O assunto específico a que se
refere o ministro das Finanças não tem nada a ver com os 9 mil milhões de
dinheiro público que foram enterrados na banca durante esta legislatura.
Joana Mortágua* |
opinião
No início da semana, o ministro
Mário Centeno disse em entrevista ao “Público” que “não é possível pôr em causa
a sustentabilidade de algo que afeta todos, só por causa de um assunto
específico”. Descontextualizada, a frase poderia ter sido dita por qualquer
deputado do Bloco de Esquerda para explicar o absurdo de se gastar 2 mil
milhões no Banif (assunto específico) enquanto se mantém precária a
sustentabilidade do SNS (algo que afeta todos).
Mas o assunto específico a que se
refere o ministro das Finanças não tem nada a ver com os 9 mil milhões de
dinheiro público que foram enterrados na banca durante esta legislatura.
Aparentemente, o maior perigo para a sustentabilidade do Orçamento do Estado
para 2019 são os 22 milhões1 necessários para começar a
recuperação do tempo de serviço dos professores.
Ou seja, traduzido em linguagem
do passado, o ministro Centeno está a tentar dizer-nos que os professores
exigem um direito que está acima das nossas possibilidades. O problema desta
afirmação, e daí a indignação que provocou junto dos docentes, é que mais uma
vez se utiliza o impacto orçamental para divulgar a ideia de que os professores
exigem privilégio no quadro geral de descongelamento das carreiras da função
pública.
Aqui há duas questões que têm de
ser tratadas em separado. A primeira é saber se a recuperação de tempo de
serviço dos professores é ou não uma reivindicação legítima e justa. Se a
resposta for sim, é preciso calcular com seriedade como pode ser mitigado o
impacto orçamental através de um faseamento, como aconteceu com o
descongelamento das carreiras. A ordem dos fatores não pode ser invertida. A
existência de direitos consagrados, seja o dos professores à carreira ou o das
crianças à educação, não está sujeita a revisão orçamental anual.
Em relação à primeira questão, o
governo reconheceu que o apagão do tempo congelado resulta numa penalização
brutal da carreira dos professores. Foi por isso que propôs a recuperação de
parte desse tempo de serviço. Logo aí cai por terra o argumento de que “seria muito
complexo, até em termos de comparabilidade com os outros trabalhadores, o
governo reequacionar decisões legais anteriores”. Todos tiveram o tempo
congelado por decisões legais anteriores, só que, nas carreiras gerais, esse
tempo foi todo contado para reposicionamento, e nos professores pretende-se que
seja apenas uma pequena parte… o que deixa muito a dever à comparabilidade
entre trabalhadores.
Sem entrar na polémica sobre a
norma prevista no Orçamento de 2018 que obrigava o governo à negociação, a verdade
é que, depois disso, também a Assembleia da República reconheceu o direito dos
professores à recuperação do tempo de serviço numa resolução votada sem
oposição e com o voto favorável do PS.
Sobra a questão do impacto
orçamental. Mesmo sem números fidedignos, não é difícil prever que o impacto
orçamental será considerável quando comparado com o custo geral do
descongelamento de carreiras. Uma das razões para isso justifica a afirmação de
que “o descongelamento da carreira dos professores é responsável por mais de
metade do aumento do custo total com o descongelamento”. Os professores são o
maior corpo profissional da administração pública e é evidente que os salários
de 120 mil docentes terão sempre impacto orçamental. Ainda assim, é um custo
incomparavelmente menor que o de não ter escola pública.
A segunda razão tem a ver com a
especificidade da profissão docente. Muitas vezes, essa especificidade traduz-
-se em dar aulas a centenas de quilómetros da família, com despesas de
transporte e duas casas para sustentar com um salário pouco superior a mil
euros. Não são condições de trabalho para quem leva nas mãos a educação de um
país inteiro, e é por isso que o Estatuto da Carreira Docente reconhece regras
próprias de progressão.
É preciso recordar que é neste
debate sobre a carreira docente que se joga muito do futuro da escola pública.
A questão coloca-se nos mesmos termos com que Centeno falou do SNS: existe um
“desafio para o sistema ao nível da formação e substituição” de profissionais
na educação pública. Ensinar é uma profissão socialmente desvalorizada e pouco
recompensadora para as exigências que tem. Por isso, face uma classe
envelhecida, há cada vez menos jovens que querem ser professores. Não é
ajuizado ignorar o problema. O que agora não passa de uma pequena dor de cabeça
orçamental, a prazo. será a doença crónica da educação pública.
Há uma década que os professores
estão à espera que se cumpra o seu direito à carreira. Na preparação do último
Orçamento de uma legislatura que se comprometeu com a recuperação de direitos
para todos, e olhando para a determinação com que os professores têm lutado, há
uma questão que o Ministro das Finanças devia compreender. A recusa em negociar
a recuperação do tempo de serviço não tem nada a ver com a “impaciência dos
políticos”, mas pode legitimamente significar o fim da paciência dos
professores.
Artigo publicado no jornal “I” a
25 de julho de 2018
* Esquerda.net | Joana Mortágua - Deputada
e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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