Uma
semana depois, balanço da jornada que quase levou à aprovação do direito ao
aborto indica: lutas feministas tornaram-se mais fortes que nunca, espalham-se
pelo continente e desafiam promiscuidade entre religião e Estado
Fernanda
Paixão e Antônio Ferreira, do Coletivo Passarinho | em Outras Palavras
Na
madrugada da quinta-feira 9 de agosto, depois de mais de 17 horas de
pronunciamentos, o Senado argentino vetou o projeto de lei de interrupção
voluntária da gravidez (IVA). A longa jornada de mobilização nas imediações do
Congresso desde as primeiras horas do dia 8 de Aborto, ou “8A”, como se
intitulou a data histórica, terminava com o rechaço decidido por 24 senadores e
14 senadoras. Nas ruas, o lado dos lenços azuis “pró-vida”, à direita do edifício
do Congresso, não economizou fogos de artifício e cartazes alçados com os
dizeres “Cristo venceu”. O lema “Que seja lei”, difundido nos últimos meses por
toda Argentina junto com a maré verde pró-aborto legal, ao final da noite deu
lugar com força ao “Será lei”. Talvez não hoje, mas amanhã, como ressaltaram em
seus discursos senadores que votaram pelo “sim”, como Pino Solanas e a
ex-presidenta Cristina Kirchner. O projeto, que já foi apresentado ao Congresso
Nacional sete vezes, agora espera o início das sessões legislativas de 2019
para ser apresentado novamente.
Na
manhã seguinte, em contraste com um 8 de agosto coberto de chuva, abriu-se um
dia estranhamente ensolarado. O aborto seguia na clandestinidade, deixando em
jogo a vida, a saúde e a autonomia das mulheres de todo um país. Porém, aquela
jornada épica de quase 2 milhões de pessoas que passaram todo o dia sob uma
incessante chuva e sensação térmica de 2ºC, mostrou com clareza que alguma
coisa estava fora da velha ordem. O país foi tomado pelos lenços verdes,
símbolo da Campanha Nacional pelo Aborto Legal, Seguro e Gratuito. Até o mais
reacionário dos senadores antidireitos e pró-aborto clandestino pôde sentir que
este rio que tudo arrasta não vai parar.
A
maré verde
Tanto
nesse 8A quanto na vigília daquele 13 de junho, quando o projeto foi aprovado
pela Câmara dos Deputados, os arredores à esquerda do Congresso se
transformaram em um espaço e contexto de sororidade, onde milhares de mulheres
desconhecidas encontravam algo em comum, profundamente familiar. O microcosmos
da avenida Callao, entre a avenida Corrientes e a rua Sarmiento, estava repleto
de tendas de diversas organizações, como o Nenhuma a Menos, a Assembleia
Popular Feminista (APF) e a Não Tão Diferentes, organização de mulheres em
situação de rua.
O
movimento de mulheres conseguiu enraizar socialmente o tema da legalização do
aborto. Levou o assunto para a rua, escolas, hospitais e, sobretudo, para
dentro das famílias. Furou o bloqueio da mídia hegemônica e conseguiu pautar o
debate. Desmantelou a separação entre o público e o privado, que sempre se
prestou para reforçar o machismo, politizando a sala de jantar. Fez irromper
uma identidade feminista forte, descentralizada, que alimentou as ações
cotidianas com alegria e energia desmedidas. Daí a pujança do 8A e a convicção
desse verso tão cantado em coro feminino: “Abaixo o patriarcado, que vai cair,
que vai cair”.
A
luta pela legalização do aborto na Argentina é a ponta de um iceberg que tem
por debaixo décadas de organização feminista. A Campanha Nacional pelo Direito
ao Aborto Legal foi gestada nos Encontros Nacionais de Mulheres de Rosário e
Mendoza e lançada oficialmente em 28 de maio de 2005, no Dia Internacional de
Ação pela Saúde das Mulheres. De lá pra cá, o movimento foi incansável no
debate científico-universitário e nas discussões sobre políticas públicas para
mulheres. Construiu um mote claro: “Educação sexual para decidir,
anticoncepcionais para não abortar e aborto legal para não morrer”.
Assim,
a questão do aborto legal entrou na agenda dos direitos humanos e da
democracia, e foi incorporada por diversas outras organizações denominadas
“socorristas”, que cumprem um importante papel de dar assistência a mulheres
que desejam realizar um aborto, enquanto a lei não sai.
“O
compartilhamento de experiências é necessário entre as mulheres que vivenciam
uma gravidez indesejada. As equipes de saúde que prestam informações relevantes
a quem opta por realizar um aborto são criminalizadas”, afirma Yamila,
integrante da Assembleia Popular Feminista, destacando o papel do Protocolo ILE
(Protocolo para a Atenção Integral das Pessoas com Direito a Interrupção Legal
da Gravidez), que foi base para determinar o reconhecimento do aborto por lei
no Brasil: casos de estupro, risco de vida da mãe e anencefalia do feto.
Um
novo cenário
A
grande maré verde contou com a ocupação de escolas por estudantes secundaristas
para exigir a aprovação do projeto, como ocorreu na Escola Superior de Educação
Artística Rogelio Yrurtia, na cidade de Buenos Aires. No colégio Católico
Instituto Padre Márquez os alunos foram obrigados a colar cartazes “pró-vida” e
a resposta foi uma chuva de lenços verdes. Professores encurralados ou
encorajados pela audácia das jovens não tiveram como fugir do debate. O aborto
teve que entrar na pauta escolar. Nas manifestações e diariamente nas ruas é
comum ver meninas jovens com seu grupo de amigas, todas com os lenços – ou pañuelos –
verdes, com argumentos muito claros sobre o que significa a legalização do
aborto na sociedade.
A
linguagem inclusiva também ganhou espaços antes inimagináveis. Cresceu nos
coletivos militantes, em parte do jornalismo, especialmente o contra-hegemônico,
e em círculos literários. Antes com o “x”, de “xs estudantxs”, e agora com o
“e”, de “es menines”, desnuda como a linguagem corrente sedimentou em sua
própria estrutura concepções patriarcais, heteronormativas e binárias. Para
além dos binarismos, a nova linguagem busca transpor os gêneros.
Tudo
isso não seria possível sem a força comunicativa da campanha. Ao contrário do
Brasil, a Argentina não possui um sistema de meios de comunicação tão
concentrado e unidimensional. Seja pela sua tradição mais igualitária e
democrática ou por avanços da lei de meios de comunicação durante o período
kirchnerista, há algum espaço para o dissenso. Exemplos disso são o Página
12, jornal impresso diário com perfil de esquerda; a C5N, uma rede de
televisão privada claramente contrária ao governo Macri, e diversas redes de
rádios com perfil crítico. Mesmo nos canais televisivos do establishment existe
uma tradição de debate aberto entre diversas correntes de pensamento. Tudo isso
somado a uma pujante rede de meios de comunicação alternativos e à difusão do
movimento pelas redes sociais permitiu que a questão ganhasse corpo,
transformando-se em um debate público de massas.
Mulheres
contra os direitos das mulheres
Com
maioria de votos contrários do bloco Cambiemos, do atual governo, a lei foi
rejeitada com 38 votos negativos contra 31 a favor. Como se poderia prever, as mulheres
não são maioria na mesa. Contudo, o corpo do Senado argentino atualmente é
conformado por 30 mulheres e 40 homens, uma relação bastante equilibrada
considerando que a presença de mulheres nas cadeiras altas no âmbito político
normalmente representa uma porcentagem ínfima em comparação aos homens. Enquanto
na Argentina a presença de mulheres representa 41,7% do Senado, no Brasil são
14,8%. A Argentina é um dos poucos países da América Latina que contempla
em maior número mulheres na política, inclusive na presidência do parlamento –
neste caso, quem coloca a Argentina nesse posto é a vice-presidente Gabriela
Michetti, confessamente contrária à lei do aborto. Durante os meses prévios à
sessão que iria presidir, Michetti arriscou manobras para atrasar a votação do
projeto e soltou frases polêmicas sobre a questão do aborto mesmo em casos de
estupro: “Você pode dar depois em adoção depois e fica tudo bem. Há dramas
maiores na vida”.
O
8A foi marcado pela prevalência final das cadeiras representadas em vermelho
nos telões que transmitiam a sessão para a multidão do lado de fora, e o voto
feminino no Senado se dividiu: de 28 mulheres votantes, 14 optaram pelo
“sim” e 14 pelo “não”. As duas senadoras que se abstiveram foram Eugenia
Caltafamo, do partido Unidad Justicialista, do estado de San Luis, que não se
apresentou por estar de licença-maternidade; e a senadora Lucila Crexell, do
Movimiento Popular Neuquino, de Neuquén, que mesmo presente pediu abstenção.
Ela buscava a aprovação de um projeto intermediário que contemplasse a
despenalização, mas não a legalização da prática.
A
maioria das que vetaram o projeto sustentava “argumentos” pouco fundamentados
sobre o início da vida e sobre o conceito de maternidade. Entre afirmações como
“não li o projeto de lei”, proferida pela senadora Cristina López Valverde, de
San Juan, do partido Frente Todos, e que “uma mulher que está em uma gravidez
não desejada precisa de alternativas que não ponham em risco a vida de seu
filho”, da senadora de Tucumán Silvia Elías de Pérez, da Unión Cívica Radical,
a postura em negativa de senadoras mulheres foi decisiva para o resultado no
Senado. Com justificativas tão vazias quanto contraditórias, seus discursos só
parecem levemente menos absurdos do que os de senadores homens que acreditam
poder opinar sobre a gravidez e até sobre o que representa um estupro para uma
mulher. Em um momento inacreditável da sessão, o senador de Salta, Rodolfo
Urtubey, do partido Justicialista, deixou uma multidão chocada com sua
exposição: “O estupro nem sempre representa uma violência contra a mulher. Por
exemplo, nos casos de abuso intrafamiliar. Não é o estupro clássico”. Já se
espalham petições denunciando o senador por apologia ao estupro.
Macrismo
polivalente
Nem
tudo são flores neste processo de ascendência do movimento feminista e de
discussão sobre o aborto legal. A situação se complexifica quando se verifica
que o próprio presidente Maurício Macri foi quem habilitou o debate no
Congresso Nacional em seu discurso de abertura das sessões legislativas deste
ano. Por ironia do destino, um projeto cujo debate legislativo foi barrado
durante os mais de 10 anos de kirchnerismo foi disparado por um governo
neoliberal do tipo Robin Hood às avessas, que promove um ajuste brutal sobre o
povo argentino e inicia mais um ciclo de dependência descarada, com a
predominância dos interesses do setor financeiro e agro-exportador.
Independentemente
dos objetivos íntimos do presidente (promover uma cortina de fumaça para a
crise brutal pela qual passa Argentina; buscar aproximação com um setor das
classes médias liberais e progressistas ou contribuir para um feito histórico
equiparável ao que significou a aprovação do casamento igualitário durante o
governo de Cristina), o fato concreto é que a discussão legislativa do projeto
deu vazão a um processo que já deixou marcas irreversíveis na sociedade
argentina. Essas marcas ultrapassam ainda os limites do país hermano, em
uma repercussão expansiva de uma campanha pela legalização do aborto por toda a
América Latina, que se faz notar especialmente pelo fato de que a Argentina
sequer é o primeiro país a levantar o assunto: o Uruguai mesmo, ali ao lado,
conquistou a aprovação da lei em 2012.
Macri,
com seu pragmatismo neoliberal, fez questão de deixar claro que individualmente
era contra a legalização do aborto. Agora, juntamente com alguns de seus
correligionários do Cambiemos, busca eximir-se de responsabilidade,
afastando-se dos resultados da votação. Tenta ocultar que dos 25 senadores que
compõem o bloco Cambiemos, 17 votaram contra o projeto. Entretanto, a forma
cínica e burlesca como Gabriela Michetti conduziu os trabalhos legislativos,
insultando senadores pró-legalização e comemorando a rejeição do projeto, dá
conta de como sob o macrismo, o liberalismo e o medievalismo da Opus Dei
convivem em harmonia.
Reação
e contrarreação
O
deputado da esquerda trotskista Nicolas Del Caño, quando da sessão que aprovou
a legalização na Câmara dos Deputados disse que “em um Senado dominado
diretamente por governadores feudais do Partido Justicialista, do Cambiemos e
de partidos provinciais, não seria fácil a sanção da lei”. E realmente, após a
aprovação parcial do projeto na Câmara, a reação foi imediata. Luciana Rosende
e Werner Pertot, em minucioso artigo sobre o tema, contam como se deu essa
reviravolta. Segundo as autoras, “a partir de 13 de junho os setores antidireitos
redobraram a aposta. A Igreja assumiu uma posição beligerante, as ONGs
religiosas ativaram seus contatos nos meios de comunicação, aumentaram sua
pressão sobre o governo e sobre o bloco de oposição. E começaram a ser vistos
mais lenços azuis com o lema ‘Salvemos as duas vidas’”. A concertação entre o
conservadorismo das elites provinciais, as ações performáticas do grupos
“pró-vida” e a intelligentsia dos quadros médicos e de juristas da
Universidade Católica e Universidade Austral, esta última da Opus Dei,
foram imprescindíveis para garantir o “não” no Senado.
Entretanto,
a derrota da legalização do aborto abriu o caminho para outro debate. Colocou
na ordem do dia a discussão sobre a laicidade do estado – diferente do
Brasil, a Argentina sequer se declara um Estado laico. Junto aos lenços
verdes surgiram os lenços laranjas da Campanha Nacional pelo Estado Laico, que
diz: “Igreja e Estado Assuntos Separados”. Veio à tona a questão do
financiamento estatal da Igreja Católica e do pagamento dos salários dos bispos
por parte do Estado, ancorados em leis editadas durante a ditadura militar
argentina, por Rafael Videla. Nora Cortiñas, uma das mães da Praça de
Maio, disse sem meias palavras que “durante a ditadura a Igreja não se
importava com as duas vidas, davam choques elétricos na vagina de mulheres
grávidas e a Igreja abençoava os voos da morte”.
Na
linha discursiva dos que votaram pelo “não”, principalmente entre os senadores
homens, há uma perda do que chamam de “paz social”. Ter mulheres nas ruas
pedindo por seus direitos balança as estruturas, provocando receio. Sempre foi
assim – um dos grandes “argumentos” contra o sufrágio feminino era que seria
muito trabalhoso “ensinar às mulheres a importância do voto”, um eufemismo
risível que deixa exposto em carne viva o medo da perda de controle. É que na
ação coletiva as mulheres retiram o patriarcado da sua posição naturalizada e
de perigosa invisibilidade. De repente, o poder masculino aparece como
violência e força bruta. E certamente não é agradável tomar consciência da sua
própria condição de opressor.
Octavio
Salazar, professor de Direito Constitucional da Universidade de Córdoba e autor
do livro El hombre que (no) deberíamos ser, fala que “nós, homens,
temos medo do feminismo porque nos revela coisas de nós mesmos que não gostamos
de conhecer”. Talvez o grande medo que inspira a reação machista é que as
mulheres empoderadas venham a fazer com os homens o que eles sempre fizeram sob
a benção do patriarcado.
Não
se pode parar o vento
A
onda verde se espalhou pela América Latina. A pauta está instalada com uma
força nunca antes vista e a mensagem é clara: a campanha continua. Os lenços
verdes chegaram a diversos países e vêm se espalhando pelo Brasil, onde o tema
já está instalado no Supremo Tribunal Federal, apesar da imprevisibilidade do
resultado do julgamento. As últimas audiências dos dias 3 e 6 de agosto,
presididas pela ministra Rosa Weber, já são vistas como um grande passo.
Dois
dias depois da rejeição da lei, a campanha oficial publicou uma mensagem
exaltando a conquista inédita e histórica de colocar em pauta a problemática
das mulheres e de se fazer ouvir as vozes feministas. Enfatizou a importância
de não votar nos políticos que se abstiveram ou foram contrários ao direito das
mulheres a decidir. A campanha convocou aos chamados “pañuelazos” –
manifestações em que todas levantam seus lenços verdes em um símbolo coletivo
de demanda por uma lei do aborto seguro e gratuito –, na América Latina e no
mundo; e também a que todas estejam presentes no Encontro Nacional de Mulheres,
a acontecer este ano na província de Chubut, no sul do país.
Ao
reforçar a necessidade de um Estado laico, o comunicado joga luz sobre um
assunto profundamente necessário, reforçando a importância dessa campanha,
representada pelos lenços laranjas. Talvez mais ainda no Brasil, onde religião
e política andam cada vez mais juntas. O grito vem das ruas, e como bem se anda
dizendo entre os grupos feministas nesses últimos dias: nunca nada nos foi dado
de mão beijada.
*Fernanda
Paixao e Antonio Ferreira
Fernanda
Paixão é jornalista carioca e analista de redes sociais; é integrante do
Coletivo Passarinho; organizadora do livro "Linguagem, cultura,
reportagem: Uma abordagem sobre publicações, autoria e subjetividade no jornalismo
brasileiro". Antônio Ferreira é advogado trabalhista e militante do
Coletivo Passarinho. O Coletivo Passarinho surgiu em março de 2016, em Buenos Aires , para
combater e denunciar o golpe de Estado em curso no Brasil. Ele abrange
diferentes correntes progressistas e propõe uma luta política, poética e
afetiva.
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