Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite* | Porto Alegre
| Brasil
“(...) foi ali na saudosa Oficina
Dias, nessa Catedral de Trabalho, de Honra e de Natureza, que eu falei, pela
primeira vez, aos meus irmãos de luta...” (Carlos Santos)
Nascido na cidade portuária de
Rio Grande (RS), em 9 de dezembro de 1904, Carlos da Silva Santos foi um
exemplo de luta tenaz, em prol da cidadania, ao exercer cargos de
relevância política. Filho do carpinteiro Manoel Ramão dos Santos e da
professora de música Saturnina Bibiana da Silva Santos, este afrodescendente
era neto de escravizados.
Devido às dificuldades financeiras, Carlitos – como era conhecido na infância - abandonou os estudos, aos 12 anos de idade, e empregou-se numa empresa de reparos navais, cujo nome era Oficina Dias. A formação cristã, herdada de sua mãe, refletiu-se no seu comportamento fraterno e em suas preocupações de cunho social.
Devido às dificuldades financeiras, Carlitos – como era conhecido na infância - abandonou os estudos, aos 12 anos de idade, e empregou-se numa empresa de reparos navais, cujo nome era Oficina Dias. A formação cristã, herdada de sua mãe, refletiu-se no seu comportamento fraterno e em suas preocupações de cunho social.
A vivência no meio operário, aliada à
sua inteligência, com certeza, despertou-lhe a consciência política frente às
desigualdades, injustiças sociais e o racismo presentes em nossa sociedade.
Carlos Santos assumiu, diante da sua consciência cidadã, lutar em nome do bem
comum e de uma sociedade mais igualitária, mantendo este compromisso até o
final da vida.
Aos 25 anos, ele trabalhava como
caldeireiro na Oficina Dias, quando decidiu casar e o fez, no dia 22 de
setembro de 1929, com dona Julieta Bolleto Santos. Desta longeva união,
nasceram cinco filhos: Carlos Marcelino Bolleto Santos, Neiva Maria, Ybá Maria
de Lourdes, Carmem dos Santos e Ney Bolleto dos Santos.
Em relação ao seu
intenso envolvimento com o movimento sindical, que se seguiu à Revolução de
1930, Carlos Santos assim declarou: “Formei entre os primeiros que tomaram a si
a incumbência de organizar o operário. Era a ampliação do meu ideal. Tratei de
organizar a minha classe, fundando no Rio Grande o Sindicato dos Operários
Metalúrgicos, do qual fui o seu primeiro Presidente e mais tarde o seu
Secretário-Geral...”.
Com a criação
das leis trabalhistas no período getulista, Carlos Santos foi nomeado
fiscal-auxiliar do Ministério do Trabalho e Ação Social, organizando o
Sindicato dos Operários Metalúrgicos do Rio Grande, além de contribuir para a
criação da Frente Sindicalista Gaúcha. Devido a divergências em relação à
orientação do Ministério, ele se demitiu do cargo e justificou: “Eu seria
indigno de mim mesmo, como trabalhador que sou, se me prestasse também a servir
de degrau por onde vai descendo, no conceito do trabalhador, a estrutura moral
do Ministério do Trabalho”.
Em correspondência ao inspetor regional
do Ministério no Rio Grande do Sul, Carlos Santos assim escreveu: “Ingressei no
Ministério do Trabalho julgando poder manter a integridade de caráter que eu
formei nos meios proletários. Enganei-me. Volto aos meios trabalhistas para
continuar na luta contra aqueles que ainda julgam que a consciência do
verdadeiro trabalhador pode ser comprada nas pastas de processos ou que se trai
por empregos mais ou menos cômodos...”.
Defendendo, de maneira incisiva, a
sindicalização dos trabalhadores, Carlos Santos expôs o seu pensamento:
“(...) é doloroso que se
afirme que, pertencendo pelas condições e pela vida, pelas necessidades e pela
miséria à nossa classe, se transformam, no entanto, em instrumentos de
dissociação, de enfraquecimento e de divisão de elemento sindicalizado, mau
grado tudo isto, meus Senhores, os Sindicatos vão atingindo à grandiosidade das
suas altas finalidades sociais, ou seja, consolidar no espírito do trabalhador
a noção exata dos seus direitos em contraposição à era malfadada de
individualismo egoístico em que o homem, graças a um liberalismo exagerado,
dispunha do seu semelhante como de uma simples mercadoria sujeita às variações
da oferta e da procura”.
No período de 1931 a 1934, ele
trabalhou no Estaleiro Naval Plano Inclinado RioGrandense que pertencia à
empresa Luiz Loréa S/A na cidade de Rio Grande .
Em 1935, viajou ao Rio de Janeiro,
como delegado-eleitor do Sindicato dos Metalúrgicos, para participar das
eleições classistas federais.
Na condição de operário, em
1935, Carlos Santos abandonou o macacão e assumiu, na Assembleia Legislativa do
RS, o mandato como primeiro deputado negro na chamada “Casa do Povo”. Na
condição de deputado classista exerceu suas funções de 1935 a 1937. Pimenta
da Veiga (PMDB) definiu o nosso parlamentar como “uma figura admirável, digna
de nosso maior respeito e alguém que merece ser seguido“.
A figura do deputado classista se
constituiu numa inovação da Constituição de 1934, que buscou assegurar a
representação de trabalhadores sindicalizados no Parlamento, consolidando a
organização das categorias em sindicatos. Carlos Santos havia sido indicado
como representante dos trabalhadores da indústria do Rio Grande do Sul.
O Correio do Povo, do dia 26 de outubro de 1935, registrou o seu
discurso de posse. Segue um trecho:
“... a todos encantou a sua oração
pela forma como, de princípio ao fim, se revelou um brilhante orador e pelos
conceitos que emitiu. Seu discurso foi ouvido por todos com real satisfação e
por mais de uma vez foi saudado com palmas, por seus colegas e por toda a
assistência (....) "
Em sua posse, o plenário estava
totalmente lotado. Após ser recebido de forma entusiástica, Carlos Santos, ao
subir à tribuna, dirigiu-se aos presentes e surpreendeu, com sua elegância, ao
comentar que os aplausos recebidos se transformassem em flores para ofertar à
deputada paulista, Francisca Rodrigues, presente na cerimônia. Ao encerrar o
seu discurso, alguns colegas de bancadas compararam-no, devido à sua eloquência,
ao abolicionista José do Patrocínio.
Na condição de deputado, ele fundou
sindicatos, pleiteou no Ministério e na Inspetoria Regional do Trabalho medidas
que favorecessem o sindicalismo gaúcho; combateu - em defesa dos estivadores -
o desvio de mercadorias dos portos de Porto Alegre, Rio Grande e Pelotas e
atuou na defesa do reajuste de salários dos operários da navegação fluvial,
entre outras medidas. Em julho de 1937, apresentou e defendeu o projeto de lei,
visando garantir a subsistência e a educação de crianças pobres com capacidade
intelectual.
Com a implantação do Estado Novo
(1937-1945), por Getúlio Vargas (1882-1954), foram dissolvidas as
representações, e Carlos Santos volta à sua condição de operário. Embora o seu
breve mandato, ele despertou admiração no parlamento gaúcho. Ao retornar a sua
terra, em Rio Grande, o prefeito da cidade Antônio Rocha Meireles Leite criou o
cargo de bedel no Ginásio Municipal Lemos Júnior e ofereceu-lhe como forma de
reconhecimento pelo seu trabalho parlamentar. Nesta escola, ele trabalhou
durante 20 anos, exercendo também o cargo de secretário e respondendo, em
determinadas ocasiões, como diretor.
Carlos Santos considerava a instrução
como a forma de exercício da cidadania e acerca do valor desta afirmou:
“Que problema deve mais
interessar aqueles que têm sobre si a responsabilidade dos destinos do povo do
que o problema máximo, o problema da instrução, mas não dessa instrução que se
caracteriza apenas pelo conhecimento do jogo mecânico das letras e das sílabas,
mas dessa instrução que se completa na formação do caráter na educação moral,
cívica e física, no preparo de homens que dignifiquem a pátria, a sociedade e a
família, dignificando a si próprios?”
Ainda neste período, ele
também passou a colaborar com artigos nos jornais “Rio Grande” e “O Tempo”,
além de assumir também como correspondente do “Diário de Notícias” de Porto
Alegre e “A Noite” do Rio de Janeiro. Posteriormente, foi chefe de redação do
jornal Rio Grande. Carlos Santos nos deixou inúmeras matérias jornalísticas,
principalmente de cunho sociopolítico e cultural.
Incentivado por amigos, ele retomou seus
estudos, pois havia concluído apenas o primário. Sua desenvoltura, talento e
cultura eram frutos exclusivos do seu esforço pessoal e do seu autodidatismo.
No ano de 1937, ele publicou, em
Porto Alegre, o livro “Sucata”, reunindo uma autobiografia e discursos. No
prefácio da obra, Walter Spalding (1901-1976) descreve Carlos Santos:
“... não é escritor, mas é orador e dos melhores, o Patrocínio dos nossos
dias, o apóstolo do operariado e da boa causa”. Afirmou ainda que ele trazia
“no sangue a veia do trabalhador, do lutador, do defensor dos fracos e
oprimidos” e que Carlos Santos era a confirmação da “capacidade intelectual do
negro cuja influência na história guerreira e intelectual do Brasil foi grande
(...)”.
No ano de 1938, participou da
fundação do Centro Cultural Marcílio Dias, cuja importância ele mesmo explica:
“É uma entidade que eu fundei no meu Rio
Grande, com um grupo de dedicados amigos, e que tem como finalidade única o
combate ao analfabetismo. Mais de uma centena de crianças pobres e algumas
dezenas de adultos se banham ali nos esplendores da Instrução. É o tributo mais
sincero da minha amizade e do meu entusiasmo, do meu idealismo e da minha
lealdade, procurando envolver aqueles que serão o prolongamento da raça e da
classe por amor de quem em função da grandeza do Brasil, audaciosamente, me
tornei orador”.
Ao término do Estado Novo (1937-1945),
ocorreram eleições, em 1946, e. Carlos Santos concorreu a uma vaga na
Assembleia Legislativa, ficando como suplente de deputado estadual pelo PSD.
No ano de 1949, como suplente de
deputado estadual (PSD), assumiu, por alguns dias, uma das cadeiras da
Assembleia Legislativa.
Após completar os estudos básicos,
Carlos Santos ingressou na Faculdade de Direito de Pelotas, colando grau, aos
46 anos, em 1950. Orador da sua turma, ele escreveu o discurso “A predestinação
do Direito”, no qual registrou:
“A luta é o trabalho eterno do
Direito. Por ele deve porfiar o individuo e a sociedade“. De posse de seu
diploma, Carlos Santos montou a banca mais procurada na cidade de Rio Grande,
além de estruturar um serviço de assistência jurídica e social na rede do
antigo PTB, visando atender, de forma gratuita, a todos os correligionários.
Depois uma disputa interna
no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), em 1958, o seu nome se torna consenso
e ele retorna, em 1959, ao seu cargo de deputado estadual. A partir de então mais
três legislações ocorreram, respectivamente, nos anos de 1963, 1967 e 1971.
O ano de 1967 foi um ano
auspicioso para o nosso nobre parlamentar, pois presidiu a Assembleia
Legislativa, promulgou a Constituição do Estado, inaugurou o Palácio Farroupilha
(Assembleia Legislativa) e assumiu, por duas vezes, o governo do Rio Grande do
Sul na ausência de Peracchi Barcellos (1907- 1986).
Nos anos de 1975 e 1982, Carlos
Santos exerceu o mandato de deputado federal. Nesta fase, ele criou projetos
voltados às mais diversas áreas, como direitos humanos, ecologia,
aposentadoria, menores carentes e excepcionais, indústria de pesca (recebeu o
título de Pescador Honorário), ferroviários, alimentação e questões
habitacionais.
Na área cultural, ele proferiu,
especialmente, dois discursos que o notabilizaram: na Assembleia Legislativa do
RS, no ano de 1972 em homenagem aos 400 anos de “Os Lusíadas”, e outro em 1975,
na Câmara Federal, quando prestou uma homenagem a Fernando Pessoa no 40º ano da
morte desse grande poeta.
Algumas vezes, no período da ditadura
militar (1964-1985), ele se dirigiu ao presidente João Figueiredo, para que
este acabasse com a falsa ideia de que no Brasil não havia preconceito racial,
Carlos Santos defendia a ideia de que esta tomada de consciência em relação ao
racismo e à falsa ideia de uma democracia racial, possibilitaria atitudes
efetivas e concretas de combate, à medida em que a sociedade brasileira
reconhecesse a sua presença nefasta como herança de um período de 400
anos de escravidão.
Contundente foi o seu discurso na Câmara
Federal durante as comemorações do 94º aniversário da Abolição da Escravatura
no Brasil (1888). Carlos Santos, naquela ocasião, ratificou seu potencial como
orador, encantando o público presente ao discursar sobre a escravidão no Brasil
e suas consequências desastrosas. Nosso parlamentar, com muita propriedade,
enfatizou o que esta mácula de 400 anos representou em nossa história. Devido à
ausência de políticas públicas voltadas ao negro brasileiro, após a Abolição da
Escravatura (1888), este encontrou apenas a “porta da rua”,a miserabilidade e a
invisibilidade social. Segue uma transcrição desta fala memorável:
“ .... O negro afro-brasileiro, de
escravidão trazida nos porões dos navios lusos que aqui aportavam em busca de
riquezas, continua a ser transportado nos ônibus , nos trens e nas barcas
superlotados, como gado, porque é , ainda, em sua imensa maioria pobre,
proliferando nas malocas e nos morros, realizando as atividades laborativas
mais perigosas, mais penosas e mais desvalorizadas, embora no verso da música
logre morar “ bem pertinho do céu”.. Mudaram os tempos, Sr. Presidente, apenas
os tempos... (...).
Carlos Santos, em seu discurso no
Congresso Nacional, no dia 18 de junho de 1982, abordou a situação do idoso no
Brasil. Ao lê-lo, percebi quão moderno e atual é a sua abordagem, embora
transcorridos 35 anos. Segue uma breve transcrição de seu discurso:
(,,,) Uma nação
onde o povo precisa fazer greve de fome para ver respeitados seus direitos,
certamente que não é uma nação adulta, mesmo porque, diante 110 do exposto, os
aposentados não tem opção; ou vão morrer de fome provocada pela greve, ou
morrerão de fome de igual forma, pela carência dos recursos que respondem pela
subsistência. E tudo isso, de uma forma ou de outra, “com tantas rugas no rosto
quanto na alma”.
No ano de 1982, nosso nobre parlamentar
decidiu se afastar da vida política, indo de encontro à vontade de seus
correligionários e de incontáveis admiradores, inclusive, de outras siglas
partidárias. Carlos Santos alegava problemas de saúde e o cansaço dos anos,
para justificar o seu afastamento da vida pública.
Ao longo de 50 anos de dedicação à vida
pública, Carlos Santos se destacou pelo seu comportamento ilibado e por sua
visão humanitária. Isso se confirma diante de seus inúmeros projetos, visando
beneficiar os menos favorecidos na pirâmide social.
Em 1988, devido a sua grandeza
como parlamentar e figura humana, ele recebeu do governador Pedro Simon a
Medalha da Ordem de Ponche Verde no Grau de Cavaleiro.
Carlos Santos tinha, por hábito,
citar, baseado no texto bíblico, a frase “Todos foram feitos à imagem de Deus,
sem fazer distinção entre brancos e negros”. Ele costumava combater frases
racistas, infelizmente, ainda presentes em nossa sociedade. Considerando-as
como verdadeiros paradigmas do preconceito racial, ele próprio, a título de
exemplo, comentava acerca destas expressões, quando lhe era oportuno discutir
sobre o assunto: “Ele é um negro de alma branca”; “É negro, mas é inteligente”
ou “É negro, mas é bonito”.
O nosso parlamentar afirmava
que frases pejorativas e com teor racista reforçam a ideia - devido a sua contínua
verbalização - de que determinadas qualidades sejam privilégios de uma única
etnia, e as exceções até ocorram, embora de forma rara, principalmente, no caso
do afrodescendente. Na realidade, esta visão depreciativa, em relação ao negro,
foi construída durante séculos de escravidão e de exclusão social. A
partir da Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, o negro teve acesso à liberdade,
porém não lhe foi dado o passaporte da cidadania plena, que lhe garantisse a
inserção social numa sociedade capitalista e excludente.
Carlos Santos foi um titã na luta pela
igualdade racial, e seu exemplo tem sido seguido por outros homens que, em
nosso Estado, compartilham os mesmos ideais, a exemplo de Alceu Collares, Paulo
Paim e Edson Portilho.
Aos 84 anos, nosso digníssimo
parlamentar faleceu, em 8 de maio de 1989, devido a complicações da doença de
Paget. Nesses tempos, de crise moral e ética, permanece o seu inestimável
legado de dedicação ao bem comum, lembrando-nos de que é possível, com esforço,
amor e trabalho contínuo, construirmos uma sociedade com menos desigualdades e
mais democrática.
*Pesquisador
e coordenador do setor de imprensa do Museu da Comunicação HJC
Bibliografia
BARBOSA, Eni; CLEMENTE, Elvo. Carlos
Santos: uma biografia. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994.
HEINZ, Flávio M.; VARGAS, Jonas
Moreira; FLACH, Angela, MILKE, Daniel Roberto. O Parlamento em tempos
interessantes: breve perfil da Assembléia Legislativa e de seus deputados –
1947-1982. Porto Alegre: CORAG, 2005.
Projeto Cultural O Povo Negro no
Sul. Porto Alegre: Associação Riograndense de Imprensa (ARI), 2002.
SANTOS, Carlos da Silva. Sucata.
Porto Alegre: Editora Globo, 1937.
TORRES, Luiz Henrique HEINZ,
Flávio M.; VARGAS, Jonas Moreira; FLACH, Angela, MILKE, Daniel Roberto. O
Parlamento em tempos interessantes: breve perfil da Assembléia Legislativa e de
seus deputados – 1947-1982, Porto Alegre: CORAG, 2005.
Livro e-book: GOMES, Arilson dos Santos. O
universo das gentes do mar e a identidade negra nos discursos e práticas
políticas de Carlos Santos ( 1959-1974). Porto Alegre, 2015
1 comentário:
No artigo, sobre a nobre figura de Carlos Santos, gostaria de complementar no primeiro parágrafo de que este era neto de escravizados alforriados.
Grato pela atenção, o autor.
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