"Our Madness", de João
Viana, é o primeiro trabalho português a desfilar na Berlinale, onde três
curtas nacionais se apresentam em competição. E traz fantasmas da guerra de
Moçambique à boleia da odisseia de uma mulher em busca do filho e do marido
pelo interior do país.
Ainda são poucos em Portugal
aqueles que entendem o peso da participação portuguesa nesta edição da
Berlinale. São seis, seis filmes. Aqui pelos corredores do festival, quando
alguém é reconhecido por ser português, é felicitado. Os jornalistas
brasileiros queixam-se de o seu cinema ter sido quase esquecido, os espanhóis
idem aspas.
Que não haja mais dúvidas, o
cinema português está mais do que em alta no circuito de festivais
internacionais. Deixou de ser uma moda exótica e do nicho art-house. É uma
corrente. Vamos ao mercado e vemos o trailer da longa-metragem Carga, com Sara
Sampaio e Rita Blanco, sobre o tráfico de mulheres em Portugal, e ficamos de
boca aberta. É uma obra de estreia de Bruno Gascon, jovem cineasta que filmou
com financiamentos privados e quer agora internacionalizar a obra.
Depois, lemos as revistas do
meio, como a Screen International, e percebe-se que Bad Investigate, de
Luís Ismael, está com a Minerva, vendedora internacional, a ser exportado como
"thriller português". Há coisas a acontecer.
Mas hoje é o dia de Our
Madness, de João Viana, a primeira longa portuguesa a desfilar pela Berlinale.
Passa esta noite na secção Fórum, no mítico Zoo Palast, e é uma história sobre
uma mulher moçambicana em fuga de um manicómio. A sua odisseia leva-a pelo
interior do país em busca do filho e do marido que está na guerra, a norte.
Encontra fantasmas e o flagelo da guerra.
Our Madness faz parte do
olhar de Viana sobre esta África. Primeiro, filmou a Guiné em A Batalha de
Tabatô, agora é a Moçambique mística. É cinema de laboratório experimental,
fiel ao espírito da(s) terra(s). Goste-se ou não, tem uma musicalidade que é
genuína, quanto mais não seja porque tem uma protagonista que toca música com
um instrumento fora do comum: a cama.
Do arco-da-velha? Sim, a
Moçambique insana de Viana tem também uma história de rodagem complicada,
conforme o realizador nascido em Angola conta ao DN: "Mas é melhor nem
falarmos disso... Aconteceram prisões e desaparecimentos... Correu mal o facto de
em 2015 a guerra ter recomeçado em Moçambique. O problema não era eu, apesar de
ter filhos pequenos, mas a equipa toda, constituída por várias mulheres e uma
criança. Dizia-se antigamente que um filme só era bom quando a rodagem corria
mal. Às tantas é mesmo verdade."
A dada altura, em Our
Madness os fantasmas surgem, temos de acreditar neles. João Viana sabe
conviver com esses espíritos: "Acredito que há fantasmas na realidade.
Creio que quanto mais velha é uma pessoa mais fantasmas caminham atrás dela: a
amiga, o namorado, o avô muito querido que agora é anjo-da-guarda. Uma pessoa
de 20 anos tem um fantasma em permanência que vai atrás de si para todo o lado.
Uma pessoa de 50 já tem dois fantasmas, talvez mesmo três. Uma pessoa de 75 tem
cerca de cinco a seis." A matemática fantasmagórica não atrapalha o filme.
Para além de Our Madness, a
Berlinale mostra também Madness, a curta que é um espelho invertido (e bem
mais preciso) da longa. Estará em competição, juntamente com Onde o Verão
Vai (Episódios da Juventude), de David Pinheiro Vicente, e Russa, de João
Salaviza e Ricardo Alves Jr. Já no programa Fórum, no âmbito do qual passa Our
Madness, serão também exibidos A Árvore, de André Gil Mata, e Mariphasa,
de Sandro Aguilar. E enquanto no mercado de coproduções será apresentada a
série policial Sul, de Edgar Medina e Guilherme Mendonça, com realização
de Ivo M. Ferreira, no programa paralelo Berlinale Talents estará o realizador
André Santos e, no Project Labs, este cineasta apresentará o projeto do
documentário Na Floresta(título provisório), coassinado com Marco Leão.
Não há outro cineasta aqui com
dois filmes, mas Viana prefere falar da vaga bonita do nosso cinema:
"Portugal é um país antigo, diverso e rico. Assim é também o nosso cinema.
Para ele contribuímos todos: técnicos, autores e jornalistas de cinema. Haverá
sempre pessoas que estão insatisfeitas, mas isso é próprio de ser-se jovem. É
sinal de que nada está esgotado e há por aí projetos de futuro."
E entre Lisboa e a sua África, o
realizador fala também do seu olhar não exterior sobre a raiz da alma africana:
"Eu não posso entrar na alma africana se vivo lá. Era um bocadinho como
quando os meus amigos da escola me chamavam retornado! Eu achava aquilo
tremendamente injusto. Como é que eu podia retornar se era angolano e era a
primeira vez que vinha a Portugal? Mas sim, a alma africana é um prazer porque
o cinema tem que ver com isso mesmo, com um gozo infantil de trabalharmos a
nossa própria alma, aquilo que conhecemos bem." E o próprio realizador
conhece bem o humor africano, seja da Guiné, de Moçambique ou de Angola. Seja
em tempos de paz ou de guerra.
Rui Pedro Tendinha | Diário de
Notícias | em Berlim
Imagem em Diário de Notícias, correspondente
a “Our Madness”, uma odisseia em Moçambique
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