Artur
Pereira – jornal i, opinião
Nem
tudo é jornalismo de massagem, nem jornalismo de trampolim. Também temos o
jornalismo desfibrilhador
Vivemos
num mundo altamente complexo e interdependente, cheio de inseguranças e
ameaças.
A
crise levou a pobreza a dezenas de milhões de pessoas na Europa que se juntaram
a outros tantos que já viviam na margem da sociedade, numa pobreza hereditária,
sem esperança, esquecidos nos subúrbios.
O
único paradigma que funciona é o dos mercados, que condicionam as decisões
politicas, e foram assumindo o papel que tradicionalmente era desempenhado
pelos Estados.
São
os gigantes económicos sem rosto, insaciáveis, amorais, que determinam o nosso
estilo de vida, a forma de como consumimos, os valores que guiam os nossos
atos, e a ilusão de que pensamos por mérito próprio.
Refiro-me
à Apple, Google, Facebook e Amazon, que se assumiram como a encarnação da nova
racionalidade em que progride a sociedade contemporânea.
Estes
novos deuses que prometem colocar mais longe, mais rápido, com cada vez menos
de nós e do real, estão de facto a deixar-nos cada vez mais isolados,
fragilizados e insignificantes, numa realidade unidimensional, destorcida e
doentia.
Somos
escravos voluntários numa relação em que a liberdade tecnológica nos conduz a
uma submissão intelectual.
O
que recebemos é a aparência e a simulação do real. A razão é pura ilusão, e a
experiencia foi substituída pela digitalização dos sentimentos, somos conduzidos
para uma fragmentação da vida através das redes, entendidas, como sociais.
Nesta
luta pelo direito a experimentar uma ideia, e da redescoberta do real, os
jornais e os jornalistas têm uma função única.
Albert
Camus dizia: “Um país vale o que vale a sua imprensa” Lamentava-se de que tinha
feito demasiadas concessões e arrependia-se dos silêncios oportunistas que lhe
tinham permitido salvar o seu posto de trabalho.
Claro
que os jornalistas não realizam o seu trabalho no vazio e seria enganar as pessoas
afirmar que dispõem de uma liberdade absoluta.
Mas
pode-se lutar por dizer a verdade e contar aos leitores o que sucede à nossa
volta. Os factos são o que interessa, não as opiniões.
Para
nos sentirmos humanos aqui e agora, para nos resgatarmos da nossa própria
indolência, para voltarmos ao que uma vez fomos, para esperarmos redenção,
necessitamos dos factos, mas com dor.
Precisamos
quebrar o espelho onde nos olhamos todos os dias, pegar num pedaço de vidro e
fazermos um golpe. Confrontar a dor. Olhar o golpe. Sentir a ferida e a náusea.
Uma
conhecida cantora de flamengo dizia que sabia que tinha cantado bem quando a
boca lhe sabia a sangue.
O
bom jornalismo é o que nos enche de marcas como feridas de navalha, o que te
recorda que és humano, o que não te vai deixar dormir.
Vejam
o documentário do “The New York Times” intitulado “4.1 Mile”. O titulo faz
referencia às milhas de distância entre a Turquia e a ilha grega de Lesbos.
São
apenas 22 minutos e vão assistir a crianças resgatadas do Mar Egeu por um
marinheiro grego chamado Kyriakos. Não é agradável de ver.
Vão
ver Kyriakos a dar massagens cardíacas a meninos flácidos que estão a morrer.
Ou a tentar reanimar uma menina nua batendo-lhe nas costas. Vão ver Kyriacos,
silencioso, ao leme, dizer: “O mundo tem que saber o que se passa aqui”.
Vão
ver um menino, recém resgatado, enquanto outros caem à agua no meio de uma
tempestade feroz, gritar à mãe entre lágrimas: “O pai subiu ao barco?” O pai
não subiu. nem subirá.
Podem
ver um homem a afogar-se, mas que antes de desaparecer no fundo do mar estica o
seu braço, na mão sustém um bebé.
Cabe
ao leitor decidir se deseja ser um cidadão ou um número de identificação fiscal
presumido de livre.
Nem
tudo é jornalismo de massagem, nem jornalismo de trampolim. Também temos o
jornalismo desfibrilhador.
Consultor
de comunicação - Escreve às quintas-feiras
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