De um lado, um democrata de
provas dadas; do outro, um antidemocrata de convicções assumidas. A escolha é
simples e é clara.
Francisco Assis | Público | opinião
Com tantas e tão importantes
coisas a ocorrerem na Europa, sinto-me
impelido a escrever, uma vez mais, sobre o Brasil. Por estes dias, que
correm tumultuosos e quase insanos, não é só o destino imediato do seu país que
está nas mãos do povo brasileiro. É algo bem mais vasto. Nem sempre é fácil
destrinçar a linha, por vezes muito ténue, que separa a civilização da
barbárie. O próprio movimento civilizacional engendrou historicamente múltiplas
formas de barbárie. Há, porém, ocasiões em que essa demarcação se pode
estabelecer com absoluta nitidez. Quando assim é, tudo se torna simultaneamente
mais simples e mais dramático. Conhecemos alguns episódios da história
europeia, penosamente trágicos, em que facínoras de índole antidemocrática e
antiliberal se guindaram ao poder por via do voto popular. Não ignoramos o que
daí resultou. É por isso mesmo que, no próximo domingo, os brasileiros terão de
fazer uma escolha de consequências verdadeiramente globais. O triunfo de um
celerado, cultor da violência, apólogo do liberticídio, da supressão dos
direitos humanos, da erradicação do pensamento divergente, repercutir-se-ia
muito negativamente por toda a humanidade.
A democracia é o regime da
palavra: da palavra dialógica, da palavra como expressão de um conceito, como
argumento, como forma de persuasão. É por isso que os debates são tão
importantes num regime democrático. A recusa em debater é ao mesmo tempo
manifestação de medo e de arrogância. Quem foge aos debates furta-se a um dever
elementar da disputa democrática e revela quão impreparado está para o
desempenho de qualquer função pública. Não é por acaso que os ditadores fecham
os parlamentos, eliminam a imprensa livre e perseguem as vozes discordantes. Ao
recusar-se a participar em qualquer debate com o seu adversário, Bolsonaro
exibe, de modo absolutamente transparente, a sua verdadeira índole: a de um
homem que se recusa a respeitar as regras básicas de um regime democrático.
Nos últimos dias, o candidato de
extrema-direita brasileiro não se limitou a fugir à discussão directa e frontal
no espaço público, como era seu dever. Fez questão de recordar-nos quem é.
Declarou, entre outras coisas, que “os
marginais vermelhos serão banidos da pátria”, que “ou saem ou vão para a
cadeia”, que Fernando Haddad “vai também, não para fazer uma visita [a Lula],
mas para ficar alguns anos”, e que, uma vez que Haddad “gosta tanto dele”,
remata, “vão apodrecer os dois na prisão”.
Não é possível ignorar estas
afirmações nem fazer de conta que elas verdadeiramente não querem dizer o que
dizem. É por demais evidente que a eleição de uma personagem desta natureza
significa abrir uma porta para a instalação de um regime de permanente
violência, a qual aliás já se tem vindo a manifestar um pouco por todo o país.
Um medo difuso percorre a sociedade brasileira.
Perante isto, são
incompreensíveis as reservas que algumas personalidades oriundas do espectro
político da direita tradicionalmente liberal e democrática continuam a colocar à candidatura de
Fernando Haddad. É desde logo inadmissível que se pretenda estabelecer
qualquer paralelismo entre a governação do PT e tudo quanto se tem passado na
Venezuela. O PT governou o Brasil durante 13 anos, na adesão integral às regras
constitucionais, sem interferir na autonomia do poder judiciário, jamais pondo
em causa a liberdade de imprensa e garantindo o respeito por todos os
princípios constitutivos de um Estado de Direito democrático. Com o PT nunca
ocorreu nada de remotamente parecido com o que infelizmente hoje se observa na
Venezuela. Tão-pouco as administrações petistas levaram a cabo políticas de
estatização económica, de perturbação do normal funcionamento do aparelho
produtivo ou de confisco arbitrário da propriedade privada. Só por profunda
desonestidade se pode dirigir ao Partido dos Trabalhadores uma crítica dessa
ordem.
Também não colhe a tese de que o
PT aumentou a conflitualidade política e social no país. Essa já existia há
muito tempo, é fruto das inenarráveis desigualdades sociais e económicas, que
aliás o PT combateu com algum sucesso. A violência que caracteriza a sociedade
brasileira não é o resultado de uma governação que sempre visou promover o
reforço da igualdade, da tolerância e da coesão, é antes o inevitável produto
dos múltiplos processos de segregação que lamentavelmente continuam a
prevalecer no país.
É relativamente ociosa a
discussão sobre saber se Bolsonaro preenche ou não integralmente os requisitos
necessários para poder ser etiquetado de fascista. São mesmo caricatos alguns
exercícios de carácter quase escolástico que visam ilibá-lo desse tipo de
suspeita. Para alguns autores, a designação de fascista só pode ser aplicada
num contexto de tal pureza e rigidez doutrinária que provavelmente nem ao
próprio Mussolini assentaria na perfeição. O fascismo seria assim uma espécie
de abstracção teórica, insusceptível de concretização histórica. Deixemo-nos
desses pruridos terminológicos pouco sérios. É óbvio que Bolsonaro, pelo que
diz e representa, se enquadra na figura de um proto-fascista.
Seja como for, o que estará em
causa no próximo domingo é uma disputa que não compreende nenhum tipo de
ambiguidade: de um lado, um democrata de provas dadas; do outro, um
antidemocrata de convicções assumidas. A escolha é simples e é clara, e perante
ela não há meio-termo possível. Como dizia Miguel de Unamuno, “há momentos em
que silenciar é mentir”.
*Eurodeputado do PS
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