Novo ataque à Síria nada mudará,
no essencial: Veja como o governo Trump destroi alianças de décadas e acelera a
erosão do poder geopolítico, econômico e militar de Washington
Alfred W. McCoy, no TomDispatch | Outras Palavras | Tradução: Mariana
Carioni, do Círculo de Tradutores Voluntários de Outras Palavras
Enquanto 2017 acabava com os
bilionários norte-americanos torrando os cortes de impostos e executivos do
setor de petróleo comemorando acesso irrestrito a terras federais, bem como
águas costeiras, um setor da elite americana não bebeu do espumante comemorativo:
o corpo de especialistas em política externa de Washington. De diferentes
pontos do espectro político, muitos sentiram um profundo mau pressentimento
pelo futuro global do país sob a presidência de Donald Trump.
Em uma longa reclamação de final
de ano, o comentarista conservador da CNN Fareed Zakaria criticou a “decisão
tola e derrotista da administração Trump de abdicar a influência global dos
Estados Unidos – algo que levou mais de 70 anos para ser construído.” A grande
“história global de nossos tempos”, ele continua, é que “o criador, defensor e
executor dos sistema internacional existente está retirando-se ao isolamento
egocêntrico”, abrindo um vácuo de poder que será preenchido por poderes não
liberais como a China, a Rússia ou a Turquia.
Os editores do The New York
Times lamentaram que “as brincadeiras, a beligerância e a tendência ao
auto-engrandecimento do presidente estejam custando não apenas o apoio do resto
do mundo, mas isolando-o.” Descartando o polido bipartidarismo da nata dos
diplomatas de Washington, a ex-consultora de segurança nacional de Obama, Susan
Rice, criticou Trump por descartar a “liderança com princípios – a base
da política externa americana desde a Segunda Guerra Mundial” – por uma postura
“América Primeiro” que vai apenas “encorajar rivais e enfraquecer a nós
mesmos.”
A crítica é amplia e afiada. Mas
não consegue assimilar o escopo do dano que a Casa Branca de Trump está
impingindo ao sistema global de poder que Washington construiu e cuidadosamente
manteve ao longo destes 70 anos. Na verdade, líderes americanos permaneceram no
topo do mundo por tanto tempo que nem lembram mais como chegaram lá. Poucos,
dentre a elite da política externa de Washington, parecem realmente compreender
o complexo sistema que fez do poder global dos Estados Unidos e o que é hoje —
particularmente suas bases geopolíticas cruciais. À medida em que Trump viaja
pelo mundo tuitando e falando mal de tudo e todos, ele inadvertidamente revela
estrutura essencial desse poder, da mesma forma que um incêndio devastador
deixa as vigas de aço de um edifício arruinado de pé, sobre os escombros
esfumaçados.
A Arquitetura do Poder Global
Americano
A arquitetura da ordem
mundial que Washington construiu depois da Segunda Guerra Mundial foi não
apenas formidável; mas, como Trump tem-nos mostrados quase todos os dias,
surpreendentemente frágil. Em seu cerne, este sistema global reinava sobre uma
delicada dualidade: uma idealística comunidade de nações soberanas iguais sob o
jugo da lei internacional, unida de maneira tensa e tênue a um império
americano fundamentado na realpolitik de seu poder militar e
econômico. Em termos concretos, pense nessa dualidade como Departamento de
Estado versos o Pentágono.
Ao final da Segunda Guerra
Mundial, Os Estados Unidos investiram seu prestígio em formar uma comunidade internacional
que promoveria paz e compartilharia prosperidade através de instituições
permanentes, incluindo as Nações Unidas (1945), o Fundo Monetário Internacional
(1945) e o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (1947), o precursor da
Organização Mundial do Comércio. Para governar esta ordem mundial através da
lei, Washington também ajudou a estabelecer a Corte Internacional de Justiça em
Haia e mais tarde promoveria direitos humanos bem como direitos das mulheres.
Pelo lado realpolitik da dualidade, Washington construiu um aparato
apoiado em quatro pilares – militar, diplomático, econômico e clandestino –
para avançar sombriamente seu domínio global. No seu cerne estava um poderio
militar sem precedentes que (graças a centenas de bases estrangeiras) circundava
o globo, o mais formidável arsenal nuclear do planeta, forças aéreas e navais
maciças e uma variedade sem paralelos de exércitos clientes. Ademais, para
manter sua superioridade militar, o Pentágono promoveu vastamente a pesquisa
científica, produzindo incessantes inovações que levariam, dentre tantas outras
coisas, ao primeiro sistema global de satélites de telecomunicações do mundo, o
que efetivamente adicionava o pilar espacial ao seu aparato para exercer poder
global.
Complementando tudo isso estava
um corpo diplomático ativo em todo o mundo, trabalhando para promover laços
bilaterais próximos com aliados como Austrália e Grã-Bretanha e alianças
multilaterais como a OTAN, a SEATO [Organização do Tratado do Sudeste Asiático]
e a Organização dos Estados Americanos. No processo, Washington distribuía
ajuda econômica a nações novas e velhas. Protegidas pela hegemonia global e
ajudada pelos pactos de comércio multilaterais costurados por Washington, as
corporações multinacionais competiam de maneira lucrativa em mercados
internacionais ao longo de toda a Guerra Fria.
Adicionando outra dimensão ao seu
poder global estava um quarto pilar clandestino que envolvia vigilância global
pela Agência de Segurança Nacional (NSA) e operações secretas nos cinco
continentes pela Agência Central de Inteligência (CIA). Desta maneira,
com regularidade notável e por vastas extensões do globo, Washington manipulou
eleições e promoveu golpes para garantir que quem quer liderasse um país de seu
lado da Cortina de Ferro seria sempre parte de um grupo confiável das elites
subordinadas, amigáveis e subservientes aos EUA.
Por caminhos que até hoje poucos
observadores compreendem em sua totalidade, esse aparato maciço de poder global
erguia-se também sobre bases geopolíticas de força extraordinária. Como John
Darwin, historiador de Oxford, esclareceu em sua avassaladora história dos
impérios eurasianos ao longo dos últimos 600 anos, Washington conquistou seu
“Império colossal… em uma escala sem precedentes” ao tornar-se o primeiro poder
na história a controlar os pontos axiais estratégicos nas duas pontas da
Eurásia” através de bases militares e pactos de segurança mútuos.
Enquanto Washington defendia seus
pontos axiais no Ocidente por meio da OTAN, sua posição no leste era garantida
por quatro pactos de defesa mútuos ao longo do litoral Pacífico, desde o Japão
e a Coreia do Sul passando pelas Filipinas e indo até a Austrália. Tudo isso
era, por sua vez, amarrado por sucessivos arcos de aço que circundavam o vasto
continente eurasiano – bombardeiros estratégicos, mísseis balísticos e frotas
navais robustas no Mediterrâneo, no Golfo Pérsico e no Pacífico. Na última
adição a este aparato, os EUA construíram uma sucessão de 60 bases de drones ao
redor de todo o continente eurasiano, desde a Sicília até Guam.
A dinâmica do Declínio
Na década anterior à entrada de
Donald Trump no Salão Oval, já havia sinais de que esse aparato impressionante
estava em uma trajetória de declínio de longo prazo, ainda que figuras chave,
em uma Washington absorta em orgulho imperial, tenham preferido ignorar essa
realidade. A diplomacia desajeitada de Trump não tão somente
acelerou este processo, mas deu-lhe evidência de maneira arrebatadora.
Ao longo do último meio século, a
participação norte-americana na economia global, por exemplo, caiu de 40% em
1960 para 22% em 2014 e apenas 15% em 2017 (de acordo com o índice realista de
paridade de poder de compra). Muitos especialistas agora concordam que a China
vai ultrapassar os EUA, em termos absolutos, como a economia número um do mundo
dentro de uma década.
Enquanto sua dominância econômica
desvanece, seus instrumentos clandestinos de poder vêm se enfraquecendo
visivelmente. A vigilância da NSA sobre uma considerável gama de líderes
estrangeiros mundo afora, bem como milhões de habitantes de seus países, foi um
dia um instrumento de custo relativamente eficiente para o exercício do poder
global. Agora, graças em parte às revelações de Edward Snowden sobre a
bisbilhotagem da agência e à raiva dos aliados atingidos por ela, os custos
políticos subiram bruscamente. De maneira similar, durante a Guerra Fria a CIA
manipulou dezenas de grandes eleições mundo afora. Agora, a situação foi
revertida com a Rússia usando suas sofisticadas capacidades de cyber guerra
para interferir na campanha presidencial americana de 2016 – um sinal claro do
declínio do poder global de Washington.
Ainda mais impressionante,
Washington agora encara o primeiro desafio contínuo a sua posição geopolítica
na Eurásia. Ao optar por começar a construir uma “nova rota da seda”, uma
estrutura ferroviária de trilhões de dólares e oleodutos atravessando todo o
vasto continente, e preparar-se para construir bases navais nos mares da Arábia
e da China, Pequim está montando uma campanha contínua para acabar com a longa
dominação de Washington sobre a Eurásia.
Fortaleza América
Em apenas 12 meses no cargo,
Donald Trump acelerou seu declínio ao prejudicar praticamente todos os
componentes chave na intrincada arquitetura do poder global americano.
Se todos os grandes impérios
precisam de liderança habilidosa em seu epicentro para manter o que é sempre um
equilíbrio global frágil, então o governo Trump falhou espetacularmente.
Enquanto o Departamento de Estado é eviscerado e o (agora ex) Secretário de
Estado Rex Tillerson descreditado, Trump – peculiarmente para um presidente
americano – tomou controle total sobre a política externa (com os generais que
ele mesmo indicou para postos civis chave a reboque).
Como, então, estes que têm estado
em contato próximo com ele neste período avaliam sua habilidade intelectual
para se adaptar a um papel tão desafiador?
Apesar de desde sua campanha
eleitoral Trump ter repetidamente se gabado por sua excelente educação em
Wharton, Universidade da Pensilvania, como uma qualificação para o posto, ele
começou lá no final dos anos 1960 achando que já sabia tudo de negócios,
levando seu professor de marketing, que lecionava por mais de 30 anos, a
taxá-lo como “o estudante mais burro que eu jamais tive”. Essa impetuosa falta
de vontade de aprender perdurou durante a campanha presidencial. Como o
consultor político Sam Nunberg, enviado para ensiná-lo sobre a Constituição,
relatou, “Eu fui até a Quarta Emenda antes… que seus olhos começassem a se revirar.”
Segundo Michael Wolff conta em
seu novo best-seller sobre a Casa Branca de Trump, , Fire
and Fury (Fogo e Fúria), alguns meses depois, ao final de uma conversa
por telefone com o presidente eleito sobre a complexidade do programa de vistos
H-1B para imigrantes especializados, o magnata da mídia Rupert Murdoch desligou
e disse, “Mas que porra de idiota.” E em julho último, como ninguém deve
esquecer, depois de um briefing ultrassecreto do Pentágono para
diretores na Casa Branca sobre operações militares pelo mundo, o (agora ex)
Secretário de Estado Tillerson demonstrou, a portas fechadas, compartilhar da
mesma percepção, ao chamar o presidente de “idiota de merda.”
“É pior do que você pode
imaginar. Um idiota cercado de palhaços,” um adido da Casa Branca escreveu em
um e-mail, de acordo com Wolff. “Trump não lê nada; nem memorandos de uma
página, nem documentos breves; nada. Ele se levanta antes do final de reuniões
com líderes do mundo porque fica entediado.” A vice-chefe de staff da
Casa Branca declarou que lidar com o presidente era “como tentar adivinhar o
que uma criança quer.”
Essas qualidades mentais estão
amplamente evidentes no recente relatório de Estratégia de Segurança Nacional
do governo norte-americano, um documento vago que oscila entre o equivocado e o
delirante. “Quando eu assumi o cargo,” Trump (ou quem quer que esteja
escrevendo por ele) escreve sombriamente em um prefácio pessoal, “regimes
nefastos desenvolviam armas nucleares… para ameaçar todo o planeta. Grupos
terroristas radicais islâmicos floresciam… poderes rivais minavam os interesses
norte-americanos ao redor do mundo de maneira agressiva… o injusto
compartilhamento de responsabilidades com nossos aliados e investimentos
inadequados na nossa própria segurança evocavam o perigo.”
Em apenas 12 curtos meses,
contudo, o presidente – assim indica “seu” prefácio – salvou o país da destruição
quase certa sozinho. “Nós estamos reunindo o mundo contra o regime nefasto da
Coreia do Norte e… a ditadura no Irã, que aqueles determinados a continuar um
acordo nuclear falho tinham negligenciado,” continua o documento, numa
celebração tipicamente Trumpiana de si mesmo. “Nós renovamos nossas amizades no
Oriente Médio… para ajudar a remover terroristas e extremistas… os aliados da
América agora contribuem mais para nossa defesa comum, fortalecendo mesmo as
nossas mais fortes alianças… nós estamos fazendo investimentos históricos nas
forças armadas dos Estados Unidos.”
Refletindo as amplamente
documentadas dificuldades de seu governo com a verdade, praticamente cada uma
das declarações é inexata, incompleta ou irrelevante. Deixando de lado estes
detalhes, o documento em si reflete a maneira como o presidente (e seus
generais) abandonaram décadas de liderança confiante da comunidade
internacional e agora estão tentando se retirar de “um mundo
extraordinariamente perigoso” para um verdadeiro Festung America(Fortaleza
América), por trás de muros de concreto e barreiras tarifárias. É um movimento
que lembra a Muralha do Atlântico dos bunkers litorâneos do Terceiro Reich de
Hitler, construídos para sua fracassada Festung Europa (Fortaleza
Europa). Mas além de uma agenda de política externa tão obviamente míope,
existem vastas áreas, largamente negligenciadas pela estratégia de Trump, que
continuam críticas para a manutenção do poder global norte-americano.
Tudo que você tem a fazer é
examinar as manchetes diárias na mídia no ano passado para perceber que a
dominação mundial de Washington está desmoronando, graças ao tipo de revés em
cascata que frequentemente acompanha o declínio imperial. Considere os sete
primeiros dias de dezembro de 2017, quando o The New York Timespublicou
(sem ligar os pontos) que nação após nação estava se retirando das alianças com
Washington. Primeiro foi o Egito, um país que recebeu 70 bilhões de dólares de
ajuda norte-americana ao longo dos últimos 40 anos e agora está abrindo suas bases
militares a caças russos. Em seguida, apesar do namoro assíduo de Obama com o
país, Mianmar claramente aproxima-se cada vez mais de Pequim. Enquanto isso, a
Austrália, fiel aliada da América pelos últimos 100 anos, estaria adaptando sua
diplomacia, ainda que relutantemente, para acomodar o poder cada vez mais
dominante da China sobre a Ásia. Finalmente, o ministro das Relações Exteriores
da Alemanha, o bastião americano na Europa desde 1945, aponta publicamente o
crescente distanciamento de Washington em questões de políticas chave e insiste
que confrontos serão inevitáveis e que as relações “jamais serão as mesmas.”
E isso é apenas um olhar
superficial sobre uma semana de notícias, sem sequer chegar aos tipos de
rupturas com aliados regularmente inflamadas ou enfatizadas pelos tweets diários
do presidente.
Apenas três exemplos de muitos
são suficientes: o cancelamento da visita de estado do presidente mexicano Peña
Nieto, depois de um tweet que dizia que seu teria que pagar pelo “grande e
lindo muro” na fronteira comum; o ultraje de líderes britânicos depois de o
presidente repostar vídeos racistas anti-islâmicos da conta de um vice-líder de
um grupo político neo-nazista do Reino Unido, seguido de sua repreensão à
primeira ministra Theresa May por criticá-lo por isso; ou sua explosão de ano
novo acusando o Paquistão de “nada mais que mentiras e enganação” como um
prelúdio ao corte da assistência norte-americana ao país. Considerando o dano
diplomático como um todo, pode-se dizer que Trump está tuitando enquanto Roma
arde.
Como apenas 40 a 50 nações têm
riquezas suficientes para assumir um papel de liderança regional, menos ainda
um papel global, alienar ou perder aliados neste ritmo poderia deixar
Washington sem amigos muito em breve. É algo que o presidente Trump descobriu
em dezembro, quando desafiou inúmeras resoluções da ONU ao reconhecer Jerusalém
como a capital de Israel. A Casa Branca logo recebeu uma reprimenda por 14
votos contra 1 no Conselho de Segurança da ONU, com aliados próximos como
alemães e franceses votando contra Washington. Isso veio depois de a
embaixadora nas Nações Unidas, Nikki Hakey ter vaticinado que “os Estados
Unidos vão fazer uma lista” para punir países que se atrevam a votar contra e
de Trump ter ameaçado cortar ajuda àqueles que o fizessem. A Assembleia Geral
prontamente votou 128 a 9 (com 35 abstenções), condenando o reconhecimento –
testemunho eloquente do declínio da influência internacional de Washington.
Em seguida, vamos considerar os
“investimentos históricos” em um pilar central do poder global americano, as
forças armadas norte-americanas, mencionadas na Estratégia de Segurança
Nacional de Trump. Não se deixe distrair pelos polpudos 10% de aumento proposto
ao orçamento do Pentágono para financiar novas aeronaves e navios de guerra,
com boa parte indo direto para os bolsos das gigantes empreiteiras de defesa.
Foque, ao invés disso, no que outrora teria sido inconcebível em Washington. O
orçamento proposto por Trump golpeia o financiamento para pesquisa básica em
áreas estratégicas como “inteligência artificial” que provavelmente serão
críticas para sistemas de armamentos autômatos dentro de uma década.
Na verdade, o presidente e sua
equipe, distraídos por visões de navios cintilantes e aviões brilhantes (com
seu previsível e colossal sobrecusto futuro), estão prontos a abandonar o
básico na dominação global: os implacáveis esforços em pesquisa científica que
estiveram na proa da supremacia militar americana. E ao expandir o orçamento do
Pentágono, enquanto corta o do Departamento de Estado, Trump também está
desestabilizando a delicada dualidade do poder dos EUA ao empurrar a política
externa cada vez mais em direção a soluções militares dispendiosas (que
provaram ser tudo menos soluções de fato).
No início da campanha, em 2016,
Trump martelou outro pilar do poder norte-americano, atacando o sistema de
comércio global e pactos de comércio multilaterais, que durante muito tempo
deram vantagem às empresas transnacionais do país. Ele não só cancelou a
Parceria Trans-Pacífica (TPP), que prometia direcionar 40% do comércio mundial
pra longe da China, na direção dos Estados Unidos, como também ameaçou esvaziar
o pacto de livre-comércio com a Coreia do Sul e tem sido tão insistente em
redesenhar o NAFTA para servir sua agenda “América primeiro” que as negociações
em andamento podem muito bem fracassar.
A posição geopolítica dos EUA em
ruínas
Tão sério quanto isso possa ser,
Trump revelou o mais profundo dano que seria capaz de causar para as bases
geopolíticas do poder global norte-americano em dois momentos-chave em suas
viagens à Europa e à Ásia ano passado. Em ambas ocasiões, ele demonstrou sua
vontade de sair martelando a posição de Washington nessas duas saídas axiais
estratégicas da Eurásia.
Durante uma visita à sede da OTAN
em Bruxelas em maio, ele puniu aliados europeus, cujos líderes escutaram
“perplexos” por não pagar sua “devida parte” nos custos militares da aliança.
Aproveitou pra recusar a reafirmação do princípio central da OTAN de defesa
coletiva. Apesar de tentativas posteriores de contenção de danos, isto espalhou
o medo pela Europa e com razão. Sinalizou o fim de mais de três quartos de
século de supremacia inquestionada na região.
Em seguida, em uma reunião da
Cooperação Econômica Ásia-Pacífico no Vietnã, em novembro, o presidente começou
“um ataque” contra acordos multilaterais de comércio e insistiu que iria sempre
“colocar a América primeiro.” Era como se, em uma Ásia com uma China em rápida
ascensão, ele estivesse anunciando mais uma vez que a supremacia pós-Segunda
Guerra de Washington fosse um artefato da história. Apropriadamente, na mesma
reunião, os 11 parceiros Trans-Pacíficos remanescentes, liderados por Japão e
Canadá, anunciaram grande progresso em finalizar o acordo TPP que ele tão
simbolicamente rejeitou – e o fizeram sem os EUA. “Os EUA perderam seu papel de
liderança“, comentou Jayant Menon, um economista do Banco de Desenvolvimento
Asiático. “E a China está rapidamente substituindo-os.”
Sob Trump, na verdade, as próximas
relações com três aliados-chave dos EUA no Pacífico continuam a enfraquecer-se
de maneira visível. Durante uma chamada telefônica de cortesia por ocasião de
sua posse, Trump gratuitamente insultou o primeiro ministro australiano, um ato
que apenas ressaltou a constante alienação dos EUA e uma crescente inclinação
de mudar sua aliança estratégica primária em direção à China. Em pesquisas
recentes, quando perguntados que país prefeririam como primeiro aliado, 43% dos
australianos escolheram a China – uma transformação antes inimaginável, que a
versão de diplomacia de Trump está apenas reforçando.
Nas Filipinas, a posse do
presidente Rodrigo Duterte em junho de 2016 trouxe uma súbita mudança na
política externa do país, terminando com a oposição de Manila a bases de Pequim
no Mar do Sul da China. Apesar das agressivas investidas de Trump e uma certa
afinidade temperamental entre os dois líderes, Duterte continuou a diminuir as
manobras militares em conjunto com os EUA, que eram um evento anual para seu país,
e recusou-se a reconsiderar sua decisiva inclinação em direção a Pequim. Esse
realinhamento já era evidente em uma transcrição vazada de um telefonema entre
os dois presidentes, na qual Duterte insistia que a resolução da questão
nuclear da Coreia do Norte deveria ser deixada a cargo da China somente.
É, entretanto, na península
coreana que as limitações de Trump enquanto líder global ficam mais evidentes.
Em duas iniciativas descoordenadas e mal informadas – desgastando uma aliança
norte-americana que vem desde a era da Guerra da Coreia e exigindo total
desarmamento nuclear pelo Norte – Trump fomentou a dinâmica diplomática que
permitiu a Pequim, Pyongyang e até mesmo Seul ultrapassar Washington.
Durante sua campanha presidencial
e primeiros meses no cargo, Trump repetidamente insultou a Coreia do Sul,
diminuindo sua cultura e exigindo um bilhão de dólares para instalar um sistema
de mísseis de defesa norte-americano. Ninguém deveria ter se surpreendido
quando Moon Jae-in ganhou a presidência deste país ano passado baseado em uma
plataforma “diga não” à América e em promessas de reabrir negociações diretas
com a Coreia do Norte, de Kim Jong-un. Então, durante uma visita de estado a
Washington em junho passado, o novo líder sul-coreano foi pego de surpresa quando
Trump classificou o acordo de livre-comércio entre os dois países de “injusto
com o trabalhador americano” e achincalhou a proposta de Moon por negociar com
Pyongyang.
Enquanto isso, Kim Jong-un
supervisionou 16 testes com foguetes em 2017 que deram ao seu país mísseis que
poderiam levar uma arma nuclear a Honolulu, Seatle ou mesmo a Nova Iorque ou
Washington até o final do ano, enquanto testava sua primeira bomba de
hidrogênio. Convencido de que a Coreia do Norte “busca a capacidade de matar
milhões de americanos,” Trump tornou-se obcecado por cercear o programa nuclear
de Pyongyang de qualquer modo, até mesmo ameaçando em agosto passado soltar
sobre o país “fogo e fúria como o mundo jamais viu.”
Num espaço de dias, contudo, o
então estrategista da Casa Branca, Steve Bannon, expôs a fanfarronice vazia de
tudo isso ao contar à imprensa, “Não existe solução militar até que alguém
resolva a equação que… dez milhões de pessoas em Seul não morram nos primeiros
30 minutos por armas convencionais.” Então as ameaças fracassaram e Trump
fracassou , repetidamente mandando tweets para Kim Jong-un xingando-o de
“Homenzinho do Foguete” e se gabando de seu “botão nuclear” ser “muito maior”
do que o do líder norte-coreano. Estes 12 meses de bizarras e desestabilizantes
viradas e tweets do presidente, praticamente sem precedentes nos anais da
diplomacia moderna, empurraram Seul na direção de conversas diretas com
Pyongyang – excluindo Washington e enfraquecendo o que havia sido uma sólida
aliança.
Na guerra de nervos com a Coreia
do Norte sobre testes com mísseis, a estratégia de Trump de triangulação com a
China (isto é, Washington cutuca Pequim, Pequim empurra Pyongyang) já impingiu
uma grande e inédita derrota sobre o poder norte-americano no Pacífico. Pelos
últimos seis meses, para encorajar Pequim a pressionar Pyongyang, a Casa Branca
suspendeu as patrulhas de “liberdade de navegação” que desafiava as
reinvindicações espúrias de Pequim sobre o controle do Mar do Sul da China,
efetivamente concedendo esta estratégica rota marinha à China. Em uma hábil
dissimulação, Pequim demonstrou cooperação com Washington ao expressar “graves
preocupações” sobre os testes com mísseis de Pyongyang e impor sanções
nominais, enquanto negocia uma estratégia mais inteligente e de longo prazo. No
processo, vem trabalhando para reduzir manobras militares conjuntas entre os
dois países e neutralizar a marinha americana no que a China considera seu mar
territorial.
Nesta edição diplomática de The Art of the Deal, Pequim está vencendo Washington.
Derrubando o Império
Muito compreensivelmente, muitos
norte-americanos focaram nos danos que os primeiros meses de Trump no cargo
causaram internamente, de abrir imensidões selvagens e águas marítimas para a
exploração de gás natural a ameaçar o acesso à saúde, distorcer o sistema
tributário para favorecer os ricos, cancelar a neutralidade da internet e
esvaziar proteções ambientais de todos os tipos. A maioria senão todas essas
políticas regressivas podem, todavia, ser reparadas ou revertidas se os
democratas tomarem o controle do Congresso e da Casa Branca.
A versão tão contundentemente
inepta de Trump de diplomacia de um homem só, no contexto do atual declínio
global dos Estados Unidos é algo completamente distinto. A liderança global
perdida nunca é prontamente recuperada, em particular quando poderes rivais
estão preparados para preencher a vacância. Enquanto Trump depreda a posição
estratégica dos EUA nas saídas axiais da Eurásia, a China exerce incansável
pressão para afastar os Estados Unidos e dominar aquele vasto continente com o
que Edward Wong, correspondente do New York Times, chama de “um
contraponto brusco… sinônimo de força bruta, suborno e intimidação.”
Em apenas um ano extraordinário,
Trump desestabilizou a delicada dualidade que há tempos tem sido a base para a
política externa dos EUA: favorecer a guerra sobre a diplomacia, o Pentágono
sobre o Departamento de Estado e interesses nacionais obtusos sobre liderança
global. Mas em um mundo globalizado interconectado pelo comércio, pela internet
e pela rápida proliferação de mísseis com armas nucleares, muralhas não vão
funcionar. Não poderá existir uma Fortaleza América.
* Alfred W. McCoy é historiador
norte-americano e atual professor de História no Centro para Estudos do
Sudoeste Asiático, na Universidade de Wisconsi, Madison. Pesquisa e escreve
principalmente sobre a história das Filipinas e o comércio de heroína e ópio no
Triângulo Dourado. Seu livro "A Política da Heroína no Sudeste
Asiático" foi um marco documentando as interações entre a CIA e os cartéis
de droga na região.
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