Imaginem que o Estado Israelita
se estabelecia em Portugal, ocupava e colonizava o nosso território, expulsando
a população portuguesa para gigantescos campos de concentração e terraplanando
as suas vilas e aldeias centenárias.
António Santos | AbrilAbril |
opinião
Imaginem que se descobria que
andámos este tempo todo a traduzir mal a conversa entre Deus e Abraão e que, em
vez de «Prometo dar aos teus descendentes esta terra, desde o Egipto até ao rio
Eufrates», se devia ler «do Alvito até ao Rio de Frades». Quem ache semelhante
ideia demasiado disparatada para estar na Bíblia deve consultar de antemão o
episódio em que Deus envia uma ursa para matar duas crianças que chamaram
careca a um homem ou o momento em que Deus pede a Ezequiel para se deitar de
lado durante 430 dias alimentando-se exclusivamente de pão cozido em fezes
humanas. Adiante. Imaginem agora a não menos disparatada ideia do Estado
Israelita se pretender mudar de malas e bagagens para Portugal, concretizando
uma profecia da Idade do Bronze mediante a ocupação e colonização do nosso
território, expulsando a população portuguesa para gigantescos campos de
concentração e terraplanando as suas vilas e aldeias centenárias.
Esta imagem disparatada é um
ponto de partida necessário para se poder discutir o Estado de Israel sem ser
maquinalmente apodado de anti-semita. É a proverbial pescadinha de rabo na
boca: o sionismo precisa do anti-semitismo vivo para justificar a existência de
um Estado onde os judeus não sejam perseguidos e os crimes desse Estado
encarregam-se de renovar a gangrena anti-semita. Desde a sua criação, em 1948,
Israel representa a maior fonte de insegurança e conflitos na região,
bloqueando ostensivamente todas as tentativas internacionais de construir uma
solução de dois Estados. Para agravar o problema, podemos não ter a
possibilidade de passar mais 60 anos a exigir uma solução de dois Estados
porque, por este caminho, daqui a 60 anos pode já não haver palestinos na
Palestina nem colonos em Israel.
Por detrás do violento projecto
de segregação, expulsão e genocídio da população palestina que Israel persegue
desde a sua fundação está uma estratégia a que os israelitas chamam «factos no
terreno»: um Estado nascido sob o signo do colonialismo (na acepção mais
tradicional da palavra, com colonos) torna-se politicamente irreversível ao fim
de algumas décadas, por mais ilegal, injusta e brutal que tenha sido o processo
de conquista e ocupação. Ninguém pondera, hoje em dia, que os EUA, a Austrália
ou a Nova Zelândia deixem de existir por terem sido fundados sob o genocídio da
população indígena. Da mesma forma, como se expulsam israelitas que nasceram,
cresceram e toda a vida viveram numa terra a que, mesmo por alheia culpa a
montante genealógico, chamam sua? Daqui a poucos anos, os colonatos ilegais que
Israel constrói sobre as ruínas de aldeias destruídas serão «factos». Ao
contrário dos EUA, da Austrália ou da Nova Zelândia, Israel não é ainda capaz
de dizimar e assimilar a população indígena. Antes que tal aconteça, é preciso
considerar todos os roteiros para a paz, mesmo que não sejam baseados numa
solução de dois Estados.
Quatro pretextos e uma razão
Quando se interpela directamente
um Estado e lhe se pede a raison d'être, cada um responde com um mito
seminal diferente: um milagre aqui; um rei adormecido sob aquela montanha ali;
um pacato piquenique com indígenas acolá, uma disseminação de fé além. A
primeira e a mais importante justificação do Estado de Israel é religiosa: o
direito a ocupar a terra proviria de uma lenda com 3500 anos segundo a qual
Deus terá prometido a Palestina ao «povo escolhido». Aceitar este argumento é
aceitar todas as outras guerras religiosas que pretendam invadir, ocupar e
colonizar qualquer terra prometida por qualquer deus, o que se aplica, a título
de exemplo, ao Estado Islâmico no al-Andaluz.
A segunda justificação é militar:
Israel conquistou o território, exercendo, pela força, um controlo efectivo
que, quer se goste ou não, é uma realidade.
A terceira é humanitária: na
sequência do Holocausto, Israel seria o porto seguro de todos os judeus
perseguidos há milhares de anos. Esta justificação, contudo, é uma contradição
dos seus próprios termos: não se pode expiar uma catástrofe humanitária
causando outra catástrofe humanitária nem se pode proteger um povo esmagando
outro povo.
A quarta justificação é política:
Israel seria a «única democracia do Médio Oriente», o que implicaria, no
entanto, uma trabalhosa redefinição de democracia. Uma democracia não invade todos os
países vizinhos nem destrói as casas de milhões dos seus cidadãos; uma
democracia não tem leis que impedem uma minoria étnica de viver neste ou
naquele lugar; não prende milhares de crianças todos os anos;
não assassina legalmente 15 mil opositores políticos; não proíbe uma parte dos
seus cidadãos de votar; uma democracia não limita ao mínimo de subsistência o
número de calorias a que uma parte da população tem acesso; uma democracia não
humilha diariamente a sua população com checkpoints militares; uma
democracia não tem cidadãos de primeira e cidadãos de segunda; uma democracia
não descrimina conforme a religião; uma democracia, sucintamente, não ocupa nem
coloniza. Israel poderá ser tudo: etno-estado; herrenvolk (democracia
para a maioria étnica, ditadura para a minoria); apartheid ou Estado colonial.
Pode ser tudo menos um Estadodemocrático.
A quinta e última é a única
remotamente aceitável: a criação de Israel na Palestina foi aprovada
maioritariamente pelos representantes de todos os países do mundo e, no
passado, até as organizações representativas do povo palestino dispuseram-se a
reconhecer esse Estado. Porém, o Estado de Israel que a ONU criou não é o
Estado de Israel que hoje existe. Como demonstram o mapa abaixo e as
incontáveis condenações da ONU, Israel é hoje um Estado fora-da-lei. E um
Estado inventado pela legalidade internacional só pode existir pela
ilegalidade internacional. Se Israel se recusa a cumprir as resoluções da ONU,
nomeadamente sobre as suas fronteiras, não tem direito a existir.
Solidariedade, do Alvito ao Rio
Eufrates
Não se trata de uma medida
punitiva, mas simplesmente de uma saída de emergência para a paz. Ou seja, o
problema pode ser intrínseco à própria existência do Estado de Israel. Uma
pesquisa do termo «Israel» devolve títulos como: «Israel ameaça atacar Irão»;
«ministra israelita entoa o cântico “vamos queimar a tua aldeia”»; «continuam
as expedições punitivas em Gaza»; «Israel ataca posições na Síria»; «Colonatos
ilegais “são para continuar”»...
A questão que se impõe não é
tanto se um Estado religioso e racista como Israel tem ou não direito de
existir mas se essa existência é compatível com a paz. Na África do Sul, a
solução para o sangrento regime de apartheid não passou por dois
Estados. Porque não podem todos os palestinianos, independentemente de serem judeus,
árabes, cristãos, muçulmanos ou ateus, viver em paz num Estado democrático e
multi-étnico chamado Palestina?
Hoje Israel é um Estado aberrante
que só se mantém pela perpétua continuação da violência contra a Palestina e
contra outros países da região, que só sobrevive ligado à máquina da
assistência financeira, política e militar dos EUA e que só aparenta ser
aceitável aos olhos do mundo porque a comunidade internacional assim
permite. A continuidade da existência do Estado de Israel dependerá sempre destes
três factores e ainda de outros dois, não menos importantes: a resistência do
heróico povo palestino e a solidariedade de todos os povos do mundo.
Façamos a nossa parte sabendo
que, se por algum capricho divino, o Génesis dissesse mesmo Alvito e Rio de
Frades, poderíamos ao menos contar com a solidariedade do povo palestino.
Fotos: 1 - As forças de segurança
israelitas usam a força enquanto levam um palestino sob custódia durante um
protesto contra o Muro da Discriminação e os colonatos judaicos na aldeia de
Khirbet Atuf, em Tubas, Cisjordânia, Palestina, 28 de Setembro de 2017CréditosNedal
Eshtayah / Getty Images; 2 - Evolução do território do Estado de Israel na
Palestina (até 2012). Fonte: Online maps, a partir de Al-Arabiya.
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