domingo, 29 de julho de 2018

Portugal | O ministro específico


O assunto específico a que se refere o ministro das Finanças não tem nada a ver com os 9 mil milhões de dinheiro público que foram enterrados na banca durante esta legislatura.

Joana Mortágua* | opinião

No início da semana, o ministro Mário Centeno disse em entrevista ao “Público” que “não é possível pôr em causa a sustentabilidade de algo que afeta todos, só por causa de um assunto específico”. Descontextualizada, a frase poderia ter sido dita por qualquer deputado do Bloco de Esquerda para explicar o absurdo de se gastar 2 mil milhões no Banif (assunto específico) enquanto se mantém precária a sustentabilidade do SNS (algo que afeta todos).

Mas o assunto específico a que se refere o ministro das Finanças não tem nada a ver com os 9 mil milhões de dinheiro público que foram enterrados na banca durante esta legislatura. Aparentemente, o maior perigo para a sustentabilidade do Orçamento do Estado para 2019 são os 22 milhões1 necessários para começar a recuperação do tempo de serviço dos professores.
Ou seja, traduzido em linguagem do passado, o ministro Centeno está a tentar dizer-nos que os professores exigem um direito que está acima das nossas possibilidades. O problema desta afirmação, e daí a indignação que provocou junto dos docentes, é que mais uma vez se utiliza o impacto orçamental para divulgar a ideia de que os professores exigem privilégio no quadro geral de descongelamento das carreiras da função pública.

Aqui há duas questões que têm de ser tratadas em separado. A primeira é saber se a recuperação de tempo de serviço dos professores é ou não uma reivindicação legítima e justa. Se a resposta for sim, é preciso calcular com seriedade como pode ser mitigado o impacto orçamental através de um faseamento, como aconteceu com o descongelamento das carreiras. A ordem dos fatores não pode ser invertida. A existência de direitos consagrados, seja o dos professores à carreira ou o das crianças à educação, não está sujeita a revisão orçamental anual.

Em relação à primeira questão, o governo reconheceu que o apagão do tempo congelado resulta numa penalização brutal da carreira dos professores. Foi por isso que propôs a recuperação de parte desse tempo de serviço. Logo aí cai por terra o argumento de que “seria muito complexo, até em termos de comparabilidade com os outros trabalhadores, o governo reequacionar decisões legais anteriores”. Todos tiveram o tempo congelado por decisões legais anteriores, só que, nas carreiras gerais, esse tempo foi todo contado para reposicionamento, e nos professores pretende-se que seja apenas uma pequena parte… o que deixa muito a dever à comparabilidade entre trabalhadores.

Sem entrar na polémica sobre a norma prevista no Orçamento de 2018 que obrigava o governo à negociação, a verdade é que, depois disso, também a Assembleia da República reconheceu o direito dos professores à recuperação do tempo de serviço numa resolução votada sem oposição e com o voto favorável do PS.

Sobra a questão do impacto orçamental. Mesmo sem números fidedignos, não é difícil prever que o impacto orçamental será considerável quando comparado com o custo geral do descongelamento de carreiras. Uma das razões para isso justifica a afirmação de que “o descongelamento da carreira dos professores é responsável por mais de metade do aumento do custo total com o descongelamento”. Os professores são o maior corpo profissional da administração pública e é evidente que os salários de 120 mil docentes terão sempre impacto orçamental. Ainda assim, é um custo incomparavelmente menor que o de não ter escola pública.

A segunda razão tem a ver com a especificidade da profissão docente. Muitas vezes, essa especificidade traduz- -se em dar aulas a centenas de quilómetros da família, com despesas de transporte e duas casas para sustentar com um salário pouco superior a mil euros. Não são condições de trabalho para quem leva nas mãos a educação de um país inteiro, e é por isso que o Estatuto da Carreira Docente reconhece regras próprias de progressão.

É preciso recordar que é neste debate sobre a carreira docente que se joga muito do futuro da escola pública. A questão coloca-se nos mesmos termos com que Centeno falou do SNS: existe um “desafio para o sistema ao nível da formação e substituição” de profissionais na educação pública. Ensinar é uma profissão socialmente desvalorizada e pouco recompensadora para as exigências que tem. Por isso, face uma classe envelhecida, há cada vez menos jovens que querem ser professores. Não é ajuizado ignorar o problema. O que agora não passa de uma pequena dor de cabeça orçamental, a prazo. será a doença crónica da educação pública.

Há uma década que os professores estão à espera que se cumpra o seu direito à carreira. Na preparação do último Orçamento de uma legislatura que se comprometeu com a recuperação de direitos para todos, e olhando para a determinação com que os professores têm lutado, há uma questão que o Ministro das Finanças devia compreender. A recusa em negociar a recuperação do tempo de serviço não tem nada a ver com a “impaciência dos políticos”, mas pode legitimamente significar o fim da paciência dos professores.

Artigo publicado no jornal “I” a 25 de julho de 2018

* Esquerda.net | Joana Mortágua - Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.

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