terça-feira, 19 de abril de 2016

Brasil. OS ANTECEDENTES DA TORMENTA INDICAM POR ONDE RECOMEÇAR



Está claro que um sistema político que fica refém de Cunha precisa ser reinventado com maior participação social. O ciclo iniciado em 2002 negligenciou isso.

Saul Leblon*

Um golpe não começa na véspera; tampouco tem desdobramentos plenamente identificáveis na manhã seguinte.

Uma derrota progressista pode ser devastadora para o destino de uma nação, a sorte do seu povo e a qualidade do seu desenvolvimento.

Mas a resistência que engendra pode inaugurar um novo marco de consciência política.

Pode redefinir a correlação de forças, as formas de luta e de organização e coloca-las num patamar mais avançado, mas não menos abrangente 

Apesar dos votos dedicados à família, a Deus e até a um torturador –Bolsonaro ofereceu sua escolha a Brilhante Ustra e ao golpe de 64 --   a transparência da história pulsou forte no Brasil nesta noite de 17 de abril de 2016.

Guardadas sóbrias exceções, os que condenaram Dilma filiam-se a agendas e valores imiscíveis com o mapa histórico que desponta da Revolução Francesa e fez dos direitos sociais universais o guia generoso e libertário da humanidade.

A violência conservadora, como ocorre em todos os golpes contra governos progressistas, apunhalou a democracia para atingir o interesse popular.

Mais adiante tentará aleijar a soberania nacional descartando-a como anacronismo populista.

A ética, a responsabilidade fiscal, serviram de guarnição das aparências.

O golpe nasceu de um ménage à trois entre a escória liderada por Cunha, o ódio inoculado pela mídia na classe média e o plano de arrocho e entreguismo do PSDB

O cinismo foi o grande vencedor da jornada triste que banhou o país de lufadas adicionais de incerteza e turgulência.

Votos decisivos ao impeachment ‘por irresponsabilidade fiscal da Presidenta da República’ vieram das bancadas –inclua-se a do PSDB— que patrocinaram as pautas bombas, estas sim suficientes para quebrar a nação.

E não é necessário desfiar o prontuário completo do operador Eduardo Cunha, para adicionar ao cinismo a hipocrisia.

Hipócritas de punhos de renda –jornalistas, políticos, intelectuais, ministros do STF— assistiram a todo esse processo emprestando pertinência formal ao estupro coletivo da democracia na arena das bestas-feras.

Por mérito, a cusparada histórica do deputado Jean Wyllys num fascista que o insultara  --e que homenagearia um torturador e o golpe de 64 no seu voto pela derrubada da Presidenta Dilma--, deveria ser estendida aos demais protagonistas do espetáculo degradante.

Entre eles, certamente a mídia.

Coube a ela amalgamar o movimento regressivo de longas raízes históricas que se prepara agora –afastado o obstáculo inicial--  para assaltar a Constituição Cidadã naquilo que ela fez  de melhor: legitimar os direitos sociais reprimidos pela ditadura 24 anos antes da sua promulgação, em novembro de 1988.

Faz parte do jogo de espelhos que Temer jure fidelidade ao Bolsa Família, a exemplo do que já prometera ao mandato de Dilma, pouco meses atrás.

O fato  é que os acontecimentos em marcha vieram reafirmar a rigidez da fronteira onde acaba a tolerância do dinheiro e do mercado com o projeto de construção de uma sociedade mais justa na oitava maior economia do planeta e principal referência da  luta pelo desenvolvimento no mundo ocidental.

‘A democracia prometeu mais do que o capitalismo está disposto a conceder’, martela diuturnamente o jogral midiática, em todo o ciclo iniciado em 2002.

O alvo são os direitos sociais abrigados na Carta de 1988, que o PT  criticou na origem pelas suas limitações (a questão agrária, uma das mais graves), mas da qual se fez o mais fiel guardião quando chegou ao poder.

O mercado entendeu que a crise econômica global –diante da qual o governo esgotou os sistemas de contrapesos fiscais do país,  abriu a oportunidade para um acerto de contas com o ‘populismo constituinte de 1988’.

A frente golpista uniu a escória política, a mídia, o dinheiro grosso local e internacional e os sem voto num pacto feito de sistemas de compensações complementares.

Esse que agora se desenha abusadamente aos olhos da sociedade e com a cumplicidade do jornalismo da indignação seletiva.

Cunha terá sua anistia, em troca de devolver o poder pleno ao mercado, via corrupção política da qual se acusa o PT.

O PSDB volta ao poder sem precisar se submeter à urna.

O STF, depois de se acoelhar de forma indecente na preservação do livre movimento de Cunha, poderá falar grosso com Moro, e assim encerrar a Lava Jato.

A Chevron e a Shell terão o pré-sal prometido por Serra e pelo PSDB; a Globo renovará sua concessão facilmente a partir de 2018...

Vai por aí a engrenagem posta em funcionamento, a partir deste domingo.

O ciclo em que o golpismo tratará a democracia social como um estorvo está longe de se encerrar com a conclusão do processo do impeachment.

A lambança golpista, por mais que gere uma euforia imediata nos mercados especulativos, não resolverá as grandes pendências nacionais, emolduradas por um pano de fundo desafiador.

O mundo vive a mais longa, incerta e frágil convalescença de uma crise capitalista desde 1929.

Tudo o que foi subtraído do Estado e do trabalho no período anterior à explosão as subprimes, em 2008 –regulações, direitos, soberania etc, mostra agora a sua falta.

Desprovida de alavancas contracíclicas a economia global não decola e agora arrasta as nações em desenvolvimento para o ralo corrosivo da estagnação.

Sobram paradoxos.

O da superprodução de capital fictício, em metástase especulativa, o mais evidente deles.

Seu contraponto histórico é a anemia do investimento e do emprego urbi et orbi.

Ficções de livre comércio rondam esse cenário como a panaceia recorrente dos carrascos de direitos sociais.

Acordos de livre comércio –como o acalentado pelos gurus econômicos do golpe--  em condições de contração sistêmica, como é o caso, formam um jogo de soma zero, que apenas transfere demanda de um ponto a outro. No caso, a gula persegue o mercado de massa brasileiro que, sozinho,  tem escala e densidade para integrar o G 20.

Nessa voçoroca da soberania, o emprego gerado numa economia é a vaga subtraída na outra.

Igual circularidade se observa no deslocamento dos passivos do setor privado para o Estado, após um longo ciclo de farra financeira.

O setor privado ‘ajustou-se’, diz o colunismo abestalhado de toxina neoliberal.

Omite-se que o ônus foi transferido aos governos.

Fala-se pelos cotovelos da gastança fiscal petista. Oculta-se que a relação dívida pública/PIB nas economias mais ricas saltou de 78% para 105% desde 2008.

Em contrapartida, a participação dos salários no PIB global recuou:  hoje é 10% inferior à média dos anos 80.

Esse torniquete estreitou sobremaneira a margem de manobra de políticas associadas a projetos de desenvolvimento com repartição de renda, como os implementados na América Latina.

O Brasil é o caso mais exposto porque foi justamente quem chegou mais longe nesse processo.

Como atesta o Banco Mundial, a pobreza extrema no Brasil caiu 64% entre 2001 e 2013, passando de 13,6% para 4,9% da população.

Nada igual ocorreu na América Latina.

Atingido pela queda nos preços e  no volume embarcado de minérios e grãos, o país sofreu também com a retração nas exportações  de manufaturados (adicionalmente solapadas pelo câmbio desastrosamente valorizado), antes vendidos a parceiros latino-americanos, em idêntico apuro.

É nessa moldura que a coalizão conservadora lançou-se ao golpe de Estado. Com determinação virulenta e bem sucedida, como se vê.

Entre outras razões, porque conseguiu impor o seu diagnóstico e a sua pauta como referência dominante do debate sobre a crise aqui e no resto do sistema capitalista.

Sim, não é propriamente uma surpresa que as ideias dominantes de uma época sejam as ideias das classes dominantes. 

Desde 1846, quando Marx e Engels assentaram seu vigamento filosófico nas páginas de ‘A ideologia alemã’, o peso material das ideias ganhou o devido destaque na luta de classes.

Mas no Brasil esse poder de agendamento tornou-se asfixiante

Para um conservadorismo derrotado quatro vezes consecutivas pelo voto popular nas disputas presidenciais desde 2002,  tornou-se a ferramenta decisiva na desconstrução de um adversário que não se guarneceu para enfrentamento equivalente.

Pior que isso, subestimou a sua importância.

À bordo de um economicismo conveniente, delegou-se às gondolas do supermercado a tarefa de traduzir avanços sociais e econômicos do período em mudança na correlação de forças.

Nesse oco político o golpismo encontrou o espaço  para um recadastramento histórico.

Recuperar o tempo e o poder perdidos convoca o desassombro e a convergência progressista.

O episódio  das ditas pedaladas  evidenciou essa dificuldade de se defender do algoz, sem romper com o círculo de giz que ele traçara no chão.

Por que o governo  hesitou tanto em convocar imediatamente uma rede nacional,  para explicar o que as ditas 'pedaladas' representavam de fato?

Ou seja, que a Caixa quitou programas sociais em dia, sendo ressarcida em seguida -- sem alterar o orçamento, portanto.

Por que o governo não escancarou imediatamente o golpismo intrínseco à ‘escandalização’ da operação contábil corriqueira, com fins sociais irrepreensíveis? E por que temeu confronta-la, por exemplo, com a  derrama dos juros (8% do PIB) sobre o cofre do Estado – escândalo que nenhum advogado do ajuste fiscal argui?

Em 757 dias úteis, até o final de 2014, o saldo do Bolsa Família na CEF só ficou negativo em 72 dias. O pagamento de juros aos rentistas da dívida pública, no entanto, drenou o equivalente a mais de 15% do PIB nesse período, deslocando recurso fiscal escasso para os cofres abarrotados  da pátria financeira.

Os que golpearam Dilma ‘em nome do povo’ neste domingo, avocariam esse mandato se o povo verdadeiro tivesse sido conscientizado das disputas fiscais efetivas  no caixa da República?

‘Governo é metade realizações, metade ideia. Por muito que fizer, um governo que não trava a luta das ideias, sempre figurará aos olhos da sociedade com quem fez muito pouco’, lembrou em recente viagem ao Brasil, o vice presidente da Bolívia,  Álvaro García Linera

A negligência com a luta das ideias foi a tônica nos últimos 12 anos de avanços notáveis no plano social que, todavia, não se traduziram em engajamento político correspondente de seus beneficiários.

A democracia, portanto, não se tonificou de novos protagonistas organizados e de novos canais de participação. Manteve-se refém de um Congresso capaz de produzir e legitimar um déspota como Eduardo Cunha  -- a quem coube, afinal, fazer o ajuste entre as duas realidades.

O economista Márcio Pochmann enxergou pioneiramente os riscos implícitos na assimetria entre avanços econômicos e sociais desprovidos do respectivo cimento organizativo e ideológico.

‘Cerca de 22 milhões de trabalhadores ascenderam socialmente, desde 2003,’ lembrava ele já em 2013,  ‘mas não houve mudança na taxa de sindicalização no país: de cada dez destes trabalhadores, só dois se filiaram a algum sindicato. O mesmo aconteceu com os estudantes beneficiados pelos programas do governo federal e com os beneficiários do Minha Casa, Minha Vida’, espetou na sua lista dos antecedentes da tormenta, que por fim eclodiria já na campanha de 2014, ainda assim subestimada.

Marilena Chauí  --já se observou neste espaço -- que sempre atuou na contracorrente da rendição ideológica dos últimos anos, ensina que ‘a ideologia é o processo pelo qual as ideias da classe dominante se tornam ideias de todas as classes sociais  ‘

‘Esse fenômeno’, diz a filósofa,  ‘de manutenção (adoção) das ideias dominantes, mesmo quando se está lutando contra a classe dominante,  é o aspecto fundamental daquilo que Gramsci denomina de hegemonia, ou o poder espiritual da classe dominante’.

Por isso ele dizia que, sublinha a professora, se num determinado momento os trabalhadores de um país precisam lutar usando a bandeira do nacionalismo, por exemplo, a primeira coisa a fazer é redefinir toda a ideia de nação (...) e elaborar uma ideia do nacional que seja idêntica à de popular.

‘Precisam, portanto, contrapor, à ideia dominante de nação, uma outra, popular, que negue a primeira’, sintetiza Chauí.

O ciclo golpeado neste domingo esteve longe de proceder a essa mutação.

Está claro que um sistema político que fica refém de Cunha e de sua matilha precisa ser revitalizado com maior participação social.

Se quiser implodir a resiliência golpista,  as forças progressistas terão que se atirar de forma unida no debate das ideias para dota-las de um projeto com peso material  capaz de impulsionar o passo seguinte da luta por democracia, igualdade e desenvolvimento no país.

Se o fizer, a derrota deste domingo poderá ser revertida muito mais cedo do que supõe a histeria de um golpismo eufórico, mas incapaz de oferecer respostas aos brasileiros, que não a trágica aposta dobrada em um  neoliberalismo  mundialmente despedaçado.

*Carta Maior, em editorial

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