domingo, 7 de fevereiro de 2016

VÍSIVEIS E INCONTORNÁVEIS: SITUAÇÃO PRESENTE DAS MULHERES NA ARGÉLIA



Rui Peralta, Luanda

O Conselho de Ministros do governo argelino aprovou, no mês de Janeiro, o projecto de revisão constitucional que, entre outros direitos, liberdades e garantias, consagra a “paridade dos homens e das mulheres no mercado de emprego”.

O objectivo central da actual revisão constitucional argelina é a concentração de poderes definida na revisão de 2008. Mas a questão da igualdade do género no emprego é um passo importante na luta das mulheres argelinas, que a actual revisão assume. A revisão constitucional de 2008 já tinha apresentado importantes alterações que permitiram representações femininas no Parlamento e nas instituições públicas. Com a actual garantia constitucional afirma-se um objectivo de paridade no mundo laboral e o Estado compromete-se a agir e a efectuar políticas de fundo para permitir a igualdade de géneros no trabalho.

Apesar de esta paridade estar estabelecida na Constituição, a realidade argelina continua muito distante do texto constitucional. Nesta questão da paridade no emprego a Argélia ocupa o fim do pelotão, encontrando-se atrás dos Estados do Golfo. Mas existe uma contradição na condição da mulher argelina: a descriminação no emprego não corresponde á descriminação social. Na sociedade a mulher argelina ocupa uma posição social muito superior e tem uma liberdade de estar muito superior á de qualquer mulher nos Estados do Golfo e de muitas outras sociedades do mundo islâmico. Na Argélia a paridade é um objectivo que está a ser construído pelas mulheres, numa sociedade em transformação, que aos poucos abandona as suas características familiares patriarcais inerentes às sociedades rurais, e torna-se numa sociedade urbana, assente na família mononuclear, onde marido e esposa trabalham e ambos possuem rendimentos.

A transformação das práticas sociais não é um processo indolor. Ainda na última década do século XX 90% das mulheres argelinas não tinham emprego. Hoje uma em cada seis é empregada, são metade dos quadros da saúde e da educação, 40% dos juízes e cerca de um terço dos deputados. Esta situação representa uma evolução objectiva da sociedade. A igualdade consagrada por todas as constituições argelinas, desde 1962, representou uma aspiração do movimento de libertação nacional. O colonialismo francês deixou as mulheres encerradas no espaço feminino da aldeia, marginalizadas, na sua imensa maioria analfabetas. As “mudjahidates”, as mulheres que combateram pela independência nacional da Argélia, eram mulheres heróicas, mas constituíam um pequeno grupo. A independência trouxe a escolaridade generalizada, o que provocou uma presença massiva das jovens no espaço público, em contradição com as práticas patriarcais.

A luta das mulheres foi, durante a luta de libertação nacional, travada em duas frentes: contra o colonialismo e contra o código de família patriarcal. Com a independência a luta das mulheres contra as práticas tradicionais não igualitárias assume um novo significado e é uma parte importante, e fundamental, do combate contra o subdesenvolvimento. Com a chegada, ao mercado de trabalho, das primeiras mulheres diplomadas a situação das mulheres trabalhadoras argelinas sofre alterações qualitativas profundas, que ultrapassam o âmbito do trabalho e afectam todas as anteriores práticas sociais. A sociedade argelina começou, então, a discutir novas questões como o assédio sexual, a violência doméstica, a acesso aos cargos de maior responsabilidade, o papel da mulher na economia do lar, etc.

Além do notável êxito obtido no plano legislativo há que considerar que o papel e o lugar da mulher na Argélia tornou-se tema de debate social, um assunto corrente, o que favorece a mudança de atitudes e de comportamento. As mulheres nunca poderão aspirar á igualdade se não tiverem a possibilidade de autonomia económica, de obterem um rendimento, nem poderão ser mais numerosas no mercado de trabalho se não existir uma socialização das tarefas domésticas, creches e transportes escolares, por exemplo. E estas questões impulsionam a actividade das mulheres no sentido de garantirem e viabilizarem as conquistas constitucionais.

A Argélia adoptou o sistema de quotas em 2008. Além de assegurar uma maior representatividade da mulher nas instituições democráticas, este sistema permitiu uma melhor participação da mulher na gestão pública e na tomada de decisões. 30% das dos eleitos para a Assembleia Popular Nacional são mulheres (e este é um dado pouco frequente no mundo parlamentar). No entanto não existem senadoras designadas por qualquer dos partidos políticos argelinos (numerosos e que abarcam um largo espectro politico-ideológico).

Apesar da crise económica (a Argélia nunca ultrapassou, mesmo sem crise, os limites de uma economia periférica, sendo, além do petróleo, as remessas dos emigrantes um importante factor para a sua balança comercial) e das repercussões da crise, sentidas no sector da educação, existe uma ampla maioria feminina entre os cursos técnico-profissionais, os bacharelatos, licenciaturas, mestrados e doutoramentos. As mulheres são, ainda, minoritárias ao nível das responsabilidades e dos altos cargos (no sector público e privado), mas participam, cada vez mais, na vida púbica e no sector privado e tornaram-se centro dos debates principais na sociedade argelina. As novas gerações argelinas estão activas e empenhadas nesta causa. Existem centenas de colectivos femininos, diversificados, desde a acção politica, às cooperativas, ONG´s e associações empresariais femininas.

As mulheres argelinas tornaram-se visíveis e incontornáveis. Sem quaisquer dúvidas, elas são, hoje – como o foram no passado, mas com muito menor visibilidade e com inúmeras dificuldades – o motor da esperança na Argélia, os pequenos faróis que iluminam o caminho para o desenvolvimento…

UNICEF. 200 MILHÕES DE MULHERES SOFRERAM MUTILAÇÃO GENITAL



Relatório inclui dados de 30 países, mas afirma que metade dos casos ocorreu em apenas três: Egito, Etiópia e Indonésia. Agência da ONU alerta que número de vítimas deve aumentar significativamente nos próximos anos.

Pelo menos 200 milhões de meninas e mulheres foram vítimas de mutilação genital em 30 países, afirmou o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em relatório divulgado nesta sexta-feira (05/02), o mais completo já feito sobre o assunto.

O documento traz 70 milhões de casos a mais que o estimado em 2014. Segundo o órgão, isso aconteceu porque a população cresceu em alguns lugares e porque a pesquisa passou a incluir mais dados da Indonésia, onde a prática é muito comum e onde antes não havia dados confiáveis.

O relatório afirma que o montante se refere a números de procedimentos de mutilação genital realizados, prática que, "independentemente da forma como é feita, é uma violação dos direitos das crianças e mulheres".

Segundo o Unicef, três países – Egito, Etiópia e Indonésia – concentram metade dos casos. Das 200 milhões de vítimas, 44 milhões são meninas de até 14 anos. Em vários países, a prevalência da mutilação genital nessa faixa etária supera 50%. Na Indonésia, por exemplo, cerca de metade das meninas de até 11 anos já foi submetida à prática. No Iêmen, 85% das garotas são mutiladas na primeira semana de vida, segundo o Unicef.

Já os países com uma maior prevalência de casos na faixa dos 15 aos 49 anos são a Somália, com 98%, a Guiné, com 97%, e o Djibouti, com 93%.

Apesar dos números alarmantes, a agência das Nações Unidas diz que a oposição a esta prática está ganhando força no mundo. Desde 2008, mais de 15 mil comunidades e distritos em 20 países declararam publicamente que estão abandonando a mutilação genital. Além disso, cinco países aprovaram leis que criminalizam a prática.

De qualquer forma, a taxa de progressão não é "suficiente para acompanhar o crescimento populacional" e, se as atuais tendências se mantiverem, "o número de vítimas vai aumentar significativamente ao longo dos próximos 15 anos", diz a pesquisa.

"Determinar a magnitude da mutilação genital feminina é essencial para eliminar a prática", afirmou Geeta Rao Gupta, diretora-executiva do Unicef. "Governos que coletam estatísticas nacionais sobre o assunto estão em melhor posição para entender a extensão do problema e acelerar os esforços para proteger os direitos de milhões de meninas e mulheres."

EK/ap/dpa/lusa/rtr – Deutsche Welle

AREIAS MOVEDIÇAS



EVOLUÇÕES RÁPIDAS NO ÂMBITO DA IIIª GUERRA MUNDIAL


1 – O impacto da intervenção russa na Síria está a fazer-se sentir numa ampla região que envolve naturalmente a Síria e todos os circunvizinhos, assim como na profundidade da península Arábica até ao Iémen, inclusive.

A Rússia está a ser um factor decisivo contra o qual não se vislumbram contramedidas à altura, até por que as alianças na sombra do Estado Islâmico, as próximas e as afastadas, estão cada vez mais desmascaradas.

O impacto está a provocar areias movediças debaixo dos pés dos outros interesses dentro da Síria e ao derredor, não escapando a coligação, que no terreno se vê limitada à franja nordeste, onde mantém um entendimento tácito com a Turquia e “zonas tácitas pardas” com os curdos sobretudo no Iraque, perdidos na própria teia que tão inadvertidamente foram urdindo.

As conversações de Genebra tiveram mesmo de ser sabotadas pela oposição, por que nos últimos dias as vitórias no terreno se foram sucedendo a um ritmo estonteante, tanto nas cidades, como nas áreas rurais, particularmente em Alepo. 

2 – A espinha dorsal da Síria, de norte a sul e em paralelo à linha de costa, está quase recomposta, faltando a vértebra de Alepo (onde as forças governamentais estão a avançar), que antes da guerra era a maior cidade.

A coligação liderada pelos Estados Unidos, habituada às mascaras, não se está a desenvencilhar delas e, no momento em que as vitórias dos aliados do governo sírio se vão sucedendo no terreno, entraram em desfile de carnaval, acusando a Rússia de torpedear as conversações, desde logo por causa da sua bem-sucedida ofensiva em larga escala. A quente, mal se tinham sentado à mesa…

Quer o Estado Islâmico, quer a Frente Al Nushra estão a ser limitados em bolsas, com deserções em direcção à Turquia a norte e à Jordânia e Israel a sul, cada vez com mais problemas de logística, com cada vez mais reduzida capacidade de movimento e sem poder passar mais ao contra ataque.

Por outro lado seus comandos operacionais estão a ser perseguidos, desarticulados ou pulverizados: os chefes decapitadores, estão a ser decapitados das estruturas das duas organizações terroristas.


3 – A Turquia sob mando de Erdogan está a sentir os efeitos das areias movediças que estão já a pisar: os fluxos de petróleo do Estado Islâmico são agora em escala cada vez mais reduzida, com Erdogan a ser embaraçado com a perda de seus tentáculos dentro da Síria e vendo-se a braços com o crescimento operativo das várias linhas dos curdos, algumas das quais apoiadas pela coligação apoiada pelos Estados Unidos.


O chefe terrorista Erdogan está agora tentado à invasão da Síria por parte de suas forças, única fórmula para, não podendo fugir à escalada, tentar contrabalançar as perdas, a pretexto de combater os curdos e impedir que eles fermentem para lá dos níveis em que estão já a fermentar dentro do seu próprio território, onde medidas draconianas de carácter fascista passaram à ordem-do-dia.

A campanha de propaganda contra a Rússia agora em crescendo, é um sinal dessa “manobra que se segue”, que terá aberta ou veladamente o suporte da NATO.

A Rússia está a aumentar a presença de meios militares estratégicos na Síria, acautelando essa escalada e privilegiando a persuasão, o que é sinal que no terreno os meios terrestres dos aliados do governo sírio e o exército sírio estão a ser reforçados na previsão da chegada de forças terrestres turcas a solo sírio.

Até ao reinício das conversações tidas cinicamente como “em pausa”, a escalada pode ocorrer… com resultados imprevisíveis para a Turquia.
  
4 – No Iraque as vitórias no terreno vão-se também sucedendo, o que empolga os curdos, aliados do governo iraquiano e das milícias apoiadas pelo Irão, que se fazem sentir aliás até dentro do Líbano e da Palestina, uma vez que o Hezbollah se aliou ao Hamas.

O nordeste da Síria, espaço da coligação liderada pelos Estados Unidos, está a ficar reduzido a uma bolsa com “limites e consistência tacitamente pardos”, ou seja: os próprios Estados Unidos com os curdos arriscam-se a pisar outro campo de areias movediças, pois tendem a ficar sem controlo da situação, a qualquer momento…

Como o carnaval de máscaras aí é grande, nessa região é cada vez mais difícil separar o real do virtual, ou conseguir influir sobre um tabuleiro de alianças tão volátil.
  
5 – Os falcões sionistas estão também a sentir as areias movediças que já estão a pisar: no sul da Síria as bolsas terroristas, que têm sido apoiadas a partir do seu território, estão derrotadas em toda a linha e o Hezbollah está a procurar agora infiltrações inclusive no Golã.

O isolamento de Israel, o sionismo está a procurar gerir tão discretamente quanto o possível, mas a presença russa também no sul da Síria é para o sionismo cada vez mais perturbador, ao ponto dos movimentos aéreos de sua aviação estarem a ser radiografados pelos meios electrónicos russos, havendo a ameaça velada dos poderosos mísseis russos, que cobrem toda a Síria.

Os sionistas já não podem agora actuar do mesmo modo que antes, pelo que limitaram o raio de acção de seus meios e estão discretamente remetidos a uma espectativa de carácter defensivo.

Os meios de contrapropaganda disponíveis ao sionismo vão dando entretanto alguns sinais do nervosismo: o Debka Files admite, sem grande consistência, que a Rússia venha a participar na IIª intervenção do sistema NATO / AFRICOM na Líbia…

6 – A Jordânia dá sinais de ser um caso de camaleão face às areias movediças, aproximando-se da Rússia, num “golpe de rins” do seu rei, algo que faz aumentar ainda mais as preocupações sionistas.


O rei entende que se está em plena IIIª Guerra Mundial, com os dois campos islâmicos (Arábia Saudita e Qatar versus Irão) a defrontarem-se no seu fulcro.

Esse é um dos sinais mais evidentes do nível de poder que a Rússia está a demonstrar ter já alcançado no terreno sírio, em socorro do seu governo.

Para a Jordânia, onde se concentram alguns dos maiores campos de refugiados sírios (um milhão de refugiados), não há aparentemente outra alternativa, até por que as areias movediças podem conduzir ao início de acções terroristas no seu próprio território.

7 – A Arábia Saudita já está em guerra, assumindo incursões no Iémen, mas sofrendo no seu próprio território de respostas armadas, algo que não seria aconselhável às estruturas de sua“pétrea” monarquia feudal.

A Arábia Saudita e o Qatar sempre quiseram que o caos se disseminasse longe de suas portas, mas agora numa situação decrépita, já não o conseguem, começando a envolverem-se directamente nos conflitos, sem remissão, podendo arrastar outros como o Egipto para as areias movediças…

A situação no Mar Vermelho e no mar entre o Iémen e a Somália é outra de suas preocupações e a sua manobra naval está também a sofrer as consequências, pois alguns navios já foram atingidos por fogo inimigo.

No lado do Golfo Pérsico por outro lado, os Estados Unidos acabam de retirar o único porta-aviões que lá estava destacado, face ao crescimento da resposta militar do Irão, que pode ser tentado a fechar em qualquer altura propícia o estreito de Ormuz…

Por fim a Arábia Saudita pretende enviar tropas terrestres para a Síria, em reforço da coligação liderada pelos Estados Unidos…
  
8 – As areias movediças vão-se distender também em África, onde estará eminente a IIª intervenção da NATO / AFRICOM na Líbia, ela própria entregue ao caos… contaminando ainda mais os imensos espaços transfronteiriços do Sahara e do Sahel… em direcção ao sul, onde a água interior é cada vez mais a aliciante disputada nos Grandes Lagos e na RDC.

A sul os BRICS, com apoio da África do Sul, começam a estar tentados a reforçar posições face à disseminação do caos em expansão a partir do Sahel e envolvendo-se nas disputas em curso sobre a água interior de África.

Angola é nesse sentido e uma vez mais uma “pedra de toque” sensível na invasão de areias movediças que se vão chegando ao sul, numa cada vez mais imprevisível estabilidade relativa em resultado do evoluir volátil das conjunturas de caos.

Não tendo sequer geo estratégia inteligente para dominar a complexidade conjuntural relativa ao que potencia a sua própria água interior, Angola só com os esforços político-diplomáticos e fazendo uso de políticas de paz, indicia não possuir por si capacidade suficiente de persuasão, ou a capacidade organizativa e logística de meios adequados para fazer face directamente à situação num raio de acção que atinja as grandes nascentes situadas nos Grandes Lagos (Congo, Nilo e Zambeze).
  
Ilustrações e fotos:
- Mapa da Síria;
- Mascaramentos e virtualidades da coligação ocidental em suporte da Arábia Saudita e do Qatar;
- O TU-160, uma das armas estratégicas russas já empregues na Síria.

EUA. A CRUZ E O MARTELO GANHAM EM IOWA



O crescimento da candidatura de Bernie Sanders é em parte resultado do que foi semeado por movimentos como o Occupy Wall Street.

Luis Matías López * - Público.es – em Carta Maior

Num Estado majoritariamente branco e evangélico, não é de se estranhar que Deus participasse, ainda que de forma oficiosa e indireta, da primeira etapa da longa e complexa disputa para escolher os candidatos dos dois grandes partidos à presidência dos Estados Unidos: as primárias de Iowa.

No bando republicano, o candidato de deus se chama Ted Cruz – podemos chamá-lo de “a cruz” – e se impôs surpreendentemente sobre a prepotência populista do favorito Donald Trump, deixando outro filho de imigrantes cubanos como Marco Rubio na terceira posição.

No bando democrata, o empate técnico de Hillary Clinton e Bernie Sanders significa, na prática, um triunfo deste segundo – que será “o martelo” em nosso quadro –, já que confirma que sua candidatura se fortalece e assusta os poderes fáticos, embora sem o rastro da foice e apesar do medo que abunda nos Estados Unidos, onde muitos consideram comunistas até aqueles que encarnam os valores do que a Europa chama de social-democracia.

Embora a quantidade de delegados em jogo para as convenções finais sejam menos de 1%, a tradição diz que o efeito dos resultados em Iowa sobre a campanha é muito mais relevante do que supõe a simples aritmética. Foi lá, por exemplo, onde a estrela de Hillary Clinton começou a se apagar em 2008, e despontou a de um semi desconhecido senador negro de Ohio, Barack Obama. Parece muito menos provável, nesta ocasião, que a ex-secretária de Estado (do governo do próprio Obama) e seja novamente vítima dessa maldição, mas não impossível.

Deus não esteve ausente, mas não foi um ator principal na batalha dos democratas, que teve a virtude mais infrequente dentro da dinâmica eleitoral estadunidense, ao enfrentar duas concepções opostas de como se deve governar o país. Acontece que, independente da proposta de recuperar um certo progressismo e da defensa de alguns aspectos do legado de Obama – que parecem depender de para onde sopra o vento –, Clinton defende o sistema e protege, antes de tudo, os interesses do establishment de Washington, que representa 1% da população que concentra o poder e o dinheiro.

Seu problema é como convencer as classes médias, principais vítimas da crise e com um peso decisivo no resultado final, de que também atuará em sua ajuda. Do contrário, seu até agora principal e atípico concorrente, o senador Bernie Sanders, de Vermont, que se apresenta como social democrata e porta-voz dos 99% restantes da população, que abomina os magnatas de Wall Street, que defende uma universidade gratuita, uma saúde pública para todos, num sistema mais amplo do que o produzido pela reforma de Obama e que levanta a bandeira da luta contra a desigualdade, tão pavorosa lá como em tantas outras partes do mundo.

O crescimento da sua candidatura é em parte resultado do que foi semeado por movimentos como o Occupy Wall Street (similar ao 15M da Espanha) e se nutre da decepção desse ectoplasma chamado esquerda, tão difícil de definir nos Estados Unidos, e que se não consegue o milagre de atrair os votos de centro está condenado de antemão ao fracasso.

Clinton e Sanders terminaram empatados em Iowa, as primárias da próxima semana, em New Hampshire, apresentam uma certa vantagem a Bernie, e deverá manter a ilusão, ao menos durante algum tempo, de que os democratas podem preferir apostar no caráter mais progressista da sua alma. Mais que uma probabilidade real, parece uma utopia. Existem muitas forças – e muito poderosas – atuando contra Sanders. Já se sabe que, embora não pareça, no final são os mesmos que terminam ganhando sempre as eleições dos Estados Unidos, só mudam alguns matizes. Aqueles que, cheios de boas intenções, tentam quebrar essa dinâmica, costumam sofrer as consequências. Ainda assim, Sanders – que deve ter consciência dos riscos – talvez se dê por satisfeito com seu período de glória, com o fato de ter sacudido as consciências.

Deus sempre está em campanha nos Estados Unidos. As possibilidades de que um candidato ateu ou agnóstico – não se sabe ao certo na verdade, mas se suspeita que sim – possa se tornar presidente são tão remotas como as que existem de que se alcance algum dia uma solução justa e negociada ao conflito entre palestinos e israelenses. Entretanto, a utilização do nome de deus em vão – ou seja, para ganhar votos – é tradicionalmente um patrimônio dos republicanos.

A religião está marcada a ferro e fogo no DNA da campanha de Ted Cruz, senador texano filho de um imigrante cubano convertido em pastor, defensor de um conservadorismo da velha escola voltado a criar uma crítica ao establishment de Washington, embora essa pretensão de ser um candidato desligado do sistema seja uma contradição com o fato de ser senador. Nisso, e em algumas outras coisas, ele se assemelha ao seu principal rival, Donald Trump, que também nunca ocupou um cargo executivo – no caso de Trump, nunca disputou cargo eletivo. Exageros extremistas a parte, Cruz lembra um pouco, em sua retórica e ideologia, ao Tea Party, o que é refletido pelo apoio mais recente conquistado por sua candidatura: o de Sarah Palin.

Em Iowa, Ted Cruz apelou a deus para que o ajude a manter vivo o despertar e o renascer dos valores do cristianismo, que ele mesmo diz encarnar. Os seus gestos não são por acaso. As orações, as invocações ao “supremo criador” e o uso reiterado da palavra “amém” são manifestações que fluem em suas performances, assim como uma tentativa de reivindicar ou de encarnar a ressurreição do espírito de Ronald Reagan – é incompreensível na Europa como essa figura pode se tornar um dos grandes ícones republicanos.

Essa religião na qual Cruz acredita e que utiliza para ganhar apoio é a mesma ferramenta com a qual denuncia que o país está sendo destruído pelo aborto, pelo matrimônio homossexual, pelas técnicas de reprodução assistida e pela “perseguição aos cristãos”. Muito já se escreveu sobre o radicalismo xenófobo e a ultra-direita de Donald Trump, a mais notória anomalia da campanha republicana até agora, mas é assombroso comprovar até que extremos chega a filosofia político-religiosa que ele quer promover dentro da Casa Branca.

Trump, o magnata tão seguro de si que afirma que não perderia apoios mesmo que matasse alguém a tiros na Quinta Avenida de Nova York, e que defende a proibição de entrada de muçulmanos no país e a deportação de 11 milhões de imigrantes, também se proclamou “um grande cristão”. Chegou a se atrever a citar a bíblia, para sua desgraça: cometeu um lapso imperdoável em certo momento, o que não passou inadvertido pelos eleitores e sobretudo pelos adversários.

Num país onde a frase “em deus confiamos” está impressa no dinheiro, e num Estado como Iowa, onde a religião possui importância social e política, o terceiro na disputa das primárias republicanas, o também filho de imigrantes cubanos Marco Rubio, não podia deixar o monopólio do cristianismo militante nas mãos de Cruz. Assim, e sem chegar aos extremos de seu oponente, o candidato conservador mais ligado ao sistema e à ideologia tradicional republicana não se deixou de se referir, mesmo quando totalmente fora de contexto, no “presente da salvação oferecido por Jesus Cristo”, que “veio à terra e morreu por nossos pecados”.

Com certeza, tanta apelação às forças divinas poderia terminar sendo uma contradição evidente, em comparação com as forças mais terrenais e objetivas que deveriam atuar pelo bem do país, mas isso é algo que nenhum republicano (e pouquíssimos democratas) se atreveriam a proclamar em público.

Seja como for, o resultado das primárias republicanas em Iowa foram um freio às consequências potencialmente devastadoras de uma arrancada de Trump, embriagado pela vantagem que as pesquisas lhe davam. Seu segundo lugar, atrás de Cruz, tem o amargo sabor da derrota. Pelo contrário, a terceira posição de Rubio, a pequena distância sobre os seus dois principais rivais, são sentidos como um certo ar de esperança e, até lhe poderiam transformar no candidato favorito em algum tempo, principalmente pelo fato de ser o preferido pelo aparato de Washington e pelas estruturas políticas tradicionais. Após a primeira e não decisiva batalha, a guerra entre os republicanos se mostra incerta, e talvez nem todos os atores relevantes tenham surgido no cenário – por exemplo, uma figura como Jeb Bush, filho e irmão de ex-presidentes, pode ter sido dada prematuramente como morta, e ainda não é realmente uma carta fora do baralho.

Enquanto isso, no campo democrata, Hillary Clinton e sua equipe, que inicialmente pensavam que a campanha seria um passeio triunfal, estão inquietos após o empate com Sanders em Iowa e devido às ameaças fruto da atuação dela no assalto terrorista à embaixada dos Estados Unidos na Líbia e da utilização do seu e-mail pessoal no intercâmbio de mensagens classificadas como secretas. Talvez se pergunte se terminará não saboreando o prato mais delicioso do jantar, quando parecia que o banquete da vitória já estava sendo servido, como há oito anos atrás.

Contudo, como deus é todo poderoso, será ele que marcará o destino de uns e outros, a não ser que prefira não se meter em política.

* Ex redator-chefe e ex correspondente em Moscou do diário El País, membro do Conselho Editorial de Público.es até a desaparição de sua edição em papel.

Tradução: Victor Farinelli - 
Créditos da foto: wikimedia commons

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