Martinho Júnior | Luanda
1- No dia 13 de Setembro de 2018,
na Sala de Reuniões do Estado-Maior do Exército das FAA em Luanda, numa
iniciativa conjunta do Estado-Maior das FAA com a Fundação António Agostinho
Neto, foi dignamente homenageado aquele que foi o primeiro Comandante-em-Chefe
duma Angola finalmente libertada, independente e soberana!
Além da presença da Presidente da
Fundação António Agostinho Neto, Maria Eugénia Neto, ela própria, pela sua
vivência enquanto esposa e viúva, merecedora da homenagem, esteve presente o
general Moracén Limonta, herói de Cuba e um dos instrutores enviados pelo
Comandante Fidel a fim de instruir as guerrilhas do MPLA no seguimento da
visita do Comandante Ernesto Che Guevara à sede do MPLA em Brazaville a 2 de
Janeiro de 1965, alguns membros Adidos Militares das Embaixadas acreditadas na
capital angolana, o general Sá Miranda, Chefe do Estado-Maior do Exército e
outros Altos dignitários das Forças Armadas Angolanas, entre oficiais generais,
superiores, capitães e subalternos.
A convite da Fundação António
Agostinho Neto, o emérito professor Fernando Jaime, meu camarada e amigo, foi o
conferencista do dia, nos curtos 45 minutos de intervenção que deram apenas
para uma introdução, comunicativa e vibrante, à vida e obra de António
Agostinho Neto, que para melhor compreensão da audiência foi dividida em 5
fases, do seu nascimento à morte.
O próprio conferencista declarou
com justa razão e a propósito, que no mínimo seriam precisas 5 horas para a
abordagem à altura do desafio da decifragem da vida e obra de António Agostinho
Neto e dos seus ensinamentos e memórias!...
2- A saga da libertação por via
armada foi legitimamente iniciada em 1794, quando os escravos no Haiti (na
altura haviam 465.000 escravos na ilha) se revoltaram contra os seus amos e foi
possível a independência do mais populoso país membro do que constitui hoje o
CARICOM, (“Comunidade das Caraíbas”) em 1804, com o vexame da derrota, triste e
inglória, das tropas napoleónicas.
Essa é uma das gestas narradas
por Eduardo Galeano em “Haiti, país ocupado”:
… “Consulte qualquer
enciclopédia. Pergunte qual foi o primeiro país livre na América. Receberá
sempre a mesma resposta: os Estados Unidos. Porém, os Estados Unidos declararam
sua independência quando eram uma nação com seiscentos e cinquenta mil
escravos, que continuaram escravos durante um século, e em sua primeira
Constituição estabeleceram que um negro equivalia a três quintas partes de uma
pessoa.
E se procuramos em qualquer
enciclopédia qual foi o primeiro país que aboliu a escravidão, receberá sempre
a mesma resposta: a Inglaterra. Porém, o primeiro país que aboliu a escravidão
não foi a Inglaterra, mas o Haiti, que ainda continua expiando o pecado de sua
dignidade.
Os negros escravos do Haiti
haviam derrotado o glorioso exército de Napoleão Bonaparte e a Europa nunca
perdoou essa humilhação. O Haiti pagou para a França, durante um século e meio,
uma indenização gigantesca por ser culpado por sua liberdade; porém, nem isso
alcançou. Aquela insolência negra continua doendo aos amos brancos do mundo.
Sabemos muito pouco ou quase nada
sobre tudo isso.
O Haiti é um país invisível”…
3- Essa saga esteve por dentro do
espírito de luta armada contra a colonização na América Latina com muitos dos
escravos libertos a integrarem e fortalecerem as forças independentistas, nas
Caraíbas, na América Central e na América do Sul, uma inspiradora fonte em
cujas águas foi beber a revolução cubana, onde vai beber a luta pelo socialismo
bolivariano na Venezuela e uma fonte inspiradora para a decisão do Comandante
Fidel, no sentido de aliar-se aos movimentos de libertação em África, apenas
dois anos decorridos após o triunfo da revolução em Cuba (1961)!
A história dessa saga emergiu
quase desconhecida desde finais do século XVIII até hoje, com África a
manter-se na generalidade arredia do conhecimento dela por que o poder
dominante se nutriu dos interesses e auspícios daqueles que forjaram as
doutrinas, as filosofias e as ideologias da “civilização cristã ocidental” e
nela, as da “Guerra Fria”!
São esses filiados e agentes das
doutrinas, filosofias e ideologias dominantes, que procuram apagar, inibir ou
subverter o“inconveniente” dos que assumem vivencialmente a história no
âmbito das sensibilidades inerentes aos povos mais escravizados, colonizados e
oprimidos da Terra ao longo dos últimos cinco séculos e inexoravelmente a
história das mais legítimas revoluções que têm animado a vida em nome da
humanidade, particularmente no hemisfério sul do planeta!
O primeiro Comandante-em-Chefe
das então Forças Armadas Populares de Libertação de Angola, FAPLA, o primeiro
Comandante-em-Chefe duma Angola libertada, independente e soberana, António
Agostinho Neto, foi um comandante-estratega maior da Luta de Libertação em
África, de Argel ao Cabo da Boa Esperança, dando continuidade no lado leste do
Atlântico Sul a essa saga de séculos!
Ele integrou a luta e deu
continuidade a Toussaint l’Ouverture, a Dessalines, a José Marti, a Simon
Bolivar, a Sandino, a Ben Bella entre outros comandantes-estrategas que
iluminaram o sul escravizado, colonizado, oprimido e vilipendiado!...
Entre seus pares contemporâneos,
entre Fidel, Che Guevara, Amílcar Cabral, Samora Machel, Robert Mugabe, Sam
Nujoma, Oliver Tambo e seus seguidores, António Agostinho Neto foi um dos que
geraram a capacidade de luta contra a internacional fascista cujo núcleo duro se
instalou no sul do continente com o “apartheid”, assim como contra todos
os preconceitos de seus agenciados apêndices que frutificaram no e a partir do
Exercício ALCORA e das suas sequelas até hoje!
“Na Namíbia, no Zimbabwe e na
África do Sul, está a continuação da nossa luta”, proclamava o
Comandante-em-Chefe de Angola na segunda metade dos anos 70 do século XX, por
que “somos milhões e contra milhões ninguém combate”, advertia e
complementava recorrendo clarividente a toda a sensibilidade histórica e humana
própria dum comandante-estratega e mobilizador!
De facto, se a luta contra o
colonialismo na Argélia inspirou a continuação da luta contra o fascismo na
Europa e a luta armada de libertação nacional até hoje em África (ela continua
no Sahara) contra o colonialismo e o “apartheid”, ela só poderia ser
levada a cabo, com comandantes-estrategas ao nível de Amílcar Cabral, de
Agostinho Neto, de Samora Machel, de Sam Nujoma, de Robert Mugabe, de Oliver
Tambo e de tantos outros, que animados das capacidades vitais das filosofias
marxistas-leninistas, deram corpo vibrantemente à continuação da saga da
libertação desta feita em África, com a aliança propiciada por Cuba
revolucionária sob a liderança do Comandante Fidel e com o concurso ao génio
inspirador e directo empenho do Comandante Che Guevara!...
4- A figura de António Agostinho
Neto como líder e comandante-estratega da continuada saga da legítima luta de
libertação contra a escravatura, o colonialismo, o “apartheid” e suas
sequelas, inclusive as vividas nas contradições internas do MPLA mais evidentes
desde Viriato da Criz a Nito Alves, é por si uma inspiração patriótica que deve
ser honrada na cultura e vivência de sua memória e ensinamentos!
Ela deve estar bem presente por
que não só o imperialismo ganhou novos e poderosos métodos, formas e fórmulas,
invadindo sociológica, psicológica e antropologicamente os vínculos comuns da
globalização por via dos interesses de ingerência e de manipulação na América
Latina e em África, quer por parte do capitalismo financeiro transnacional,
quer por parte do capitalismo produtivo, quer por parte da hegemonia unipolar,
em tudo tirando partido da revolução de novas tecnologias sob sua égide, mas
também por que a advocacia do elitismo subjacente a esse poderoso domínio de
cariz neocolonial, dando continuidade a ideologias que no tempo do império
britânico se distendiam do Cabo ao Cairo, estão deliberadamente presentes em
África e sobretudo na África Austral, onde se fazem sentir com vigorosos e por
vezes provocadoramente atraentes impactos sobre seus povos e estados.
Nesse sentido António Agostinho
Neto, falecido prematuramente a 10 de Setembro de 1979, enquanto líder e
Comandante-em-Chefe ultrapassa-se ao seu desaparecimento físico e chega até
hoje com seus seguidores, como um desafio enorme e incontornável face à
conjuntura assimétrica, desigual e injusta que se oferece a toda a humanidade
de há cinco séculos a esta parte!
Essa tem sido também a minha tão
incompreendida saga pessoal desde aqueles anos de 1969 e 1970, quando
frequentei as universidades portuguesas e comecei a forjar a minha própria
consciência crítica, materialista-dialética, legitimada pela história dos
escravos, dos colonizados e dos oprimidos de todo o mundo, onde não tem lugar a
mentalidade formatada pelo domínio da hegemonia unipolar contemporânea, nem a
história forjada pelos mentores de guerras psicológicas, por tabela da “Guerra
Fria”!
Não foi de estranhar que em 1986,
a “oficial” subversão (em termos de guerra psicológica), do meu
empenho enquanto oficial da Segurança do Estado, tivesse merecido a
interpretação institucional de alguns que, ao invés de balancear justamente o
meu contributo contra um tráfico ilícito de diamantes que dilacerava a economia
de Angola, interpretaram levianamente como se estivesse afinal a fazer um “golpe
de estado sem efusão de sangue”, em relação ao qual ainda hoje se desconhece o
chefe, quando isso viria a contribuir para que a subversão armada de Savimbi
ganhasse no sector dos diamantes “asas” de que, de outro modo, jamais
teria ganho!...
Tenho toda a legitimidade em
relação à justiça que recai sobre a minha própria vida, que “a história me
absolverá”!
Imaginam quantos sacrifícios por
causa desse meu empenho imprescindível à alimentação de minha consciência
crítica, ao longo de desertos de várias décadas, não foram impostos à minha
família e sobretudo, aos meus próprios e inocentes descendentes?...
5- O MPLA alcançou os objectivos
do seu Programa Mínimo, quando em Angola, a 11 de Novembro de 1975, António
Agostinho Neto proclamou a independência nacional…
O MPLA alcançou a vitória noutro
objectivo programático de primeira grandeza na libertação africana, quando
acabou o“apartheid” em 1991…
O MPLA alcançou a vitória sobre
muitas das sequelas coloniais e do “apartheid” em 2002, sob o olhar
silencioso de António Agostinho Neto, por seu turno inspirado no olhar
silencioso de Lénin…
Mas o MPLA está longe de realizar
alguns dos principais objectivos do seu próprio Programa Maior, na longa luta
que há a levar por diante contra o subdesenvolvimento e na trilha duma
geoestratégia para um desenvolvimento sustentável, animado da mesma lógica com
sentido de vida cuja saga nascida com a revolução dos escravos no Haiti
inspirou a luta armada de libertação na América Latina e em África,
multiplicando os Vietname, algo que tem a ver com a decisão do próprio
renascimento de que África tanto carece!
Quando iluminados pela história
os angolanos assumem em paz que “o mais importante é resolver os problemas
do povo”, face aos impactos da globalização gerida pelos interesses
tentaculares da aristocracia financeira mundial tenho verificado quão
vulneráveis eles, antropológica, social e psicologicamente afinal estão, por
que a consciência histórica, numa perspectiva materialista-dialética, pouco ou
nada tem a ver com a mentalidade que lhes tem sido injectada e formatada de
2002 até hoje, quando a paz deveria corresponder às vitórias da sensibilidade
socialista em tempo de guerra!
Honrar a memória e os
ensinamentos do líder e comandante-estratega António Agostinho Neto, merece
enquanto permanente desafio, uma outra resposta de todos nós filhos de África e
da América Latina e, desde logo, há que reconhecer num plano decisivo e
ultrapassando todas as guerras frias consubstanciadas na permanente guerra
psicológica em curso nos nossos dias, a história incontornável da saga da luta
que acabou com a escravidão, com o colonialismo e com o “apartheid”, que
já vai a caminho de dois séculos e meio, desde 1804 com a independência do
Haiti!
Há que reconhecer em todas as
suas implacáveis transversalidades antropológicas, sociológicas e psicológicas,
que não se levou de vencida o que à barbárie neocolonial indexada ao império da
hegemonia unipolar diz respeito!
A aristocracia financeira mundial
faz prevalecer de forma avassaladoramente dominante e por via de múltiplas
acções de tão persuasiva quão continuada guerra psicológica, a proficuidade
desse domínio em nossos dias, algo que lhe dá imensos lucros explorando
matérias-primas indispensáveis às indústrias transnacionais e mão-de-obra
barata quase ao nível da escravidão, por que os povos africanos não alcançaram
patamares de educação, de saúde e de desenvolvimento sustentável satisfatórios
para assumir o indispensável para se poderem catapultar as culturas a inscrever
nas imensas potencialidades do seu próprio renascimento!...
A LUTA CONTINUA!...
Martinho Júnior - Luanda, 17 de Setembro de 2018
Imagens:
Duas fotos recolhidas por mim no
acto de homenagem em 13 de Setembro de 2018, ao primeiro Comandante-em-Chefe de
Angola libertada, independente e soberana, na Sala de Reuniões do Estado-Maior
do Exército das FAA em Luanda, numa iniciativa conjunta com a Fundação António
Agostinho Neto.
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