Miguel
Guedes – Jornal de Notícias, opinião
Como
não consta que Nuno Carvalho ponha as mãos na massa do pão que vende aos seus
clientes, este texto não se lhe dirige. Não espero que tire as mãos da massa e
as coloque na consciência. Após a tentativa de contenção de danos do fundador
da "Padaria Portuguesa" ter agravado a natureza das suas declarações
iniciais, percebeu-se como evoluiu a sua opinião: firme e seca como pão após
umas horas de exposição pública. É uma opinião sua, não é um crime de ninguém.
Quem quer saber então de elevar o salário mínimo quando os seus próprios
"colaboradores" trabalham em vários sítios ao mesmo tempo? Alguma vez
lhe terá ocorrido que talvez isso aconteça porque o salário mínimo que paga a
alguns deles não chega? Eis a pequena ou subtil diferença que separa 577 euros
salário-mês de 10 milhões de euros lucro-ano.
À
selva o que é da selva. O patrão da "Padaria Portuguesa" nada disse
de ofensivo no contexto do "novo empreendedorismo" reinante. De
resto, se alguma vantagem teve mais um simulacro de indignação, foi o de trazer
para fora do abrigo uma enorme quantidade de leões e de ovelhas, prontíssimos
para ocupar as suas posições nas trincheiras. Os primeiros, agrupados em
alcateia, defendendo com unhas e dentes a flexibilização da contratação e
despedimento, as horas extras por decreto, as vantagens relativas do descanso para
os trabalhadores, essa cambada de calões que arruínam a produtividade da firma.
Os segundos, agrupados em rebanho, apelando ao boicote do consumo de hidratos
na casa da Padaria, numa sequela da mais antiga série que se conhece sobre a
irritação repentina: só mais uns dias e isso passa até porque
hoje-tenho-que-passar-pelo-Pingo-Doce-da-Jerónimo-Martins-antes-de-ir-para-casa.
Lamentavelmente, nada disto se resolve erguendo muros ou pichando os que existem.
Uma
vez mais, a multidão resolve cortar a árvore no meio de uma floresta densa,
como um bálsamo. As afirmações do patrão-padeiro, enroladas em pensamento
modernaço-liberal, indiferença e secura gritantes, são bem o espelho da actual
concepção do mundo laboral. Uma cartilha bem à mão. Trabalho mal remunerado e
precário para os que se sujeitam, horários acumulados para as mulas,
distribuição de pequenos prémios como cenouras. O que é verdadeiramente
inconcebível é a falta de bom senso que acompanha o dono de tamanha
desproporção (não estamos perante um pequeno negócio que não consegue pagar
acima do salário mínimo aos seus poucos trabalhadores). Mas não nos iludamos no
ódio para podermos imolar por conforto. Este é só mais um caso de pão com sabor
a escravidão e miséria, igual a tantos outros sítios onde há alguns patrões a
quem ninguém aponta uma câmara.
O
autor escreve segundo a antiga ortografia
*Músico
e advogado
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