Como
hoje têm poder, tentam impor suas opções como as “únicas possíveis”. Mas nesta
recusa ao debate está sua grande debilidade: que restará deles quando houver
democracia real e a Economia deixar de ser dogma?
Felipe
Calabrez – Outras Palavras
O
capitalismo liberal do início do século XIX ruiu. A intervenção do Estado então
entrou em cena para salvaguardar o sistema, (re)politizando a acumulação, como
demonstrou Polany, e recolocando o problema da legitimação sob o capitalismo
tardio, como apontou Habermas. Esse diagnóstico, feito com base nos países
centrais, pode ser estendido, em seu ponto fundamental, para os países
“periféricos”, visto que esses são fruto da própria dinâmica de competição
entre os países centrais que, por meio da conquista, do saque e da pilhagem, colonizaram
territórios inserindo-os na lógica mercantil da exploração e do
lucro. Assim, os países latino-americanos desenvolveram estruturas de dominação
e de exploração impostas inicialmente de fora e desenvolveram o capitalismo
acompanhados de estruturas políticas fortemente autoritárias.
O
século XX é marcado por um capitalismo estatalmente regulado, o que fica
evidente após as medidas do New Deal para reverter a grande depressão e após o
advento da macroeconomia keynesiana. Keynes revoluciona o pensamento econômico
ao demonstrar que o sistema não tende naturalmente ao pleno emprego, por sofrer
uma constante insuficiência de demanda, algo que pode ser revertido por meio de
medidas de estímulo ao investimento. Tais medidas, que incluem os investimentos
públicos, mas não apenas, abrem caminho para que, no campo da teoria econômica,
o Estado adquira papel relevante, influenciando decisivamente nos agregados
econômicos de um país. O advento da macroeconomia abre caminho para a
centralidade da política econômica estatal e produz um fenômeno
sociologicamente relevante: Os economistas passam a ser detentores de um tipo
de saber considerado fundamental para as políticas de Estado, e,
consequentemente, passam a ocupar – em alguns países mais, em outros menos – os
postos de decisão chave no aparelho de Estado.
Os
países latino-americanos ilustram claramente as consequências apontadas acima.
Como ex-colônias, passam a buscar se constituir como nações e acelerar seu
processo de “modernização” capitalista, o que coloca em seus Estados a missão
histórica de dirigir o processo. Não é à toa que a ideologia desenvolvimentista
é na América Latina que tem origem e produz-se na região o que há de melhor na
história do pensamento econômico crítico. A partir da crítica à teoria ricardiana
das vantagens comparativas, tem-se a construção de uma robusta teoria que não
se limitou à análise do comércio internacional, mas procurou compreender a
subordinada posição dos países latino-americanos no sistema capitalista mundial
como causadora de seu atraso, e, a partir daí, elaborar um programa de
superação dessa situação — programa que era de natureza eminentemente política.
Não por outro motivo, seus principais teóricos, Raul Prebisch e Celso Furtado,
ocuparam postos decisórios nos aparelhos de Estado.
Em
meados dos anos 1970, por uma conjunção de fatores (econômicos, políticos,
geopolíticos), os principais países do capitalismo mundial passam a enfrentar
um atípico processo de estagflação que solapa as bases do consenso
macroeconômico keynesiano e fortalece um tipo de pensamento econômico
radicalmente liberal (no sentido em que rechaça a validade da intervenção
estatal no sistema econômico e opera com uma anacrônica separação entre
política e economia, onde a primeira não deveria “intervir” no funcionamento da
segunda). Essa mudança de paradigma de política econômica encerra uma dupla
contradição, à qual chamarei de analítica e normativa.
A
contradição analítica se deve ao fato de que todo o corpo de saber científico (ciência
econômica) de que dispomos para entender o funcionamento do sistema econômico,
ou dos sistemas econômicos (economia) apoia-se na separação entre o
mercado (esfera onde os agentes racionais tomam suas decisões de maneira a
maximizar sua utilidade) e a política, tomando apenas a primeira esfera como
objeto de estudo. Isso depois de o século XX ter demonstrado que o processo de
acumulação e reprodução do capital se deu da maneira intensamente politizada e
guiada pelos Estados, que assumiram um papel que foi muito além de corretor de falhas
de mercado.
Vale
observar que o problema a que chamei de contradição analítica não
é a separação em si, posto que as duas esferas (Estado e
mercado) operam com lógicas diferentes, embora conectadas. A
abstração é inerente às construções teóricas e tal separação certamente permite
ganhos analíticos, por um lado, e prezuízos, por outro. O problema é que
essa separação analítica faz com que os economistas façam previsões e
prescrições com base em um abstrato homo economicus, e qualquer
desvio em suas previsões é visto como indesejado, algo que deve ser sanado,
corrigido, o que faz com que sua “ciência analítica” se torne, sem que
percebam, normativa, e, no limite, autoritária. Assim produz-se a
contradição normativa.
A
contradição normativa se nota quando olhamos o conjunto de ideias liberais que
se tornaram hegemônicas ao final da década de 1970, e que, embora pretendam-se
neutras do ponto de vista político, carregam consigo elemento político de duplo
caráter. Político porque pretendem moldar o mundo à imagem de seu
constructo teórico, disseminando a lógica mercantil a todas as esferas da vida
social, e político porque, para isso, precisam que seu programa encontre
guarida nos postos-chave de decisão estatal, exigindo dos Estados forte
capacidade política de implementação e de contenção dos conflitos sociais daí
resultantes.
Essa
dupla contradição produziu uma disjunção entre o que se tornou a ciência
econômica mainstream (que não é mais economia política, mas economics)
e a natureza do funcionamento do sistema econômico, que, ao contrário do que se
diz frequentemente de maneira crítica, não se tornou liberal como fora no
século XIX, mas, ao contrário, se repolitizou ainda mais. Aqui vale um exemplo
historicamente situado que ilustra o que estou dizendo.
Os
países latino-americanos, guardadas suas especificidades, passaram por décadas
de crescimento econômico politicamente orientado, não raro convivendo com
regimes ditatoriais. Esse processo de acumulação politizada contou com o
protagonismo estatal e produziu, como resultado de decisões políticas, enormes
dívidas externas. O desencadeamento da dívida externa produziu, por sua vez,
disfunções no sistema econômico que impuseram processos de ajustamento. Os
ajustes foram postergados até a década de 1980, e a decisão sobre em quem
recairiam seus custos era uma decisão política. Diante disso o Brasil optou por
aquilo que José Luís Fiori chamou de fuga para a frente. Ao final da
década construiu-se um consenso geral sobre o que fazer e impôs-se de fora um
pacote homogêneo de medidas privatizantes e liberalizantes para todos os
endividados países latino-americanos, hegemonizando a ideia de que o problema
era o Estado e a solução, o mercado.
Não
entrarei aqui no mérito de cada uma das medidas defendidas; é certo que
algumas carregavam algum grau de razoabilidade. O que pretendo ressaltar é
que as reformas pró-mercado possuíam natureza política, já que logo
ficou clara a necessidade de que o Estado (fonte dos males) reforçasse suas estruturas
administrativas e sua capacidade de direção política para implementar
projetos que, ao fim, reduzem o papel do próprio Estado, na regulação econômica
e no fomento ao desenvolvimento. Essa aparente contradição contida num
receituário econômico ortodoxo que defendia a redução do papel do Estado por
meio de reformas que teriam como agente implementador o próprio Estado foi
chamada por Miles Kahler de “paradoxo ortodoxo”.
O
paradoxo ortodoxo, que não é nenhuma novidade – vide o caso da
implementação das reformas liberais no Chile sob uma violenta ditadura – tem
sua origem no campo das teorias econômicas. Como dito, essas teorias preconizam
o domínio da lógica mercantil sobre todas as esferas da vida social e política,
isto é, atribuindo ao “mercado” a determinação dos preços macroeconômicos
fundamentais – como taxa de juros, os salários e o câmbio – bem como o
provimento de bens básicos à qualidade da vida humana, como saúde e educação,
considerando como bens públicos puros apenas aqueles de natureza
não-rival (isto é, apenas o ar e mais uma ou duas coisas), como ensinam os
manuais de economia do setor público. Para construir – e manter –
esse espaço mercantil, é preciso, entretanto, que a ação política seja
constante, motivo pelo qual as ditas reformas nunca mais saíram
da agenda política.
Dito
tudo isto, pode o leitor indagar: Então toda economia é política, toda ciência
e teoria econômica possuem caráter político, não sendo isso uma especificidade
do liberalismo. Qual seria então o problema?
A
meu ver o problema consiste no mascaramento que a ideologia liberal produz.
Senão vejamos: Quando Keynes escreveu a Teoria Geral, ele se
defrontava com um problema muito prático; os alarmantes níveis de desemprego
causados pela Grande Depressão. Embora, como saibamos, lord Keynes estivesse
muito longe de defender uma revolução social, o desemprego lhe pareceu um grave
problema naquele momento. Seu movimento intelectual se deu no sentido de captar
um problema na realidade, que lhe produz incômodo, e transformá-lo em um
problema teórico, passível de ser cientificamente explicado. Para
isso Keynes empreendeu o formidável esforço de confrontar a lei de Say e
toda a ciência econômica estabelecida para demonstrar que o sistema não mantém
automaticamente o nível do pleno emprego e que a (estapafúrdia) hipótese de
desemprego voluntário não se sustenta. E, mesmo aceitando os termos dos
adversários como forma de se legitimar, Keynes se vê obrigado a apelar para elementos
“não econômicos” ao afirmar que não é desejável que os salários caiam abaixo de
determinado nível. Temos aqui explícitos os valores que orientam o teórico, o
que não faz sua teoria ser menos científica, como nos alertou Max Weber.
Como
já dito, a teoria keynesiana pressupunha uma forte ação estatal e desejava o
pleno emprego. Isso tudo não é velado. Portanto, as teorias econômicas podem
manter seu rigor analítico e explicitar seus valores, sobretudo quando se
pretendem propositivas. Assim foi com o precursor do liberalismo, Adam Smith,
que lutava contra a velha ordem mercantilista e o sistema de dominação que a
sustentava. Assim foi com Keynes e o problema do desemprego, e assim foi com os
cepalinos, que buscavam desenvolver o sistema econômico nacional como forma de
superar a heterogeneidade estrutural – e, consequentemente, desigualdade – que
o subdesenvolvimento gerava. Vale mencionar que, depois da avalanche liberal dá
década de 1990, os valores de nação, competição e desenvolvimento econômico têm
sido resgatados com notáveis esforços por Bresser-Pereira e a teoria
novo-desenvolvimentista. Assim como Keynes, Bresser logrou identificar um
problema real (a estagnação) e transformá-lo em um problema teórico, buscando
identificar suas principais causas e organizando-as em um modelo teórico
explicativo e propositivo. Esse modelo propositivo (a macroeconomia
desenvolvimentista) contém uma economia política, isto é, explicita quais
são as medidas desejáveis para superar o problema identificado. Sua aplicação
passa, portanto, pela política. As cartas estão na mesa.
A
diferença em relação à postura liberal é notável. Esta, baseada na legitimidade
que seu corpo teórico adquiriu, mantém velados seus pressupostos e seu caráter
político; e isso, paradoxalmente, quando procura a todo custo impor suas ideias
por meio de programas políticos, apresentando-as, no entanto, como a única
saída possível, racional e inescapável. Os liberais poderiam explicitar que seu
projeto é alastrar a lógica mercantil para todas as esferas, submetendo a
macroeconomia e a própria atividade econômica real (produtiva) aos imperativos
do mercado, cada vez mais financeirizado e instável. Não o fazem, porque, ao
fazê-lo, abririam espaço para o debate político, onde seria possível questionar
o que (e em que medida) é desejável delegar às decisões privadas de ordem
mercantil e de valorização do capital. E a política, em sua visão, é algo
negativo, indesejável e que só atende a interesses parciais, exceto,
naturalmente, quando está sendo conduzida por eles.
Na
foto: O general Augusto Pinochet recebe o economista ultraliberal Milton
Friedman (de terno preto), que colaborou intensamente com a ditadura chilena.
Ao contrário de Friedman, economistas clássicos como Keynes e mesmo Adam Smith
jamais tentaram ocultar o caráter político de todas as decisões económicas.
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