José Soeiro | Expresso | opinião
O mais recente filme de João
Salaviza, um dos mais reconhecidos e brilhantes realizadores portugueses da
nova geração, chama-se “Russa”
e acontece no bairro do Aleixo, no Porto. Ao mesmo tempo que o filme estará em
competição em Berlim, bem acompanhado por outras obras portuguesas, 948
delegados e delegadas juntam-se no Congresso do PSD que consagrará Rui Rio como
novo líder do partido.
Há imagens que não se esquecem e
que definem as pessoas. Uma delas é a de Rui Rio num barco, no Rio Douro, a
abrir uma garrafa de champanhe com os seus convivas enquanto assiste à
demolição de uma das torres do Bairro do Aleixo. No bairro – sei-o porque
estava lá – o clima era de desespero, com um enorme aparato policial montado,
mulheres que gritavam de raiva ao ver a sua casa ser implodida, homens a chorar
junto ao gradeado enquanto o pó dos destroços se espalhava, crianças atónitas
junto ao lugar onde até há poucos dias brincavam e que parecia, agora, um
cenário de guerra. Se acaso a demolição daquelas torres tivesse sido negociada
com a população, talvez um Presidente da Câmara estivesse junto aos moradores
naquele momento, de consciência tranquila por ter cumprido o seu dever e
garantido uma alternativa para a vida daquela gente. Se não fosse esse o caso,
uma pessoa normal que tivesse tomado convictamente aquela decisão teria ao
menos o pudor de se remeter ao silêncio perante o sofrimento dos outros. Rui
Rio não fez uma coisa nem outra. Foi para a frente do bairro, no aconchego de
um barco no meio do rio, juntou os amigos e celebrou, frente aos cidadãos
desesperados da sua cidade, o momento em que as suas casas vinham a baixo.
Perante o sofrimento dos outros, Rui Rio sorriu e brindou. Independentemente do
que cada um possa pensar sobre as soluções para o Aleixo – e há muitas opiniões
– uma coisa parece-me estar para além das discordâncias políticas: quem faz
isto é um canalha. E eu, como muitos outros, não esqueço.
Talvez por isso as palavras de Salaviza, que não é do Porto mas esteve
pelo Aleixo para fazer o seu novo filme, sejam tão contundentes: “Rui Rio é uma
espécie de papão, de pesadelo que assombra a memória dos moradores do
Aleixo.Trata-se de um tipo tenebroso e sinistro que decidiu brincar com a vida
de centenas de pessoas para ceder aos interesses da especulação imobiliária. Há
uma imagem dele muito paradigmática quando, na demolição da torre, o vemos no
Douro, num barco de luxo a fazer uma pequena celebração com champanhe e
a brindar à demolição. Ele transforma aquele momento de aniquilação de uma
comunidade numa celebração. E é este tipo que tem esta forma de estar na
política e de jogar com a vida das pessoas que quer ser primeiro-ministro de
Portugal...”.
Não é a primeira vez, aliás, que
o caso é tratado por um filme. Quem quiser perceber o processo do Aleixo deve
ver “Ruído ou As Troianas”,
do realizador portuense Tiago Afonso. Está lá tudo: a origem do bairro e de
quem foi para lá, a explicação cristalina – através de uma imagem da marginal
do Porto – para o apetite imobiliário por aqueles terrenos, a revolta contra o
modo como o poder autárquico tratou aquelas pessoas, a dignidade das mulheres
que resistem, o modo como as crianças representam aquele espaço, o ambiente
vivido no dia da demolição, a relação de tudo isso com a cidade. Num registo
diferente, é também no Aleixo que se passa Bicicleta, um filme de Luís Vieira
Campos, com argumento de Valter Hugo Mãe, do qual guardo a imagem de umas
intermináveis escadas, num bairro em que, propositadamente, a Câmara deixou de
consertar o elevador, condenando as pessoas a terem de viver como um sacrifício
as mais singelas necessidades do dia-a-dia.
Sobre o mal que Rui Rio fez ao
Porto e sobre os mitos acerca da sua governação no Porto, não repetirei o
eloquente resumo feito por Adriano Campos. Também não tenho
grande esperança que Rui Rio vá alguma vez ver algum destes filmes – ou que se
deixasse transformar por eles, caso os visse. Direi apenas isto: ninguém deve
querer para o seu país aquilo que Rui Rio fez com quem mais sofria no Porto. E
este é um bom fim-de-semana para o lembrar.
Foto: João Porfírio / Observador - manipulada por PG
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