Rafael Barbosa* | Jornal de Notícias
| opinião
Cruzei-me com o espectro numa
manhã de tempestade. Seguia de carro, mas devagar. Porque a rua, naquele troço,
é estreita; porque constituía um obstáculo; porque chovia a cântaros e a
visibilidade era escassa. O que me fez olhar, para além de ver, não foi tanto o
facto de ser um ciclista em dia de temporal. O que me fez olhar foi o formato
do embrulho azul, em plástico impermeável, na parte de trás da bicicleta. Era
estranho, porque terminava em cone. Fui ultrapassando, para finalmente perceber
que era uma criança pequena (talvez da idade do Vasco, que seguia comigo no
carro, confortável, aquecido e seco) o que confundi com um embrulho.
Segui o meu caminho, tentando,
pelo retrovisor, olhar também o rosto de quem pedalava com esforço, agravado
pelo temporal. Pareceu-me ser uma mulher, porventura a mãe, mas o rosto estava
escondido, em parte pelo seu próprio capuz de plástico, em parte por uns óculos
de lentes grossas. Presumi, pela hora, que seguiam para a escola, e confirmei-o
uns dias depois, de novo num dia chuvoso, quando me cruzei de frente com a
mulher, quando ela já fazia o caminho de regresso a casa, de novo coberta de
plástico dos pés à cabeça, a poucos metros da escola onde já deixara o seu
precioso embrulho.
Passaram-me várias coisas pela
cabeça, depois daquele primeiro e fugaz encontro. Entre a compaixão (pela
situação penosa em concreto), a revolta (por ser possível que no meu país uma
criança ainda esteja sujeita a semelhantes provações) e a admiração (pela força
da mãe e da criança, persistindo contra ventos e tempestades). Mas esses foram
pensamentos vulgares. Mais estranho foi lembrar-me de Jorge Coelho, um dos
homens mais influentes da política portuguesa. E lembrei-me porque o
ex-ministro socialista é agora comentador da "Quadratura do círculo",
na SIC, e, numa espécie de profissão de fé, e não estando o tema na agenda do
programa, lembra de vez em quando a pobreza infantil, para desafiar os seus
camaradas no Governo a lançar um programa de combate a esta tragédia nacional.
À primeira vez, pensei que era sinal de que poderia estar para chegar algum
anúncio que valesse a pena. Mas se Jorge Coelho foi persistindo, programa após
programa, do lado do Governo e dos partidos de Esquerda que o suportam, ninguém
tugiu, nem mugiu.
Há dias, a memória voltou a
atormentar-me com a imagem do espectro com que me cruzei numa manhã de
tempestade. Foi enquanto assistia, pela televisão, a mais um debate entre Rio e
Santana. Por não ter ouvido nem uma palavra sobre o pior dos défices, o da
pobreza que se abate sobre centenas de milhares de crianças portuguesas.
Poderia aqui apresentar inúmeras estatísticas que o provam. Fico-me pela
referência a um pequeno embrulho azul.
* Editor-executivo do JN
* Editor-executivo do JN
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