Pedro
Marques Lopes | Diário de Notícias, opinião
Já
conhecíamos o método de lançar suspeitas, pôr partes de processos, escutas,
interrogatórios em alguns jornais e televisões e assim fazer julgamentos na
praça pública. Já suspeitávamos que existiam situações em que agentes do poder
judicial, não sendo capazes de obter provas para as suas convicções, punham a
correr no pasquim do costume a sua verdade para que, no fundo, a pessoa fosse
condenada, ferida no seu bom nome, na sua honra, e sem que nada pudesse fazer
contra isso.
Com
o despacho de arquivamento do inquérito aberto a Dias Loureiro e Oliveira Costa
atingimos um novo patamar no caminho que estamos a percorrer rumo à justiça
popular. Sendo a perversidade suprema serem agentes de justiça a promovê-la.
"(...)
O que nos permite suspeitar que o verdadeiro objectivo da celebração dos
negócios (...) foi tão-só o enriquecimento ilegítimo de terceiros à custa do
prejuízo do Grupo BPN, nomeadamente e, pelo menos, de Dias Loureiro, de
Oliveira e Costa e de Al Assir, enriquecimento esse sob a forma do pagamento de
comissões." Ou seja, arquiva-se ao mesmo tempo que se condena.
Este
é apenas um exemplo das várias considerações com o propósito de levantar
suspeitas e comentários acusatórios que a procuradora do Ministério Público faz
no despacho em que conclui que não há matéria para fazer uma acusação. Alguém
que tem como imperativo legal apenas investigar, encontrar provas ou concluir
que não há base para prosseguir o processo decide insinuar e usar a autoridade
que lhe é dada pela lei para acusar sem provas.
Não
será necessário discorrer sobre este ataque aos direitos fundamentais ou sobre
a, desta vez, descarada condenação na opinião pública apenas baseada numa
convicção de um agente de justiça. Até o mais desconhecedor do Direito saberá
que para alguém ser acusado tem de haver, ao menos, indícios de provas e que
para ser condenado as provas têm de ser sólidas.
A
procuradora definiu uma nova forma de fazer justiça: condenar sem ser tribunal
e construir teses sem apresentar provas. O Ministério Público cospe no Estado
de direito e tabloidiza a Justiça.
Um
dos aspetos mais preocupantes desta história é a normalidade com que se
continua a aceitar este ataque ao regular funcionamento das instituições, que
com este despacho atingiu uma nova dimensão.
Custa
a entender, desde logo, a maneira como tantos órgãos de comunicação social
trataram de forma ligeira este brutal exemplo de mau funcionamento da Justiça.
A sensação é a de que há muita gente que se deixou aprisionar a uma corrente,
em voga há muito tempo, de que quem chama à atenção para atropelos ao Estado de
direito, às garantias básicas dos cidadãos em sede de direito penal, à defesa
do direito de presunção da inocência, à presunção de inocência, à regra do
contraditório, à não inversão do ónus da prova, à vergonha que é a condenação
na opinião pública com base em pedaços de escutas, de interrogatórios ou
tão-somente de opiniões, não passa de um defensor de corruptos e de criminosos.
Alguém que fale das evidentes irregularidades na Operação Marquês é, claro está,
um socratista. E, não duvido, quem se revoltar contra este despacho será
apelidado de defensor de Dias Loureiro. Não faltam nem faltarão acusações de
amiguismo ou pior.
Mas
nem os órgãos de comunicação social sérios que olham para o lado nem os
colunistas que promovem a justiça popular são os mais responsáveis pelo atual
estado de coisas. A pergunta que deve ser feita é: estão os deputados, o
governo, o Presidente da República, juízes, magistrados do Ministério Público,
Ordem dos Advogados, políticos mais ou menos importantes, confortáveis com tudo
o que se tem passado na justiça criminal? No mesmo sentido: há algum destes
senhores ou organizações que desconheça, por exemplo, a gravidade para os mais
basilares direitos deste despacho de arquivamento em forma de sentença de
condenação?
Estou
certo das respostas a estas perguntas. Não só sabem da gravidade deste despacho
como sabem que os atropelos sérios se vão sucedendo. Só que em algumas
situações as irregularidades trazem-lhes vantagens políticas ou, na maioria das
situações, têm, pura e simplesmente, medo. Medo que no momento em que apontem o
dedo ao estado das coisas surja uma "notícia" numa primeira página do
tabloide do costume dando conta de uma investigação real ou inventada. Medo que
se disserem alguma coisa sobre a infâmia que é aparecerem escutas ou
transcrições de interrogatórios nesse tabloide, ou que se critique a forma como
atuam, estes iniciem campanhas com insinuações ou apareçam "notícias"
prejudiciais. No fundo, um bando de cobardes que assistem ao afundar do sistema
que prometeram proteger e assobiam para o lado. E há os autênticos
colaboracionistas que são os políticos-colunistas que conseguem escrever sobre
o estado da democracia num tabloide que faz da divulgação de partes de escutas
e de interrogatórios em segredo de justiça uma atividade corriqueira, da
calúnia e da distorção de factos uma razão de ser, ou os políticos e os
jornalistas que calmamente comentam no canal dessa espécie de jornal
interrogatórios no Ministério Público do dia anterior.
O
despacho em causa é um ataque feroz ao Estado de direito e consagra a
tabloidização da Justiça, mas serve também para nos recordar pela enésima vez a
cobardia e o autêntico colaboracionismo de muitíssima gente, sobretudo dos
nossos políticos. É que não há nada mais político do que a Justiça, no sentido
de que não há nada que interesse mais ao bem comum do que um regular e
democrático funcionamento da Justiça.
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