domingo, 18 de fevereiro de 2018

CINEMA | A espantosa invasão lusa na Berlinale


"Our Madness", de João Viana, é o primeiro trabalho português a desfilar na Berlinale, onde três curtas nacionais se apresentam em competição. E traz fantasmas da guerra de Moçambique à boleia da odisseia de uma mulher em busca do filho e do marido pelo interior do país.

Ainda são poucos em Portugal aqueles que entendem o peso da participação portuguesa nesta edição da Berlinale. São seis, seis filmes. Aqui pelos corredores do festival, quando alguém é reconhecido por ser português, é felicitado. Os jornalistas brasileiros queixam-se de o seu cinema ter sido quase esquecido, os espanhóis idem aspas.

Que não haja mais dúvidas, o cinema português está mais do que em alta no circuito de festivais internacionais. Deixou de ser uma moda exótica e do nicho art-house. É uma corrente. Vamos ao mercado e vemos o trailer da longa-metragem Carga, com Sara Sampaio e Rita Blanco, sobre o tráfico de mulheres em Portugal, e ficamos de boca aberta. É uma obra de estreia de Bruno Gascon, jovem cineasta que filmou com financiamentos privados e quer agora internacionalizar a obra.

Depois, lemos as revistas do meio, como a Screen International, e percebe-se que Bad Investigate, de Luís Ismael, está com a Minerva, vendedora internacional, a ser exportado como "thriller português". Há coisas a acontecer.

Mas hoje é o dia de Our Madness, de João Viana, a primeira longa portuguesa a desfilar pela Berlinale. Passa esta noite na secção Fórum, no mítico Zoo Palast, e é uma história sobre uma mulher moçambicana em fuga de um manicómio. A sua odisseia leva-a pelo interior do país em busca do filho e do marido que está na guerra, a norte. Encontra fantasmas e o flagelo da guerra.

Our Madness faz parte do olhar de Viana sobre esta África. Primeiro, filmou a Guiné em A Batalha de Tabatô, agora é a Moçambique mística. É cinema de laboratório experimental, fiel ao espírito da(s) terra(s). Goste-se ou não, tem uma musicalidade que é genuína, quanto mais não seja porque tem uma protagonista que toca música com um instrumento fora do comum: a cama.

Do arco-da-velha? Sim, a Moçambique insana de Viana tem também uma história de rodagem complicada, conforme o realizador nascido em Angola conta ao DN: "Mas é melhor nem falarmos disso... Aconteceram prisões e desaparecimentos... Correu mal o facto de em 2015 a guerra ter recomeçado em Moçambique. O problema não era eu, apesar de ter filhos pequenos, mas a equipa toda, constituída por várias mulheres e uma criança. Dizia-se antigamente que um filme só era bom quando a rodagem corria mal. Às tantas é mesmo verdade."

A dada altura, em Our Madness os fantasmas surgem, temos de acreditar neles. João Viana sabe conviver com esses espíritos: "Acredito que há fantasmas na realidade. Creio que quanto mais velha é uma pessoa mais fantasmas caminham atrás dela: a amiga, o namorado, o avô muito querido que agora é anjo-da-guarda. Uma pessoa de 20 anos tem um fantasma em permanência que vai atrás de si para todo o lado. Uma pessoa de 50 já tem dois fantasmas, talvez mesmo três. Uma pessoa de 75 tem cerca de cinco a seis." A matemática fantasmagórica não atrapalha o filme.

Para além de Our Madness, a Berlinale mostra também Madness, a curta que é um espelho invertido (e bem mais preciso) da longa. Estará em competição, juntamente com Onde o Verão Vai (Episódios da Juventude), de David Pinheiro Vicente, e Russa, de João Salaviza e Ricardo Alves Jr. Já no programa Fórum, no âmbito do qual passa Our Madness, serão também exibidos A Árvore, de André Gil Mata, e Mariphasa, de Sandro Aguilar. E enquanto no mercado de coproduções será apresentada a série policial Sul, de Edgar Medina e Guilherme Mendonça, com realização de Ivo M. Ferreira, no programa paralelo Berlinale Talents estará o realizador André Santos e, no Project Labs, este cineasta apresentará o projeto do documentário Na Floresta(título provisório), coassinado com Marco Leão.

Não há outro cineasta aqui com dois filmes, mas Viana prefere falar da vaga bonita do nosso cinema: "Portugal é um país antigo, diverso e rico. Assim é também o nosso cinema. Para ele contribuímos todos: técnicos, autores e jornalistas de cinema. Haverá sempre pessoas que estão insatisfeitas, mas isso é próprio de ser-se jovem. É sinal de que nada está esgotado e há por aí projetos de futuro."

E entre Lisboa e a sua África, o realizador fala também do seu olhar não exterior sobre a raiz da alma africana: "Eu não posso entrar na alma africana se vivo lá. Era um bocadinho como quando os meus amigos da escola me chamavam retornado! Eu achava aquilo tremendamente injusto. Como é que eu podia retornar se era angolano e era a primeira vez que vinha a Portugal? Mas sim, a alma africana é um prazer porque o cinema tem que ver com isso mesmo, com um gozo infantil de trabalharmos a nossa própria alma, aquilo que conhecemos bem." E o próprio realizador conhece bem o humor africano, seja da Guiné, de Moçambique ou de Angola. Seja em tempos de paz ou de guerra.

Rui Pedro Tendinha | Diário de Notícias | em Berlim

Imagem em Diário de Notícias, correspondente a “Our Madness”, uma odisseia em Moçambique

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