O
acto de coscuvilhar a vida alheia banalizou-se tanto como tirar selfies.
Por que raio o cidadão Trump – embora sendo mais cidadão do que os outros –
haveria de ser excepção se excepção não foram, por exemplo, a Senhora Merkel, a
legítima presidenta Dilma e outros amigos, aliados, inimigos e assim-assim?
José
Goulão | AbrilAbril, opinião
pesar
de todos os desmentidos e das mil e uma juras de inocência, parece estar hoje
confirmado que as agências de espionagem norte-americanas, então sob as ordens
da Administração Obama, escutaram as conversas e esmiuçaram a vida do candidato
presidencial Donald Trump e sua gente, procurando tirar proveitos eleitorais em
favor da candidata Clinton.
É
verdade que, tendo em conta a realidade dos tempos modernos e o folclore
circense em que se transformaram a política de Washington e o seu proclamado
respeito pelos direitos dos cidadãos, haver espantação e especulação em torno
de tal assunto é facto merecedor de registo.
Ao
longo das décadas mais recentes acumularam-se as evidências de que os
presidentes norte-americanos e as NSA's, CIA’s e FBI’s, mais os Google’s e
Yahoo’s ao serviço do tentacular aparelho administrativo imperial de devassa,
espiolharam a vida de toda a gente em todo o mundo recorrendo à infernal
parafernália tecnológica e intrusiva de que foram dotados.
O acto de coscuvilhar a vida alheia banalizou-se tanto como tirar selfies. Por que raio o cidadão Trump – embora sendo mais cidadão do que os outros – haveria de ser excepção se excepção não foram, por exemplo, a Senhora Merkel, a legítima presidenta Dilma e outros amigos, aliados, inimigos e assim-assim?
WikiLeaks
e Edward Snowden demonstram-nos que, hoje em dia, governar é espiar; e a
solidez do poder é directamente proporcional à capacidade para conhecer e tirar
proveito das incidências da vida dos cidadãos contribuintes, eleitores,
dirigentes ou mesmo pares em funções. Por isso, seguindo a ordem corriqueira
das coisas, o sistema global de olhos e ouvidos que serviu Obama e outros
estará hoje sob comando de Trump, porque não é uma extensão do poder
discricionário deste ou daquele presidente mas sim uma comunidade que faz funcionar
um monstruoso big brother indissociável do sistema de dominação
global.
Porta-vozes
de Obama e Hillary Clinton desfazem-se em justificações para alegar que nada
queriam saber da vida do seu rival eleitoral, nem poderiam querer saber porque
isso iria contra os seus «princípios». Ora todos estamos cientes: é a
verdade da mentira.
Porém,
Devin Nunes, um republicano que preside à Comissão de Informações da Câmara dos
Representantes, veio dar conta de que lhe chegou às mãos um relatório onde se
admite que a NSA (Agência de Segurança Nacional), a CIA e o FBI espiaram Trump
por conta de Obama e a favor de Clinton, mas tudo não passou de um lamentável
processo «acidental».
O
documento explica que Trump e os membros da sua equipa de campanha foram
escutados secretamente, em telefonemas privados, porque os seus interlocutores
de ocasião eram pessoas que estavam sob vigilância – as informações são omissas
sobre o facto de se tratar, ou não, de escutas com ou sem mandato judicial.
Isto é, Trump e os seus apenas foram escutados por tabela, um argumento tão
óbvio que já está desacreditado nas nossas prosaicas guerras domésticas de que
são intérpretes os espiões do forte da Ameixoeira.
Um
tal «acidente» não aconteceu apenas no território dos Estados Unidos; vale
por dizer que os atarefados olhos e ouvidos não enxergam e escutam apenas a
partir dos centros imperiais, o que só pode surpreender quem desconhece a
existência dos «cinco olhos»; não a régua com que os mestre-escolas sovavam os
alunos de antanho, mas sim as cinco pontas da espionagem universal
anglo-saxónica: Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia.
Daí
que tenha sido apurado, pelo menos, o envolvimento do GCHQ do Reino Unido na
devassa da campanha de Trump, o que foi prontamente desmentido pela nobre
espionagem de Sua Majestade. No entanto, foi esta a ocasião que o espião-mor do
reino e do GCHQ, Robert Hannigan, escolheu para se demitir, invocando razões
pessoais, sendo substituído por Jeremy Fleming. Branco é, galinha o pôs.
Voltemos
às explicações de Devin Nunes, para tentar perceber um pouco melhor o caso da
«espionagem acidental». O deputado validou esta versão tornada pública, mas não
deixou de estranhar um facto: ao contrário do que é costume com a documentação
do género que recebe na sua função de presidente da Comissão de Informações da
Câmara dos Representantes, o relatório em causa omite o nome das pessoas sob
escuta que falaram ao telefone com Donald Trump e os seus servidores de
campanha.
O
facto censório deu que pensar a Devin Nunes – e faz-nos pensar a todos –
sobretudo se tivermos em conta que o documento reconhecendo as escutas
«acidentais» foi assinado por quatro pesos pesados da anterior
administração: Susan Rice, embaixadora de Obama nas Nações Unidas; Ben Rhodes,
conselheiro adjunto de comunicação e, por sinal, subscritor do relatório que
fixou a versão oficial dos atentados de 11 de Setembro de 2001, portanto um
guru da propaganda; John Brenan, director da CIA; e o super espião James Clapper,
chefe dos chefes da confraria das agências de espionagem norte-americanas.
O
«acidente» das escutas de um candidato presidencial em plena campanha não
é assunto virgem nos Estados Unidos. Em 1972, há 45 anos, espiões ao serviço do
presidente e candidato republicano, Richard Nixon, instalaram a parafernália
intrusiva possível nessa época para registarem imagens e conversas no edifício
Watergate, sede do Partido Democrático e da campanha do candidato presidencial
Richard McGovern.
A
trama foi desvendada por dois jornalistas do Washington Post, Bob Woodword e
Carl Bernstein, graças às denúncias de um informador, conhecido por «garganta
funda» e que, 30 anos depois, veio a ser identificado como William Mark
Felt, ao tempo subdirector do FBI. Provou-se que Nixon sabia de tudo e, além
disso, já como presidente, fez diligências para perturbar as investigações
oficiais. Acabou por renunciar a meio do mandato, em 1974. Foi assim o «Caso
Watergate».
Quarenta
e cinco anos valem uma gota na História. Mas bastam para que se perceba a
velocidade a que se degradaram a ética política e o comportamento da
comunicação social dominante. O que foi um episódio dramático, com sérios
custos para dirigentes do mais poderoso país do mundo, então envolvido também
em guerras como a do Vietname, transformou-se hoje num mero «acidente», um fait
divers que, no fundo, ninguém leva a sério e chega a ser ridicularizado.
Não pode pretender-se, por isso, que dele resultem consequências e sejam
retiradas lições capazes de proteger a seriedade da política e a defesa da
privacidade dos cidadãos.
Volta
Nixon! Demorou um tempinho, mas estás perdoado.
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