Thierry Meyssan*
As eleições dos EUA a
meio-mandato foram interpretadas pelos grandes média em função da clivagem
partidária Republicanos/Democratas. No entanto, prosseguindo a sua análise da
evolução profunda do tecido social, Thierry Meyssan vê nelas o nítido recuo dos
Puritanos face aos Luteranos e aos Católicos. O realinhamento político de
Donald Trump está em vias de ser bem sucedido como, antes dele, foi o de
Richard Nixon.
Durante as eleições intercalares
dos EUA, os eleitores foram chamados a pronunciar-se para renovar, em bloco, a
totalidade de membros da Câmara dos Representantes federal e um terço dos
membros do Senado federal. Além disso, a nível local, eles votaram para 36
Governadores, providos de muitas outras funções locais, e responderam a 55
referendos.
Estas eleições são consideradas
muito menos mobilizadoras do que as presidenciais. Os politólogos dos EUA não
se interessam muito pela taxa de participação, na medida em que é possível
participar apenas em algumas dessas eleições agrupadas e não em outras.
Enquanto, desde o fim da Guerra Fria, a taxa de participação na eleição presidencial se situa entre 51 e 61% (com a excepção do voto para o segundo mandato de Bill Clinton, que não reuniu mais do que uma minoria de eleitores), a das eleições intercalares é da ordem de
Aqueles que analisam os
resultados das eleições, tendo em vista prever as carreiras dos candidatos,
salientam as clivagens partidárias. Desta vez, a Câmara dos Representantes será
maioritariamente Democrata e o Senado de maioria Republicana. Esta contagem
permite, por exemplo, antecipar a margem de manobra do Presidente em relação ao
Congresso. No entanto, na minha opinião, não permite de nenhum modo compreender
a evolução da sociedade norte-americana.
Durante a campanha presidencial
de 2016, um ex-democrata, Donald Trump, apresentou-se à candidatura do Partido
Republicano. Representava uma corrente política ausente da paisagem dos EUA
desde a demissão de Richard Nixon: os “jacksonianos”. A priori, não tinha
nenhuma chance de obter a investidura Republicana. Ora, ele eliminou, um por
um, os seus 17 concorrentes, foi investido e ganhou a eleição face à preferida
das sondagens, Hillary Clinton.
Os “jacksonianos” (do nome do
Presidente Andew Jackson, 1829-1837) são defensores da democracia popular e das
liberdades individuais, tanto face ao poder político como ao económico. Pelo
contrário, a ideologia então dominante, tanto no Partido Democrata como no
Partido Republicano, era a dos Puritanos : ordem moral e imperialismo.
Durante esta campanha, eu havia
observado que a subida de importância de Donald Trump marcava a ressurgência de
um conflito fundamental : de um lado, os sucessores dos «Pais Peregrinos» (do
original “Pilgrim Fathers”- ndT) (os Puritanos que fundaram as colónias
britânicas das Américas), e do outro, os sucessores dos imigrantes que se
bateram pela independência do país [2].
A primeira componente histórica
dos Estados Unidos (os Puritanos) entendia criar colónias com um estilo de vida
«puro» (no sentido calvinista do termo) e prosseguir a política externa da
Inglaterra. A segunda (os Anglicanos, os Luteranos e os Católicos) fugia da
miséria, de que era vítima na Europa, e esperava triunfar pelo resultado do seu
trabalho.
Estes dois grupos tinham
encontrado um consenso em torno da sua Constituição. Os grandes proprietários
fundiários que elaboraram a lei fundamental explicaram, longamente, querer
reproduzir o sistema político da monarquia inglesa, mas sem criar
aristocracia [3].
Enquanto os segundos, que acrescentaram o Bill of Rights (as 10
primeiras Emendas da Constituição), queriam prosseguir o seu «sonho americano»
sem correr o risco de serem esmagados por uma qualquer «Razão de Estado».
No decurso dos últimos anos, os
partidos Democrata e Republicano evoluíram para se tornarem os porta-vozes do
pensamento puritano, defendendo a Ordem Moral e o Imperialismo. Os Bush são
descendentes directos dos «Pais Peregrinos». Barack Obama compôs o seu primeiro
gabinete apoiando-se, maciçamente, em membros da Pilgrim’s Society (o clube
transatlântico presidido pela Rainha Elizabeth II). Hillary Clinton foi apoiada
a 73% por «Judaico-Cristãos» [4]
etc. Pelo contrário, Donald Trump representava, sozinho, a outra componente da
história política dos EUA. Ele conseguiu em alguns meses tomar o contrôlo do
Partido Republicano e levá-lo, pelo menos na aparência, a tomar as suas
convicções.
No momento actual, cerca de um
terço dos Norte-americanos polarizou-se violentamente entre os pró e os
anti-Trump, enquanto os outros dois terços, muito mais moderados, mantêm-se à
distância. Muitos observadores consideram que o país está agora tão dividido
como o esteve na década de 1850, precisamente antes da guerra civil, dita
«guerra da secessão». Contrariamente ao mito, o conflito não opunha um Sul
esclavagista a um Norte abolicionista, uma vez que ambos os campos praticavam a
escravatura (escravidão-br).
Na realidade, tinha a ver com a
política económica e opunha um Sul agrícola e católico a um Norte industrial e
protestante. No decorrer desta guerra, os dois campos tentaram recrutar os
escravos para os seus exércitos. O Norte conseguiu libertá-los rapidamente, enquanto
o Sul esperou, para tal, pelo selar da sua aliança com Londres. Historiadores
mostraram que, de um ponto de vista cultural, este conflito prolongava nos
Estados Unidos a guerra civil inglesa, dita a «Grande Rebelião» (que opôs Lord
Cromwell e Carlos I). No entanto, ao contrário da Inglaterra, onde os puritanos
acabaram por perder, quem venceu nos EUA foram os seus descendentes .
Foi este conflito que ameaçou
ressurgir sob Richard Nixon e que se espalha hoje em dia às claras. Não é,
aliás, indiferente que o melhor historiador sobre este assunto [5] seja Kevin
Phillips, o antigo estratega eleitoral que ajudou Nixon a conquistar a Casa
Branca. Nixon reabilitou os eleitores do Sul, reconheceu a China Popular e pôs
fim à guerra do Vietname (iniciada pelos Democratas). Ele entrou em conflito
com o “establishment” de Washington que o forçou à demissão (escândalo do
Watergate).
Pode-se, é claro, ler os
resultados das eleições intercalares de 2018 segundo a clivagem Republicanos /
Democratas e concluir por um ligeiro êxito do Partido Democrata. Mas deve-se,
sobretudo, lê-los segundo a clivagem Luteranos / Calvinistas.
Neste caso, deve-se observar que
não só o Presidente Trump participou intensivamente nesta campanha, como
igualmente o seu antecessor Obama. O objectivo era, quer apoiar o realinhamento
cultural operado por Donald Trump, quer ganhar a maioria do Congresso afim de o
destituir, fosse sob que pretexto fosse. O resultado é claro: o “impeachment” é
impossível e Donald Trump dispõe do apoio de uma maioria de Governadores
tornando a sua reeleição possível.
Os novos eleitos Democratas são
jovens, partidários de Bernie Sanders, muito hostis ao “establisment” do seu
Partido, nomeadamente a Hillary Clinton. Mas, acima de tudo, entre os
candidatos Republicanos, TODOS aqueles que o Presidente Trump foi apoiar no
terreno foram eleitos. Aqueles que recusaram a sua ajuda foram batidos.
Os perdedores destas eleições —no
primeiro nível dos quais estão a imprensa e Barack Obama— não falharam porque
são Republicanos ou Democratas, mas, sim porque são Puritanos. Contrariamente
aos comentários dos média (mídia-br) dominantes, deve-se constatar que os
Estados Unidos já não estão em vias de se auto-destruir, mas, antes de se
reformar. Se esse processo continuar, os média terão que abandonar a sua
retórica de ordem moral, e o país deverá regressar duradouramente a uma
política de hegemonia, mas não mais imperialista. Em última análise, os Estados
Unidos poderão recuperar o seu consenso constitucional.
Thierry Meyssan |
Voltaire.net.org | Tradução Alva
*Intelectual francês,
presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas
análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana
e russa. Última obra em francês: Sous
nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable
imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand,
2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y
desinformación en los medios de comunicación(Monte Ávila Editores, 2008).
Notas:
[1]
O quorum é o número mínimo de participantes exigido para que uma eleição seja
válida. Aqueles países que têm um, para as eleições por sufrágio universal,
fixam-no geralmente pela metade do universo eleitoral.
[2]
“Os Estados Unidos vão
reformar-se, ou dilacerar-se?”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede
Voltaire, 26 de Outubro de 2016.
[3] How
Democratic Is the American Constitution ?, Robert A. Dahl, Yale University
Press, 2002.
[4]
Por «judaico-cristãos», entendo as pessoas que baseiam a sua vida, ao mesmo
tempo, na fé das escrituras judaicas (Antigo Testamento) e nas escrituras
cristãs (Novo Testamento) sem levar em conta as contradições existentes entre
elas.
[5] The
Cousins’ Wars, Kevin Philipps, Basic Books, 1999.
Sem comentários:
Enviar um comentário