Vídeos mostram agressões a
ativistas quando já dominados pela GNR, que é acusada de não ter identificado
agressores e de manietar uma das ativistas e apagar conteúdo do seu telefone.
Sexta-feira há outra tourada e está convocado novo protesto
“Filho da puta, filho da puta!
Tens alguma coisa de vir para aqui? Não gostas, vai para casa!" Os gritos
ouvem-se durante um curto vídeo filmado na quinta-feira, na praça de toiros de
Albufeira. Nas imagens, um dos corredores que faz a ligação entre a arena e o
exterior. Nele passam três homens, um dos quais de tronco nu, com dizeres nas
costas, que caminha dobrado, algemado, conduzido por um militar da GNR. Durante
o curto percurso, o detido é pontapeado duas vezes, nas costas e no peito, por
dois homens, sem que o militar esboce gesto ou advertência. Um peão de brega,
capa na mão, e um forcado assistem, assim como várias outras pessoas. Ninguém
tenta parar as agressões; ninguém protesta. Passa outro detido, também de
tronco nu com escritos, também agarrado por militar da GNR. Um homem, cabelo
grisalho e camisola escura, aproxima-se a correr e com uma bandarilha desfecha
três golpes no detido, na cabeça e nas costas. A seguir volta para trás,
calmamente, sem que alguém o interpele.
"Stop torture"; "Stop
bullfight"; "Love animals"; "Tourist boycott". São as
palavras de ordem que os detidos escreveram no peito e nas costas, para uma
ação em que um deles, o holandês Peter Janssen, 33 anos, é veterano e diz
dirigir-se aos turistas ("Convencer os aficionados é impossível, não mudam
de posição", explica). Ativista do Vegan Strike Group, grupo de defesa dos
direitos dos animais, repetiu-a em várias praças de touros - fala em 40 ações -
desde 2015: Campo Pequeno, Huelva, Bogotá. Nesta última cidade, em 2016, feriu duas pessoas acidentalmente num salto para arena
que não correu bem: ele próprio partiu um braço.
Expulso da Colômbia pelo feito,
Janssen, que notícias afiançam ser objeto de vários processos por atividades
idênticas, foi em Albufeira acompanhado, na invasão da arena, por dois
ativistas portugueses, Artur Nascimento e Hélder Silva. Invadiram a arena após
a lide do primeiro touro, depois de este ser retirado e quando a cavaleira Ana
Batista se preparava para a volta de triunfo à arena. De imediato perseguidos
por dois militares da GNR e vários outros homens, foram rapidamente apanhados e
levados para fora da praça, sob o aplauso dos espectadores. E, como descrito,
repetidamente agredidos no corredor.
"Vi dois homens a bater numa
mulher"
Mas as agressões não ficaram por
aí. Mónica Gaspar, 42 anos, que gere um restaurante e uma loja veganos (isentos
de qualquer produto animal) em Albufeira, e que se encontrava na rua junto à
praça de touros, viu "cerca de 20 pessoas com paus de madeira, bandarilhas,
etc. a bater nos ativistas e nos agentes. Havia um homem que creio estar ligado
ao toureio a cavalo a incitá-los: "Têm de levar mais, filhos da puta,
morram." Fui dizer para pararem e dois agarraram-me pelos colarinhos,
bateram-me na cara, deram-me pontapés."
Valeu a Mónica um grupo de
lisboetas em passeio. "Vinha com a minha mulher, as minhas filhas e um
casal amigo a passar e vi dois homens a bater numa mulher, a agredi-la
brutalmente, a murro. Iam caindo para cima do carrinho de bebé da minha filha
mais nova, que tem 7 meses, obrigando-me a fugir para o meio da estrada. Deixei
o carrinho com a minha mulher e agarrei o homem, puxei-o para parar de bater na
rapariga." Quem fala é Pedro Pereira, 35 anos, assistente operacional na
Câmara de Lisboa, de férias no Algarve. "Mas aí apareceram vários a
agarrar-me - cheguei a ter quatro à minha volta - e a tentar bater-me. Ainda
consegui desviar-me, tenho um metro e oitenta e sou ágil, mas veio um por trás
que me bateu com um pau e me abriu a cabeça."
A mulher viu quem foi e com o
quê: "Ela acha que era um tipo que estava com os toureiros, porque me
agrediu com uma escova dos cavalos. Mas quando pedimos à GNR, que entretanto
tinha chegado, para ir à praça e ao pé dos camiões dos cavalos tentar
encontrá-lo - ele fugiu depois de me bater -, não se dispuseram a isso."
Pedro acabou a noite no hospital para lhe coserem a cabeça, pagando quase 70
euros pela consulta e curativo. "Não estou nada arrependido, tenho a
consciência tranquila. Vi uma mulher a ser agredida e reagi. Só tenho pena de
não poder identificar a pessoa que me partiu a cabeça."
"Tirem-me daqui esta gaja senão
prendo-a"
Não há, que se saiba, imagens das
agressões na rua. Carla Sananda, 41 anos, poderá ter ou não filmado e
fotografado essas cenas - não o revela ao DN -, mas acusa a GNR de lhe ter
apagado o conteúdo do telefone. Esta professora de ioga, mulher de um dos
ativistas detidos (Artur Nascimento), comprou ingresso para a tourada para
assistir à ação e registá-la. "Tirei fotos e filmei. Aquilo ficou muito
feio. Eles [os ativistas] ficaram muito maltratados, apesar de os polícias
terem tentado protegê-los. Aí foram impecáveis, um GNR até ficou com dedos
partidos por tentar defendê-los."
Os elogios à polícia param aqui,
porém. "Quando cheguei à rua estavam muitas pessoas, pró-tourada, muito
exaltadas. Afastei-me um pouco e estava a ligar para uma amiga a tentar
perceber onde ela estava quando uma mulher ligada à empresa da praça me tirou o
telefone e disse aos GNR - entretanto tinham chegado reforços - que eu estava a
filmar. E um deles em vez de me perguntar alguma coisa fez-me logo uma chave ao
pescoço. Veio outro que me dobrou, pôs-me a cabeça nos joelhos. A seguir um
deu-me o telefone de volta, dizendo que tinha apagado tudo." Carla, que se
descreve como tendo um metro e 54 e 47 quilos, conta que respondeu ao militar:
"Não pode fazer isso, sei os meus direitos." Este terá começado a
empurrá-la com o peito, altura quem ela lhe terá perguntado "mas é um
militar ou um civil?" Aí, continua a narrativa de Carla, o polícia tê-la-á
tratado por tu e dito "tirem-me daqui esta gaja senão prendo-a".
"Hematomas na cabeça e no
pescoço, luxação no ombro." Carla lê ao telefone o relatório médico sobre
as marcas da ação policial. Vai, assevera, apresentar queixa contra a mulher
que lhe tirou o telefone e contra a GNR por lho ter apagado e pela brutalidade
de que foi alvo. "Nunca na vida estive numa situação parecida. Fez-me
sentir que se deve formar a GNR para proteger as pessoas, não para agredir.
Descontrolaram-se completamente. Estava à espera de que me protegessem ou pelo
menos falassem comigo de forma diferente. Senti-me abusada."
Contactado pelo DN, que lhe
remeteu uma série de perguntas por e-mail, o Comando Nacional da GNR não
esclareceu quantos efetivos tinha na praça de touros e em que tipo de serviço
(oficial ou gratificado), quantos compareceram em reforço, nem se identificou
agressores. Quanto ao número de queixas apresentadas, refere apenas a de
"uma manifestante, que não esteve envolvida na invasão do recinto", a
qual "apresentou queixa por ofensas à integridade física contra
desconhecidos" (refere-se a Mónica). E sumariza assim o sucedido: "No
decorrer do evento de tauromaquia verificou a existência de confrontos físicos
entre aficionados e ativistas, o que obrigou à intervenção da GNR, no sentido
de garantir a integridade física dos manifestantes. O Comando Territorial de
Faro mobilizou os meios necessários para repor a ordem pública."
Confirmando que "no decurso
desta ocorrência, e no momento em que se garantia a proteção de um dos
invasores, um militar sofreu ferimentos numa das mãos", sobre a situação
relatada por Carla Sananda o relato do Comando é este: "No exterior do recinto,
a GNR foi chamada a intervir devido a um conflito existente entre duas
mulheres, motivado pela posse indevida de um telemóvel, tendo o mesmo sido
recuperado pelos militares e devolvido à legítima proprietária." As
perguntas do DN sobre a agressão de que Carla diz ter sido vítima por parte dos
agentes, assim como sobre a ameaça de detenção e o alegado apagar do conteúdo
do telefone por um deles não mereceram qualquer comentário. Também a questão
"há alguma circunstância em que a GNR considere poder legalmente apropriar-se
de um telefone de um cidadão e apagar conteúdos?" ficou sem resposta.
"Aficionados mostraram
grande tolerância"
O DN contactou a empresa que gere
a Praça de Toiros de Albufeira, mas esta remeteu qualquer esclarecimento para o
porta-voz da Protoiro/ Federação Portuguesa de Tauromaquia, Hélder Milheiro.
Este disse ao DN ter assistido ao espetáculo sentado "ao lado da
empresária da praça", comunicando a sua visão do ocorrido: "O que
aconteceu foi uma ação provocatória de um grupo vegano de assalto. Este é um
grupo sediado em Espanha pago por fundos internacionais de origem desconhecida
e que se dedica a ações deste tipo: provocar ações de distúrbio e apresentar-se
como vítimas." Como assim? "Têm o objetivo de provocar alguma reação
menos adequada, porque estamos a falar de atitudes provocatórias, num contexto
de boicote." E terá sido o caso? "Não, os aficionados deram mostra de
grande tolerância e respeito."
Há imagens que mostram os
ativistas, já algemados, a ser agredidos dentro da praça. "Lamentamos
qualquer excesso que tenha acontecido. A existirem agressões lamentamos e
reprovamos." Mas estando presente não viu nada excessivo? Não ouviu falar de
agressões? Houve até a necessidade de chamar reforços policiais. "Fiquei
na bancada e a empresária também. Aquilo que recomendamos quer aos aficionados
quer aos empresários é que reajam serenamente." Acha que houve essa
serenidade? "Não creio que tenha havido a serenidade desejável. Mas
estamos a falar de um crime semipúblico." A que crime se refere? "A
empresa apresentou queixa por danos e porque houve um número significativo de
pessoas que saíram e quiseram o dinheiro do bilhete de volta." E como qualifica
a ação de quem agride pessoas que estão incapazes de se defender e sob guarda
policial? Não é crime? "Não sou jurista para saber se é crime. É
reprovável e inadmissível." E não será cobarde? "Não vou estar aqui a
usar adjetivos. Se algum excesso aconteceu é reprovável. Mas não vou colocar
aqui de repente estes mercenários internacionais como pequenas vítimas.
Trata-se de uma ação provocatória e atentatória dos direitos dos outros
cidadãos."
Obviamente que as ações do Vegan
Strike Group são fora da lei, reconhece Mónica Gaspar. "Estar a invadir
espaço alheio e desestabilizar vai ter uma reação. E tudo o que gera violência
não é bom. Não é assim que devemos mostrar o nosso ponto de vista. Devemos agir
dentro da lei e com respeito pelos outros. Eu faço ativismo todos os dias no
meu restaurante, nas minhas palestras. E tenho família no Montijo e em
Alcochete, eles gostam de ver touradas e eu respeito e eles respeitam-me a mim."
Militante da causa animal há
muito e integrada no movimento antitourada "há cerca de dois anos",
não é a primeira vez que Mónica se sente em perigo. No ano passado,
numa manifestação à porta da mesma praça, lançaram um petardo na sua direção.
"Ainda não sei nada dessa queixa. Quando a fui apresentar um agente da GNR
tentou dissuadir-me, insistiu que não ia dar em nada." Suspira. "E
desta vez quando apresentei queixa disseram-me que não tinham a identificação
do senhor que me ajudou, o Pedro Pereira. Vi-o ser identificado por uma agente,
que tomou nota dos dados dele, mas perderam-nos. Agora vou ter de fazer um
aditamento à queixa. Acho isto incompreensível."
E não é tudo: "Quando disse
que queria ir ao interior da praça com escolta para tentar identificar quem me
bateu responderam que era perigoso e recusaram. Aliás, nem identificaram as
pessoas que bateram no senhor que me acudiu." Como interpreta isso? Hesita. "Há poderes aqui em Albufeira, sabe? É complicado. Amanhã vai
haver outra tourada e vamos fazer um
protesto. Estive a falar com a GNR e garantiram-me que vão tomar medidas e
que é seguro eu ir. Disseram-me também que se me acontecer algo ou à minha loja
para os avisar. Portanto depois do mal aviso-os? Respondi que se calhar vou
pedir licença de porte de arma."
Fernanda Câncio | Diário de Notícias
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