Breno
Altman – Opera Mundi
O
novo ciclo da crise do capitalismo, iniciado em 2008, operou mudanças
relevantes no cenário latino-americano e na política dos Estados Unidos para a
região.
O
encolhimento do mercado internacional, a longa estagnação europeia, a paralisia
japonesa e o aumento dos custos de produção na China, entre outros fatores
expressivos da mais grave situação de subconsumo desde 1929, determinaram uma
progressiva reorientação do Departamento de Estado.
Desde
o ataque às torres gêmeas em 2001, a América Latina tinha perdido relevância
nos planos de ação da Casa Branca, que se concentraram no Oriente Médio, em uma
estratégia para consolidar sua hegemonia sobre a região, abrir novas fronteiras
de negócios, ampliar a cabeça de ponte para suas bases militares e controlar
fontes de petróleo.
As
forças progressistas puderam, então, aproveitar uma janela de oportunidade
aberta pelo cruzamento entre o colapso do neoliberalismo nas nações
sul-americanas, materializado desde o final dos anos 1990, e o vácuo
provocado pelo formidável giro oriental do imperialismo.
Apesar
da evidente participação do governo Bush no golpe venezuelano em 2002, entre
outros eventos de desestabilização contra administrações progressistas, o fato
é que os partidos de esquerda tiveram suficiente margem de manobra para
conquistar o comando de diversos Estados nacionais e impulsionar modelos de
transição que superavam, em maior ou menor medida, o receituário fixado pelo
Consenso de Washington.
As
oligarquias regionais, desgastadas e divididas pelos fiascos econômico-sociais
da década anterior, revelavam-se incapazes de reorganizar alguma narrativa
sólida sobre os problemas de seus países e perdiam pujança política na
medida em que suas forças se reduziam à parte das camadas de alta e
média renda que tinham sido beneficiadas durante o período neoliberal.
Da
eleição de Hugo Chávez, em 1998, até a terceira vitória presidencial do PT, em
2010, foram doze anos de ofensiva progressista, durante a qual um importante
conjunto de nações trocou de governo e se alinhou ao programa de reformas
sustentado pelos partidos pertencentes ao Foro de São Paulo.
A
partir de 2008, no entanto, foram se gestando as condições para a reversão
desse movimento, estabelecendo uma potente contraofensiva conservadora, cujos
marcos mais notáveis, até o momento, foram a vitória de Maurício Macri nas
eleições argentinas e a derrubada da presidente brasileira, Dilma Rousseff.
O
primeiro desses vetores foi a queda de volume e preço na exportação
de commodities, principal fonte de recursos para os programas
distributivos e de alavancagem do mercado interno nos processos em curso. Esse
declínio se refletiu paulatinamente em restrições orçamentárias,
desequilíbrio das balanças comerciais, pressão cambial, repique inflacionário e
esgotamento fiscal.
O
segundo remete a uma contradição intrínseca dos modelos de transição
efetivamente adotados: políticas públicas reforçaram a demanda, com forte
crescimento de salários reais e da renda familiar, direta ou indireta, mas a
dominância da propriedade capitalista, em especial na sua forma monopolista,
manteve os fluxos de investimento e crédito sob controle de grupos privados.
Quando
o financiamento dessas políticas públicas se viu abalado, a dependência do
Estado em relação às grandes corporações capitalistas,
particularmente bancos e fundos de investimento, locais e
internacionais, intensificou a hegemonia do capital rentista, que passou a
exigir taxas de juro mais elevadas e garantias mais robustas de rendimento.
Sem o
atrativo da expansão dos mercados internos, a burguesia monopolista se refugiou
no sistema financeiro, interrompeu investimentos, passou a pressionar pelo
corte dos custos salariais e de direitos, estabelecendo uma
barragem contra a política econômica que operava a ampliação do consumo a
partir do investimento público e dos gastos sociais.
O
terceiro fator tem sua origem na nova abordagem do imperialismo sobre a América
Latina ao irromper a crise capitalista: com suas importantes reservas minerais
e energéticas, mão de obra abundante e relativamente barata, população superior
a 500 milhões de habitantes, a região voltou a ser fundamental nos cálculos das
grandes potências, particularmente na estratégia dos Estados Unidos para
recompor sua hegemonia sobre o mundo ocidental.
A
permanência de governos progressistas, nessas circunstâncias, passou a ser
intolerável. Apenas a restauração política das velhas oligarquias poderia
garantir a aplicação de um programa de corte ultraliberal, que colocasse as
potencialidades latino-americanas a serviço da acumulação de capitais em
tempos de decadência.
Todas
as administrações lideradas pela esquerda, das mais moderadas às mais radicais,
deveriam ser varridas do mapa.
Os
interesses imperialistas confluíam com os das burguesias internas: achatar
salários, desregulamentar a exploração de riquezas minerais, cortar despesas
públicas para dar mais solvência ao capital financeiro, multiplicar os espaços
de negócios privados, transferir maiores cotas do orçamento e demais fundos
públicos para os grupos empresariais, privatizar empresas estatais.
Aos
poucos foram sendo tecidos armadilhas e instrumentos para dar corpo à
contraofensiva, aproveitando-se das debilidades estruturais dos modelos de
transição e das dificuldades políticas derivadas de alternativas
distributivistas desprovidas da opção de uma revolução
produtiva.
Os
países que realizaram transformações relevantes na estrutura do Estado – como
foi o caso de Venezuela, Nicarágua, Bolívia e, em certa medida,
Equador – apresentam melhores condições de resistência e enfrentamento
à escalada restauradora.
Nesses
exemplos, destacadamente no caso venezuelano, o centro da estratégia foi
ocupado por processos constituintes que enterraram velhas instituições,
quebraram a influência da alta tecnocracia burguesa, estabeleceram mecanismos
de democracia direta, neutralizaram os aparatos judiciais e repressivos,
alteraram a direção político-ideológica das Forças Armadas, arrebentaram o
monopólio das comunicações.
A
revolução política levada a cabo, nos casos citados, não alterou a ordem
econômica, é fato, mas criou um escudo potente diante do avanço das forças
reacionárias e seus associados internacionais. Mesmo que os problemas
estruturais permaneçam sem solução, o que realimenta a crise na qual navega a
oposição de direita, o sistema institucional erguido pelas forças
progressistas impede, ao menos até agora, a retomada do poder pela
contrarrevolução oligárquico-burguesa.
As
experiências que não trafegaram por essas águas, deixando intacto o velho
Estado, passaram a depender quase exclusivamente do sucesso
econômico-administrativo, com seus reflexos sobre resultados eleitorais ou o
humor da cidadania. As condições de disputa por hegemonia tornaram-se mais
precárias e facilmente anuláveis, abrindo caminho para o estrangulamento de governos
populares e a insurreição das demais trincheiras do Estado – em particular os
poderes legislativo e judiciário – contra a intrusão da esquerda no vértice da
institucionalidade.
O
caso brasileiro, mais que o argentino, representa notavelmente a falência
de uma estratégia baseada apenas na ocupação de espaços, mesmo aqueles tão
nobres como o governo central, fixando o protagonismo da economia sobre a
política e desconsiderando que o avanço de reformas, em países do capitalismo
tardio, fatalmente desemboca em cenários de confronto, nos quais a questão do
Estado é o elemento decisivo.
Se
a implementação de mudanças econômicas e sociais, por mais moderadas que sejam,
não é acompanhada pela passagem para as mãos da classe trabalhadora dos
instrumentos fáticos de poder – parlamento, poder judiciário, aparatos
militares e policiais, serviços de inteligência,
instituições educacionais, redes de comunicação –, além da promoção
de novos organismos para mobilização e representação do campo
popular, o inevitável enfrentamento transforma-se praticamente em um jogo de
cartas marcadas.
O
fato é que a vitória conservadora na Argentina e no Brasil, mesmo com a
sobrevivência de outros relevantes processos contra-hegemônicos, alterou
nitidamente a correlação de forças na região, em favor do imperialismo e das
classes dominantes locais.
Mesmo
que o cenário tenha passado a ser de defensiva estratégica, com a brava
resistência das fortalezas principais do arco bolivariano e a retomada da
mobilização político-social em países nos quais a direita recuperou o comando
do Estado, também se pode afirmar que um novo ciclo hegemônico do
bloco imperialista está longe de ter se consolidado.
Antes
de mais nada porque os quase vinte anos de governos progressistas, mesmo com
seus erros e insuficiências, deixaram um vasto legado positivo na
memória popular, que não tardará a se contrapor ao caráter excludente
e predatório do programa ultraliberal oferecido pelas elites.
Outro
elemento relevante é a preservação, apesar do recrudescimento repressivo e de
suas próprias crises, das organizações partidárias, sindicais e populares que
vertebram o campo de esquerda. Não é simples a aplicação da agenda do capital
enquanto esses corpos políticos sobreviverem, ao mesmo tempo em que ainda se
calcula como altíssimo o risco de romper o ordenamento democrático-formal dos
Estados, anulando os mecanismos sociais, políticos e eleitorais
através dos quais atua a resistência.
Também saltam
à vista certas vulnerabilidades da equação econômica patrocinada
pelas burguesias latino-americanas, na qual a restrição da demanda
interna, por conta de políticas para atração dos fluxos de capital,
pode provocar um prolongado período de recessão ou baixo crescimento,
aprofundando as contradições sociais e os próprios conflitos entre distintas
frações empresariais.
Por
fim, não se deve subestimar o significado da ascensão do nacionalismo burguês
nos países capitalistas centrais, em especial nos Estados
Unidos, o que pode incrementar tantos as tensões entre blocos quanto
as disputas interimperialistas, produzindo choques de maior ou menor
intensidade, ameaçando a ordem mundial construída depois do colapso
da União Soviética e debilitando a capacidade hegemônica das classes
dominantes periféricas.
A
contraofensiva conservadora, nessas circunstâncias, mesmo sendo estratégica,
pode se exaurir a curto ou médio prazo. Mesmo sob fogo cerrado, para
a esquerda vale a pena resistir e lutar, avaliando as experiências e corrigindo
os erros, acumulando forças desde já, preparando-se para as oportunidades que a
história costuma oferecer para quem não abaixa a cabeça.
*
Breno Altman é diretor editorial do site Opera Mundi.
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