reforçar a coligação internacional liderada pelos USA. Este anúncio criou mal-estar no Cairo. A 10 de Fevereiro o primeiro-ministro egípcio, Shariff Ismail; cancelou a sua visita a Riade. A visita tinha como objectivo a finalização do acordo sobre a criação do Conselho para a Coordenação Egipto-Arábia Saudita, que numa primeira fase permitiria o investimento saudita no Egipto de 8 mil milhões de USD. O acordo incluía cláusulas sobre as reservas egípcias de petróleo e sobre o tráfico marítimo saudita no Canal do Suez, além de questões relacionadas com a cooperação militar entre ambos os Estados e a criação de uma força militar conjunta.

O Egipto necessita de assegurar as suas reservas petrolíferas de forma a satisfazer as suas necessidades de consumo para os próximos cinco anos (estimada em 5 milhões de barris por ano). Por outro lado o investimento saudita em diversos sectores da economia egípcia (como o turismo, sistema bancário e agricultura) é também importante para o país. O acordo beneficiaria, sem dúvida o Egipto, mas a 16 de Fevereiro o ministro do negócios estrangeiros egípcio, Sameh Shoukry, afirmou que a decisão da Arábia Saudita e dos EAU de enviarem forças militares para a Síria, no âmbito da Aliança Militar Islâmica para o Combate ao Terrorismo (liderada pelos sauditas) que engloba 34 Estados, é contrária á decisão egípcia. O Egipto está disposto a suportar uma solução politica para a Síria, mas não uma solução militar.

Ambos os Estados consideram que este diferendo de opiniões não afectam o seu relacionamento, mas os factos não parecem confirmar esta afirmação de intenções. Os sauditas são muito sensíveis a qualquer visão politica regional que não esteja de acordo com a sua. A recente suspensão de ajuda financeira ao Líbano é uma confirmação desta sensibilidade saudita. Para o Cairo os acordos de cooperação militar e a sua participação nas alianças militares lideradas pelos sauditas são uma forma de obter ajuda financeira que lhe permitirá solucionar algumas questões económicas internas. Na Guerra do Golfo o Egipto (sob a administração Mubarak) arrecadou 100 mil milhões de USD, em suporte pela sua posição na guerra, favorável aos aliados, tendo os sauditas financiado 10% dessa verba (10 mil milhões de USD), além de cancelado os débitos egípcios, consequência de anteriores empréstimos sauditas.

Durante o ano passado o Egipto por diversas vezes realçou a sua objecção a intervenções militares externas e em Abril de 2015 o presidente Sisi afirmou que “as Forças Armadas do Egipto são apenas para o Egipto”. No mesmo mês foi autorizada uma manifestação de protesto, no Cairo, frente á Embaixada da Arábia Saudita, contra a intervenção saudita no Iémen e o governo egípcio recebeu uma delegação representativa do ex-presidente iemenita Ali Abdullah Saleh. Como consequência os sauditas excluíram o Egipto de estar presente nos encontros entre as facções iemenitas, realizadas antes das negociações de Genebra, em Junho.

Apesar deste mau ambiente a coordenação militar entre ambos os países continua, assim como continuam abertos imensos canais e corredores entre o Cairo e Riade. O Egipto participou nas manobras militares Trovão do Norte, na Arábia Saudita, apesar de anteriormente ter manifestado a sua opinião acerca da Síria. As politicas sauditas de coordenação e aliança com o Egipto, têm como principal objectivo o fortalecimento da coligação sunita na região, para fazer frente ao Irão, o inimigo numero 1 dos sauditas. O Cairo aceita participar nesta coligação, mas de forma muito independente (mantém relações com o Irão e com grande parte dos inimigos da coligação, além de manter uma posição hostil para com a Turquia, o principal aliado dos sauditas, na região, e um dos alicerces da coligação sunita contra o Irão.

Muitas questões mantêm-se em aberto sobre a mesa. De nada servirá á Arábia Saudita usar pressões e ameaçar com o corte na ajuda (como aconteceu com o Líbano). O Egipto nunca adoptará uma posição clara neste - e em outros - relacionamentos). Para o Egipto não existem soluções militares, nos casos sírio e iemenita, mas, sim, soluções politicas. Já demonstrou que está aberto a aprofundar relações com o Irão e surge como uma eventual ponte (ou, pelo menos, como um tabuleiro da ponte) entre Teerão e Riade.

E existe ainda uma outra vertente na politica externa egípcia: África. É que – e muitos o esquecem, até os africanos - o Egipto é um país africano, que faz a ponte com o médio-oriente (uma ponte física e cultural, não só através da geografia mas, também, através da história). E querem maior prova de africanidade do que o Nilo?

Fontes
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Aman, A. Will the Democratic Republic of Congo be Egypt's newest ally in dam disputes? http://www.al-monitor.com
Aman, A. Potential solutions to Egypt-Ethiopia dam dispute remain murky http://www.al-monitor.com
Aman, A. Will cancel aid to Egypt? Riyadh http://www.al-monitor.com
Fouad, A. Islamic State's Sinai branch shifts its strategy http://www.al-monitor.com
Fouad, A What's Saudi's new Islamic coalition really up to? http://www.al-monitor.com
Al-Ghoul, A.  Rural Egyptian village stuck in time  http://www.al-monitor.com
Hussein, W. Controversy continues over Nile, Congo river projects http://www.al-monitor.com
Hussein, W. Egypt’s 'Lost Dream' of Linking Congo, Nile Rivers http://www.al-monitor.com
Hussein, W. Cairo scrambles to restart Entebbe negotiations http://www.al-monitor.com
Linn, E.C. Rising temperatures scorch Egypt’s rural poor http://www.al-monitor.com
Mikhail, G. Will border region dispute threaten Egyptian-Sudanese ties? http://www.al-monitor.com
Mikhail, G. Will Sudan side with Egypt in Renaissance Dam dispute? http://www.al-monitor.com
Mikhail, G. Former insurgent Islamist leader's take on IS in Sinai http://www.al-monitor.com
Riedel, B. Will there be peace in Yemen? http://www.al-monitor.com
Slavin, B. The battle to defund Islamic State http://www.al-monitor.com

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