Paulo Tavares | Diário de Notícias
| opinião
Atravessei neste verão boa parte
do sul dos Estados Unidos. No rádio do carro fui escutando (a espaços porque a
família não tem culpa dos meus vícios) aquela que tinha sido a minha companhia
quase constante durante uma outra viagem, de trabalho, há cerca de dois anos e
meio, durante as primárias na Carolina do Sul - os talk shows da alt-right.
Estes espaços de catequização da
direita radical, nacionalista e defensora da supremacia branca são eficazes a
fornecer argumentos a boa parte da base que elegeu Donald J. Trump e, aos meus
ouvidos, estranha e repulsivamente sedutores.
Como? Aquelas horas a fio de
conversa, de factos duvidosos e teorias da conspiração debitadas num tom entre
a indignação e o pânico pelo iminente fim do mundo deixam-nos espreitar para o
outro lado. Abrem uma janela. E não se trata de vertigem pelo abismo, eu não
podia estar mais longe, mas não deixa de ser interessante ver o mundo -
sobretudo os EUA - através daquelas lentes. Ver o mundo ao contrário.
E como tanto mudou desde
fevereiro de 2016... Para lá das teorias da conspiração, que são basicamente as
mesmas ou variantes das que então ouvi, há agora uma coragem que não existia.
Qualquer dos hosts, dos animadores desses talk shows, não hesita
em dizer ao que vem - defender o que dizem ser a ordem natural e histórica das
coisas na América, proteger a união da invasão de imigrantes, etc. É o negócio
do medo, da insegurança, do ódio ao diferente. Agora, quase dois anos depois da
eleição de Trump, tudo é muito mais assumido, muito mais claro. Como Obama
lembrou nesta sexta-feira no discurso que marcou a entrada do ex-presidente na
campanha para as eleições de novembro, na Universidade de Illinois, "a
história já nos mostrou o poder do medo".
Espreitar para dentro de uma
bolha que não a nossa é útil. Ver, por exemplo, a diferença de tratamento
noticioso entre o assassínio de Mollie Tibbetts, uma jovem de 20 anos que terá
sido morta em Brooklyn, Iowa, por um imigrante mexicano ilegal em julho e o
ataque a um bar de gaming em Jacksonville, Florida, onde um jovem
branco, David Katz, de 24 anos, com um longo historial de perturbações mentais,
matou dois jogadores, feriu outros dez e depois suicidou-se, é revelador. Os
apelos do pai de Mollie Tibbetts, para que a morte da filha não fosse
politizada ou usada como argumento contra a entrada de imigrantes nos EUA,
foram ignorados e o caso alimentou dias de discurso de ódio contra imigrantes
ilegais, sobretudo os vindos de south of the border, do México e de outras
paragens na América Central. Sobre o tiroteio de Jacksonville, executado por um
jovem doente mental que comprou legalmente duas armas (calibres 9 mm e .45) e centenas de
munições, nem uma palavra de debate ou indignação. A notícia passou pelas horas
certas, pelos noticiários, brevemente, mas nunca a ouvi discutida nos fóruns e
nos talk shows de Sean Hannity e companhia.
Este ódio é essencialmente
gratuito e tem muito pouco de racional. Não houve cidade ou terriola por onde
passasse - e corri a costa leste entre Nova Iorque e o extremo sul dos EUA -
onde boa parte dos restaurantes, lojas ou estações de serviço não tivessem um
cartaz ou um papel bem visível a pedir trabalhadores. Já no ano passado, em
reportagem no vale de São Joaquim na Califórnia, tinha escutado de agricultores
e empresários portugueses e lusodescendentes um lamento: "Precisamos de
imigrantes para trabalhar, se parar o fluxo, se fecharem as fronteiras, ficamos
sem mão-de-obra."
Voltando a ligar o rádio, concluo
que escutar a bolha do outro lado, com o debate político aceso numa altura em
que a América caminha para eleições intercalares que podem virar o Congresso em
novembro, reforçou uma convicção. Um eventual processo de impeachment, de
destituição de Donald Trump - que só poderá acontecer com outra maioria no
Congresso - não pode acabar bem. O atual presidente não vai cair sem dar luta,
sem tentar convencer as suas bases de que está a ser alvo de um golpe e há
demasiadas armas nas mãos de gente muito ressentida, com mau perder e,
sobretudo, muito mal informada.
Já não será grande notícia dizer
que a América está cada vez mais dividida. Mas, nas últimas milhas da viagem, a
caminho do aeroporto de Miami, conduzindo rumo ao norte na US1 Dixie Highway
alguns dias depois de o senador John McCain ter morrido, tive exemplos dessa
divisão a desfilar à beira da estrada. Bastou contar as bandeiras. Umas a meia
haste e outras no topo dos postes. Não arrisco um resultado exato, mas diria
que deu empate. Mesmo depois da ordem tardia da administração para que todos os
edifícios públicos colocassem a bandeira a meia haste, emitida dias antes,
ainda muitos resistiam à homenagem oficial. Em relvados, postes ou varandas
particulares era ainda mais visível a resistência a essa despedida. Quando a
morte de uma figura como McCain não consegue ser consensual, temos a prova do
algodão de que algo de profundamente errado se passa na maior democracia do
mundo. Não é que precisássemos do teste, mas a crueza das imagens, das
bandeiras, foi mais poderosa do que as notícias dos últimos dois anos.
E para quem ache que nada disto
tem que ver com o que por aqui se passa, é importante que não nos julguemos
imunizados. Há uns tempos, lembrei aqui um estudo que revela sinais de que a
Portugal só falta mesmo quem comece a trabalhar a matéria-prima. O campo está
livre para um qualquer populista.
Depois há a qualidade do nosso
debate político. Deixo aqui dois exemplos dos últimos dias: os argumentos
absolutamente divisivos e descolados da realidade orçamental com que foi
analisada e criticada a proposta de baixar os preços dos passes sociais em
Lisboa e, num outro campeonato, as falsas premissas com que se noticiou que o Estado
tinha "ficado" com metade dos apoios do Fundo Solidário Europeu
enviados para Portugal na sequência dos incêndios do ano passado em Pedrógão.
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