Manuel
Carvalho da Silva | Jornal de Notícias, opinião
Os
espaços do trabalho são em geral povoados por perigos e sofrimentos múltiplos
que podiam e deviam ser evitados. A Organização Internacional do Trabalho
(OIT), insistentemente alerta para o facto de os números de mortes e de
acidentes no trabalho serem, em cada ano, à escala global, superiores aos
números de mortos e feridos em guerras no mesmo espaço temporal. Acresce a esta
dimensão de sofrimento o enorme impacto das doenças profissionais.
Num
tempo em que todos os dias ouvimos e lemos discursos de deslumbramento com as
tecnologias e o conhecimento e com os seus extraordinários contributos para
criar riqueza, é caso para perguntar: porquê se utiliza tão pouco o
conhecimento científico e empírico para salvar a vida e a saúde das pessoas no
trabalho e dar a este valor e dignidade? Porquê as teorias sobre a
competitividade, o crescimento económico e o lucro ignoram estes prementes
desafios?
Esta
semana assistimos à tragédia na fábrica de pirotecnia em Penajóia, Lamego. Oito
vidas perdidas, famílias destroçadas e imensas pessoas profundamente afetadas.
Em situações destas, toda a solidariedade é prioritária e uma obrigação, mas
também é oportuno o alerta sobre o contexto do mundo do trabalho em que estas e
outras tragédias grandes e pequenas, visíveis e silenciosas, acontecem.
O
setor da pirotecnia vem de um passado cheio de improvisações e riscos, mas hoje
há meios técnicos e outros que podem ser postos ao serviço da sua
reestruturação, aumentando muito a segurança. Neste como noutros setores a
questão central é a mobilização de meios, privados e públicos, e a adoção de
políticas de acompanhamento rigorosas. Por exemplo, controlo sobre a origem e
as condições em que chegam às empresas de pirotecnia as matérias-primas e a sua
manipulação. E uma forte aposta na formação de quem ali trabalha.
Segundo
dados da Autoridade para as Condições do Trabalho, no primeiro trimestre deste
ano registaram-se 50 acidentes de trabalho graves e em 2016 tivemos 140 mortes.
Isto num país em que houve, nos últimos anos, natural tendência para a
diminuição de acidentes graves, em consequência da diminuição de atividades em
setores potencialmente perigosos, como é o caso da construção civil.
O
país precisa que se invista muito mais na segurança das infraestruturas e
estruturas das empresas e serviços, e em políticas e ação preventiva que visem
a segurança, a proteção e a saúde dos trabalhadores.
Toda
a informação disponível sobre os acidentes de trabalho mostra-nos que estes, no
global, não estão a diminuir. Além disso, a chamada vaga tecnológica, as
alterações nas formas de prestação e de organização do trabalho, as
precariedades que secundarizam a formação, estão na origem de muitos acidentes
de trabalho e no surgimento de novas doenças profissionais. O desemprego é
também causa de doenças, incluindo nos jovens. Não é por acaso o realce que a
Organização Mundial de Saúde deu este ano aos problemas do stresse e da
depressão.
Demasiadas
vezes o discurso público sobre tecnologia, e até sobre outras dimensões do
conhecimento, entende os seus desenvolvimentos como se estes se processassem
por formatos e rumos independentes da forma como a sociedade se organiza. O
discurso dominante tende a convencer-nos que, pelo contrário, seria a
sociedade, sobretudo no que ao trabalho diz respeito, a moldar-se ao ritmo da
inovação tecnológica e das opções de uns poucos proprietários da combinação
tecnologia/ conhecimentos especiais. Sabemos que a relação entre tecnologia e
trabalho é historicamente bem mais complexa.
O
desenvolvimento tecnológico é sempre dependente dos incentivos e das perguntas
que se colocam a cientistas e engenheiros. Se, em vez de se perguntar
insistentemente como reduzir custos de trabalho para aumentar a riqueza de meia
dúzia, se passasse a perguntar como reduzir o risco de acidentes no trabalho,
os resultados do desenvolvimento tecnológico seriam necessariamente diferentes.
Coletiva e democraticamente devemos definir as políticas públicas adequadas, e
não deixar o nosso rumo coletivo entregue ao imperativo do lucro e da
apropriação do valor criado pelo trabalho.
Há
demasiados sofrimentos desnecessários.
*
Investigador e professor universitário
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