José Jorge Letria | Diário de Notícias
| opinião
Muitas dezenas de autores e
artistas portugueses tomaram a decisão de enviar uma carta ao primeiro-ministro
António Costa para, em defesa dos seus direitos, afirmarem que acreditam no
"valor da criação" e para lhe dizerem aquilo que ele, mesmo sabendo-o
há muito, não será mau que o recorde nos momentos e nos lugares certos,
sobretudo numa Europa marcada pela incerteza, pela crescente e quase sempre
chocante falta de solidariedade e ainda pela perigosa tendência para divisões
geográficas e ideológicas que não auguram nada de bom.
Acentuam os autores e artistas
portugueses que "o sector cultural e criativo é um dos maiores
contribuintes para o emprego em toda a Europa, sendo também determinante para a
afirmação das culturas nacionais e, por consequência, da língua e da cultura
portuguesas". Porém, sabem os subscritores da carta que, na sua versão
inglesa, teve a ampla e merecida circulação internacional, que "este
potencial criativo e económico enfrenta uma situação insustentável que põe em
risco a viabilidade de todo o sector , com claros prejuízos para a
multiplicidade e a pluralidade culturais".
Vivemos num mundo global em que a
lucro imenso das grandes multinacionais da comunicação digital vai aumentando
na proporção exacta que fazem das obras com direitos protegidos e que servem de
suporte para a difusão de mensagens globais que são a fonte de uma riqueza que
se sobrepõe e de forma insultuosa e dificilmente controlável aos interesses dos
Estados e mesmo à vontade soberana dos tribunais.
"Hoje", declaram, os
autores e artistas, "as nossas obras e prestações artísticas podem chegar
de forma instantânea, através da internet, a consumidores potenciais em todo o
mundo, num mercado que é verdadeiramente global. Lamentavelmente, a este
alargamento do consumo efectivo de bens culturais não tem correspondido uma
efectiva valorização económica do investimento pessoal e financeiro de todos
aqueles que, em condições particularmente difíceis, continuam a criar, a
interpretar e a investir em cultura."
Dizendo isto, deixam quase tudo
dito, mas é importante salientar que existe "uma insustentável cadeia de
valor que apenas teve por consequência o enriquecimento de grandes operadores
multinacionais do mercado digital e o empobrecimento, com a inerente perda de
capacidade de investimento, de autores, artistas e produtores". Usando os
meios que têm ao seu alcance, estes têm deixado muito clara a sua posição e
também o seu protesto junto da Comissão e do Parlamento europeus e também junto
da influente Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), agência das
Nações Unidas com sede em Genebra, que segue com atenção empenhada os grandes
temas da propriedade intelectual e da indispensável defesa dos criadores,
artistas e produtores. Mas parece não ser bastante.
Além de prejudicar os autores, os
intérpretes e os produtores, a posição das multinacionais do mundo digital
"constitui um factor de desincentivo ao investimento cultural e coloca em
risco todo o mercado digital".
Insurgem-se os subscritores da
carta agora enviada a António Costa contra "o desresponsabilizador
"estatuto de neutralidade" quando é patente que algumas destas
plataformas (como é exemplo o YouTube) nada têm de neutral, e antes organizam,
"sugerem", apresentam e monetizam as obras por nós produzidas e
interpretadas".
Consideram os autores, artistas e
produtores que não hesitaram em assinar a carta enviada ao primeiro-ministro,
ser "essencial uma clarificação normativa, à escala da União Europeia, que
sujeite tais operadores às mesma regras de licenciamento que os restantes
intervenientes do mercado de distribuição digital de conteúdos, que com eles
competem no mesmo mercado".
A aparente inevitabilidade da
vinda para Portugal de segmentos fundamentais da Google e da Amazon só vem
acentuar a oportunidade do envio desta carta e a clareza das opiniões e dos
apelos nela contidos, aos quais se espera que António Costa e o seu governo não
fiquem indiferentes.
Não estamos apenas perante uma
opção estratégica do ponto de vista económico que poderá criar mais postos de trabalho.
Estamos em presença de um conceito global, autoritário e invasivo que, em nome
das conveniências do mercado de trabalho, pode tornar ainda mais grave e
vulnerável a situação de milhares de autores e intérpretes que também aumentam
a riqueza nacional a vários níveis, desde o sector empresarial à receita fiscal
e à atractividade internacional, passando pela sempre indispensável coesão
nacional.
*Escritor, jornalista e presidente
da Sociedade Portuguesa de Autores
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