O armistício que pôs fim a uma
das maiores e mais cruéis chacinas mundiais está a ser celebrado na Europa
através de paradas militares. Portugal excedeu-se convocando o maior desfile
militar de sempre
José Roulão | AbrilAbril | opinião
Anda por aí uma crescente
nostalgia da guerra. O que é perturbador, inquietante, assustador mesmo. Não
tanto da parte dos cavalheiros da indústria da morte, que esses estão muito bem
servidos de guerras, embora, pela lógica inatacável do mercado, seja
conveniente manter acesos os conflitos que se travam e criar alguns outros por
precaução; também não será das instâncias internacionais e dos governos, porque
esses lidam diariamente com a guerra, acarinham-na até, mesmo aqueles que não
gerindo nações vastas em dimensão confundem grandeza e dignidade com a pertença
a alianças guerreiras para as quais a liberdade e a democracia se cultivam
através de práticas criminosas. Como resultado destas circunstâncias, é no
cidadão comum que se pressente, com maior evidência, a nostalgia da guerra.
Como resultado da aliança
explosiva entre os discursos oficiais, a vários níveis, a comunicação social de
largo consumo e a abastardada indústria do entretenimento – que alguns insistem
em confundir com a cultura – a chamada opinião pública está a ser insidiosamente
formatada em modo de guerra. Como se devesse preparar-se para algo que não
tarda a rebentar por aí. Ou seja, estão a tentar convencer-nos, através de
métodos multidisciplinares e convergentes – tanto quanto possível indolores –
de que a guerra, na forma de um conflito de dimensão continental ou
transcontinental, é inevitável.
Causas e consequências
Dos cavalheiros da Lockheed, da
Boeing, da BEA Systems, da Raytheon, da Northrop e respectivos amanuenses no
Pentágono, dentro da NATO e nos governos militarmente aliados não temos que nos
espantar. É o negócio de uns, o belo emprego de outros, a política de todos,
porque a guerra e o neoliberalismo em todas as suas versões – globalismo,
nacionalismos e fascismo – são unha com carne, por definição indissociáveis.
Do comportamento da comunicação
social de grande consumo não devemos, igualmente, espantar-nos. Gere-se pela
lei do lucro, que é inimiga do interesse dos cidadãos; e como tudo o que seja
violência, cultura bélica, jogos militares e, principalmente, a guerra são
coisas que vendem, que garantem share, que massificam audiências, que
arrebanham multidões, então que venham, quanto mais sangue humano a escorrer
mais dinheiro em caixa. É a lei do mercado, a constituição planetária.
Além disso, como tem vindo a afinar-se
o talento para fundir a comunicação social com a propaganda e entretenimento,
criando um produto híbrido e venenoso a que o neologismo infotainment ainda
está longe de corresponder, a transformação do cidadão comum em consumidor
inerte da cultura de guerra tornou-se automática e em circuito fechado, com
rotação acelerada pela dinâmica tecnológica. Por isso, o Estado de Israel, o
mais eficaz laboratório de guerra existente, é conhecido como «a nação startup».
Acaba por não ser surpreendente,
portanto, que o cidadão comum, aquele cuja multiplicação por milhares de
milhões cria a «opinião pública», manifeste sintomas de nostalgia de guerra. O
que torna o fenómeno ainda mais arrepiante.
A morte é muito fotogénica
A banalização da morte, desde os
jogos para crianças e adolescentes até às imagens de guerra transmitidas nos
noticiários televisivos de prime time, passando pela massiva
cinematografia versando o assunto, distancia as pessoas da tragédia que
representa a perda de um ser humano, familiariza-as com a violência, com o
assassínio – tudo à distância de um clique, de um botão que se carrega, de um
aceno com o telecomando, do bilhete de cinema, do aluguer de um filme, dos
saldos de CD’s ou DVD’s, da escolha de um episódio em dezenas de canais de
séries, da arte de manusear uma consola. Morte real ou a fingir? A reprodução
através de imagens muitas vezes não é explícita, quanto mais realista for a
versão ficcional mais eficaz é o entretenimento, mais entranhada fica a
identificação com a violência.
Depois há também o culto do
herói, solitário ou destacando-se do anonimato do grupo, a moda militar, a
definição e tipificação do inimigo, a inadmissibilidade da crítica à «boa»
aliança militar, a deturpação da realidade das guerras existentes, a
glorificação da eficácia, das capacidades e performance das armas de
extermínio, a compreensão perante o fim de tratados de desarmamento. A morte de
seres humanos é sempre um dos objectivos principais da guerra, mas essa
realidade está dissolvida na propaganda subliminar, na sensação transmitida de
que o drama é sempre qualquer coisa de alheio, distante – e se os «maus» forem
exterminados, tanto melhor.
Os poderes públicos não têm
sequer o bom senso, ou mesmo a decência, de evitar a militarização de
comemorações com as quais pretendem celebrar a paz.
O armistício que pôs fim a uma
das maiores e mais cruéis chacinas mundiais está a ser celebrado na Europa, com
epicentro em Paris, através de grandiosas paradas militares simbolizando, no
fundo, a prontidão para voltar a fazer o mesmo.
Portugal, como não podia deixar
de ser, seguiu a regra, excedeu-a mesmo convocando o maior desfile militar de
sempre para assinalar o envio de uma geração de portugueses para o matadouro,
como um imenso rebanho de gado. A República de hoje foi incapaz de amenizar, ao
menos com desculpas às famílias dos mortos e estropiados, a ignomínia praticada
pela República dos primeiros tempos ao agir como qualquer monarquia absoluta.
A República de hoje foi incapaz
de assinalar o armistício com um acto cívico de reflexão sobre a decisão de
condenar milhares de portugueses a uma morte certa para irem matar concidadãos alemães
sem saberem ao certo por quê. Desta maneira foram martirizados milhões de
jovens de vários continentes, para ajuste de contas entre imperadores
capitalistas com desavenças de dominação e de acesso, como sempre, aos lucros.
E assim se celebra o armistício, cem anos depois, com gigantescas e solenes
exibições de aptidões castrenses, como quem passa a mensagem «estamos prontos
para outra», mais tarde ou mais cedo as guerras são acontecimentos inevitáveis.
Um ambiente gerado deste modo é
susceptível de proporcionar emoção, orgulhos, identificação, uma certa
nostalgia da guerra entre as pessoas que não se apercebem do quanto são
manipuladas, manobra que o discurso oficial alimenta com o cinismo do «serviço
à pátria», uma receita que não conhece fronteiras e funciona em todas as
«pátrias».
«Servir a Pátria»
Que «serviço à pátria» prestam,
por exemplo, os militares portugueses no Afeganistão? Ou na República Centro
Africana, mais de 40 anos depois de nos libertarmos da guerra colonial?
Neste país de África, os
militares portugueses actuam, ao que se diz, sob a bandeira da União Europeia,
pelos vistos uma «pátria alargada» cuja vocação militar se desconhecia, a não
ser como entidade política subsidiária da NATO.
É difícil identificar os interesses
portugueses pelos quais esse contingente guerreia em África, onde se trata,
isso sim, de servir os contrabandistas de diamantes, urânio, madeiras
preciosas, cavalheiros aparentados com as famílias da indústria da morte e
outras ilustres corporações, todas elas escravocratas.
E que «serviço à pátria»
prestaram os militares portugueses que foram envolvidos, sob comando
norte-americano, nas colossais manobras de guerra agora realizadas na Noruega e
outros espaços nórdicos, mas sempre com as miras assestadas à Rússia?
Estas interrogações não são
comuns entre os comuns cidadãos. Talvez porque não lhes seja dado espaço para
as idealizaram enquanto são entretidos com as heróicas façanhas dos «nossos
aliados» chacinando sírios e líbios ou sérvios por atacado, levando a
democracia e a liberdade até casa dos próprios à bomba, arrombando portas que
não se lhes abram, não hesitando em recorrer a armas proibidas como são as
munições de fósforo branco.
Para cidadãos despertos e
atentos, as patranhas e mistificações que estão na origem de tais feitos
gloriosos seriam fontes de revoltas, de indignação, de repúdio. Porém, isso não
pode acontecer porque a maioria das pessoas do planeta estão, de facto, anestesiadas
com a guerra que lhes servem a todas as horas, a sério, de faz de conta ou como
actividade lúdica.
Daí resultam inércia em vez de
atenção crítica, alguma identificação no lugar de indignação, uma certa
nostalgia substituindo o que poderia ser repúdio.
Enquanto, inertes ou revoltados,
todos nos aproximamos uma vez mais do matadouro, conduzidos agora pelos
marechais do mercado, por generais insensíveis e desumanizados, por políticos
irresponsáveis, levianos e a soldo.
Foto: Soldado morto no campo de
batalha de Verdun, durante a Grande Guerra (1914-1918). No «picador de carne»
de Verdun - como foi chamado pelos que lá estiveram - morreram em combate três
quartos de milhão de soldados.CréditosFonte: WWI poetry / Fonte: WWI Poetry
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