Manuel
Carvalho da Silva* | Jornal de Notícias | opinião
No
passado mês de abril, a Associação Portuguesa dos Industriais do Calçado
(APICCAPS) e a Federação dos Sindicatos do Setor Têxtil (FESETE) concluíram a
negociação do Contrato Coletivo de Trabalho (CCT) para a fileira do calçado,
tendo como conteúdo mais relevante a eliminação da discriminação profissional e
salarial entre homens e mulheres. Vários órgãos de Comunicação Social
noticiaram este importante facto, mas abordando-o apenas conjunturalmente e com
quase total ausência de pronunciamento sindical. A dinâmica neoliberal que
vivemos e que influencia quase tudo e todos só abre espaço para os sindicatos
quando é para os tratar como réus.
O
conteúdo geral deste CCT deixa claro o ainda baixo nível salarial de um setor
que se tem modernizado e obtido bons lucros. O aumento salarial acordado para a
maioria das operárias e dos operários foi de apenas uns poucos euros acima do
SMN, contudo tem significado ter sido assumido em negociação. Sabe-se ainda que
uma parte das empresas do setor paga mais que o estabelecido no CCT. Estes e
outros factos confirmam a necessidade de a negociação coletiva ser retomada com
normalidade: disso dependerá um impulso para a melhoria dos salários e das
condições de trabalho, também para os trabalhadores mais qualificados de que o
setor precisa crescentemente. Os sindicatos reivindicam, estão na luta social
do dia a dia, mas também dispõem de notável conhecimento sobre a economia e as
realidades das empresas. Esse conhecimento, quando vertido na negociação
coletiva, é um ganho para os trabalhadores, para as empresas e para a
sociedade.
O
processo negocial do setor do calçado tem uma pequena história que merece ser
conhecida. Em 2010 a FESETE deu início a um estudo técnico e científico sobre o
setor, socorrendo-se de especialistas, do acompanhamento de entidades públicas
credenciadas e das orientações da Organização Internacional do Trabalho (OIT)
sobre o emprego digno. Nesse estudo, uma das várias dimensões identificadas
sobre a situação do setor e do emprego nele existente foi a (chocante)
discriminação de género entre categorias profissionais compostas
maioritariamente por mulheres ou por homens. Aconteceu, entretanto, que entre
2012 e final de 2014 - muito em decorrência da intervenção da troica e do
Governo PSD/CDS - a contratação coletiva esteve congelada. Só em 2015 iniciaram
o processo negocial, tendo a FESETE aproveitado para dar enfoque àquela
discriminação. As negociações desenvolveram-se lentamente, mas terminaram em
acordo.
Há
ilações importantes a retirar desta negociação. Primeiro, a igualdade
remuneratória é um direito consagrado na lei, na Constituição da República, nas
convenções e normas da OIT, contudo a sua efetivação, como a de outros
direitos, só acontece quando há representação coletiva e mediação com
capacidade para dar forte evidência às violações que se observam.
Segundo,
as pessoas para acederem a muitos dos seus direitos precisam de, nomeadamente,
ter conhecimento consciente deles, precisam muitas vezes de meios materiais,
precisam de dispor de quem, com força coletiva, os reivindique junto dos
poderes que têm a responsabilidade de os garantir. No trabalho, a relação
individual trabalhador/patrão é desequilibrada; é imprescindível a organização
dos trabalhadores e o exercício da negociação coletiva.
Terceiro,
o Estado é garante dos direitos dos cidadãos e tem a obrigação de utilizar com
eficácia os instrumentos de que dispõe para os efetivar, porém, ou as pessoas
se organizam e constroem fortes atores coletivos e processos de mediação com o
Estado, forçando-o ao exercício do seu papel, ou jamais o Estado é cumpridor.
Quarto,
há recursos financeiros e outros que o Estado gere, existem meios técnicos e
científicos nas universidades e centros de investigação, há capacidades,
conhecimentos e práticas de representação coletiva que, se utilizados de forma
articulada, podem melhorar muito a efetivação dos direitos das pessoas.
Valoriza-se
muito as colaborações entre as universidades e as empresas, mas as áreas do
trabalho, do emprego, da proteção e segurança social, da saúde e de outras
políticas sociais precisam tanto ou mais dessa colaboração.
*
Investigador e professor universitário
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