Nova Constituição, mais
democrática, pode afastar lembranças do “socialismo real”. Mas grande desafio
do novo governo é enfrentar as complexas reformas econômicas e transformações
culturais
Felix Contreras, em Crônicas
de Havana | Outras Palavras
Já estão em marcha e na fase
pública os trabalhos para a reforma constitucional, um fato político de grande
relevância em Cuba, com muitos detalhes que envolvem as instituições do Estado
e sociais, a sociedade civil e a população em geral – e que, por seu conteúdo,
moverá as estruturas de todo o país nos próximos anos.
Segundo publicado na imprensa oficial, será a Constituição cubana mais plural, participativa e inclusiva até hoje, com ampla participação popular num marco jurídico que define o sistema político e o modelo econômico do Estado socialista cubano, que agora terá um avanço ”na construção de um novo modelo socialista”.
É a primeira Constituição de um
socialismo mais crítico, com um olhar mais aberto ao gênero, à diversidade
sexual (agora o machão está mudando), à racialidade, à emigração, aos temas
ambientais, à integração. O país precisa de um ar renovador não só na letra,
mas também de um novo espírito. A sociedade cubana está muito longe dos
esquemas de ontem, dos velhos modelos políticos, daquele “socialismo real”
soviético que muito influiu ou gravitou nos destinos do país durante cinquenta
anos. Agora são os cubanos das redes sociais, das novas tecnologias da
informação, os cubanos que têm liberdade para sair e entrar no pais sem
limitações, sem medo do debate e de falar o que pensam.
Turismo e agricultura
O turismo em Cuba, com grande
espaço nas reformas econômicas abertas por Raul Castro, espalha neste momento
seu desenvolvimento, com 4 milhões de turistas só neste ano. Mas tem um ponto
fraco: são poucos os produtos do país, e é preciso recorrer a alimentos
importados. Acontece que o consumo de refeições nos hotéis e nas casas que
alugam acomodações é imenso, ainda mais na hora do café da manhã, momento
sagrado para o turismo brasileiro.
A agricultura foi vítima da
antiga política de controle absoluto nas mãos do governo, do Estado – que, para
limitar o poder político do camponês (acumulação de dinheiro), refreava sua
produção agrícola. Resulta que muitas terras, muitas matas tornaram-se alimento
da marabu, uma erva daninha que não para de espalhar-se e que mata as plantas
vizinhas. É aquele marabu de que falou Raul Castro no ano 2000, quando fez uma
visita ao estado de Camaguey e ficou arrepiado com a invasão dessa erva nas
terras que antigamente alimentavam as vacas leiteiras no centro da ilha.
Outro problema derivado da
carente infraestrutura cubana são os guardanapos e o papel higiênico – as
pessoas compram em grandes quantidades, provocando uma escassez artificial. Uma
amiga paulista pediu dois guardanapos num restaurante e só lhe deram um: ”temos
muito pouco”, foi a explicação do garçon, mirando os grandes olhos no rosto da
garota.
Relações com EUA
As relações Cuba-Estados Unidos
são complexas e é difícil entender direito se acabou ou não a guerra fria ou
degelo entre os dois países. Quase todos os dias aparecem na mídia desmentidos
ou informações contraditórias, como na semana passada, quando uma notícia
falava da redução de voos a Havana de empresas aéreas que não faziam mais
negócios em Cuba.
É verdade que o turismo
norte-americano teve uma queda causada pela crise dos ainda misteriosos ataques
sônicos que teriam sido recebidos pelos diplomatas estadounidenses em Havana.
Também os fortes danos do furacão Irma no país concorrem para essa queda. Daí
que o mais minguado mercado na industria do turismo em Cuba é hoje o
norte-americano – houve uma forte contração de janeiro de 2018 (menos 585
turistas) e ainda maior em fevereiro e março (433).
Esse tema esquenta muito a cabeça
do povo cubano – e imagino que esquenta ainda mais a da Donald Trump, agora que
muitos hotéis de Havana são comandados por militares dos Castro. Parece que a
American Airlines será a primeira empresa na operação de transporte de pacotes
entre EUA e Cuba, o que inclui também correspondência e correio expresso.
Afinal, acabou ou não a política de ferro para Cuba da administraçao Trump?
Unificação das moedas
Os cubanos já esqueceram a quantidade
de vezes que seu governo anunciou a unificação das duas moedas existentes no
pais, ou seja, a volta ao peso cubano e à normalização de comprar ou trocar sem
fila a moeda estrangeira (dólar, euro, lira, libra ou outras) pelo CUC (dólar
cubano equivalente a 25 pesos) para, depois, trocá-lo por moeda nacional, o
peso, e assim poder comprar as coisas com melhor preço.
”Nossa, fiz um mestrado em Havana
usando as duas moedas… Sorte que o mestrado foi de graça”, me disse rindo uma
amiga de São Paulo.
O tema das duas moedas é o
quebra-cabeças número um para o turista que vem a Havana pela primeira vez. Um
quebra-cabeças que é mais complexo e difícil do que se pode pensar e uma pedra
no sapato do processo de transformações econômicas da ilha, porque os custos
econômicos, sociais e políticos são maiores que os previstos e Cuba não tem
dinheiro nenhum.
Um tema recorrente na percepção
popular habaneira, onde o cara que vende banana na esquina diz “Nossa, esta
troca não tem pés, vai devagar demais”, e o freguês que o escuta fala: “Isso é
tema para um romance de Leonardo Padura”.
Havana, submersa em lixo
Recentemente nomeada Cidade
Maravilha por instituições internacionais, Havana mostra ao turista uma face de
grande contraste com essa qualificação: montanhas de lixo e cheiros nada
amáveis nas esquinas do chamado grande Centro de Havana (onde lamentavelmente
moro).
”Que acontece que há tanto lixo nas esquinas da Cidade Maravilha, Contreras?”, perguntam amigos brasileiros.
Na contemplação da Cidade
Maravilha, de seu ecletismo arquitetônico e a beleza do art déco, sobressaem
também os grupos de cachorros sem dono que deambulam sem rumo fixo pelas ruas
olhando para o céu e a legião de turistas sem ”comprender” nada…
Ao acaso, uma vizinha sai de uma
república com uma sacola de lixo nas mãos e, na maior indolência do mundo, joga
o lixo no chão diante do cartaz que pede: ”Favor não jogar lixo fora do cesto”.
Minha amiga diz à velhinha: ”Nossa, a senhora joga o lixo no chão!”… E a
senhora responde: ”O que você quer, que eu jogue no chão da minha casa? Diga ao
governo que venha limpar, caralho!”
Pensadores
As grandes mudanças que acontecem
em Cuba provocam muitas perguntas, principalmente fora da ilha, onde se tem
menos informações sobre Cuba. No ano passado o jornalista de Outras Palavras
Cauê Ameni me fez a pergunta: “Há em Havana pensadores/pensadoras à altura do
sucesso dessas mudanças?
Sim, respondo, e cito só alguns:
Esteban Morales, doutor em ciências econômicas, especialista em política e
professor, autor de Teoria leninista do imperialismo e A problemática racial em
Cuba; Alfredo Preto, ensaísta e editor, diretor da revista Cuadernos de Nossa
América, autor dos livros A imprensa nos Estados Unidos, A agenda americana e O
outro no espelho; Domingo Jorge Cuadrielo, pesquisador literário e narrador,
autor de Do exílio espanhol em Cuba e do Dicionário biobibliográfico de
escritores espanhois em Cuba, século XX; Guilherme Rodrigues Rivera, poeta,
jornalista e ensaísta, autor de Em carne propia, historia do tropo poético e de
Nós os cubanos; Fernando Ravsberg, jornalista uruguaio que mora em Cuba, autor
do blog Cartas desde Cuba; Dmitri Prieto, mestre em direito, antropologia e
sociedade pela London School of Economics and Political Science; Aurelio
Alonso, sociólogo, ensaísta e especialista em política, autor de Iglesia y
política em Cuba e de O laberinto tras a caída; Armando Chaguaceda,
historiador, especialista em temas políticos como democracia, movimentos
sociais e historia da política latino-americana; Jorge Gomez Barata,
jornalista, foi professor na Uniiversidade Agostinho Neto de Angola; Roberto
Veiga Gonzales, licenciado em direito, autor de matérias sobre religião
católica.
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