O primeiro-ministro Benjamin
Netanyahu em encontro com o ministro dos Negócios Estrangeiros austríaco,
Sebastian Kurz, Setembro de 2018. Créditos/ Governo do Estado de Israel
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José Goulão | AbrilAbril | opinião
Os governos da União Europeia
acabam de tomar uma medida há muito pretendida por Israel, que é, no fundo,
dificultar ou mesmo criminalizar, se necessário, as críticas contra o
comportamento do regime sionista.
A partir de agora, na União
Europeia, o título deste artigo pode ser considerado um crime ou, pelo menos,
deve alertar «as autoridades policiais nos seus esforços para identificar e
investigar ataques anti-semitas de maneira mais eficiente e eficaz». Quem o diz
são os ministros da Administração Interna dos Estados membros, que assim
pretendem calar as críticas a Israel, apagando de uma penada, com as suas
assinaturas, as chacinas em Gaza, a ocupação ilegal dos territórios
palestinianos e de parte da Síria, a colonização da Cisjordânia e de Jerusalém
Leste, violando as leis internacionais, a tortura, as execuções extra-judiciais
e o racismo que são práticas comuns do regime sionista.
Não menos importante é o facto de
a decisão pretender impedir a denúncia de um dos aspectos mais insólitos do
comportamento dos governos de Israel ao aplicarem, na prática, aquilo que
consideram ser a teoria sionista: o carácter xenófobo e anti-semita das políticas
israelitas dominantes.
Os governos da União Europeia
acabam de tomar uma medida há muito pretendida por Israel, que é, no fundo,
dificultar ou mesmo criminalizar, se necessário, as críticas contra o
comportamento do regime sionista, que pretende, abusivamente, representar os
judeus de todo o mundo; e que se esforça – agora com êxito – para que as
críticas ao sionismo sejam consideradas manifestação de anti-semitismo. Os
governos da União não apenas instauram uma censura para proteger Israel como faltam
ao respeito aos judeus que não são sionistas, ou mesmo aos judeus que, sendo
sionistas, não se revêem nas práticas do governo israelita. Como, por exemplo,
34 historiadores judeus das Universidades de Yale (Estados Unidos) e Telavive
que, em carta aberta, advertem que uma medida como a da União Europeia pode
«dar imunidade a Israel contra as críticas por violações graves e generalizadas
dos direitos humanos e do direito internacional» e «tem um efeito negativo
sobre qualquer crítica a Israel». Na óptica dos governos europeus, os autores
destas linhas são anti-semitas, mesmo sendo judeus.
Um processo xenófobo
A aberração nasce de um processo
ferido à partida, contaminado por preconceitos xenófobos e anti-semitas.
A decisão dos ministros dos
ministros da Administração Interna da União significa que assumem como
definição de anti-semitismo a que foi sentenciada pela Aliança Internacional
para Recordação do Holocausto (AIRH), uma entidade inter-governamental sediada
em Berlim a que a UE se juntou como parceira. Essa definição estabelece o
seguinte: «Anti-semitismo é uma certa percepção dos judeus que pode
expressar-se através de ódio contra os judeus». A definição é acompanhada por
11 exemplos de atitudes que, por esta lógica, são consideradas anti-semitas, das
quais esta pode considerar-se muito ilustrativa: «Negar ao povo judeu o seu
direito à autodeterminação, por exemplo alegando que a existência de um Estado
de Israel tem implicações racistas».
A manipulação e os preconceitos
xenófobos associados a este jogo de conceitos são notáveis.
Passemos por cima da
generalização abusiva da identificação entre judeus e as vítimas do extermínio
nazi latente no termo Holocausto, sabendo-se que não foram poucos os não-judeus
entre os milhões que pereceram sacrificados pela máquina de matança de Hitler.
É um fenómeno recorrente, ainda que deixe no ar uma imprecisão histórica.
Pelos caminhos do absurdo
A própria definição de
anti-semitismo estabelecida pela AIRH, e assumida agora pela União Europeia, é
xenófoba e anti-semita ao identificar abusivamente – de novo – o universo
semita com o universo judeu. Existem outros povos semitas além dos judeus – os
árabes e os berberes, por exemplo. A redução do anti-semitismo ao anti-judaísmo
é elitista e selectiva, logo xenófoba. E as consequências práticas da definição
adoptada pelos ministros europeus podem ser tão aberrantes como o próprio
processo que a transformou num padrão. Por exemplo, a União Europeia poderá
considerar como uma manifestação de anti-semitismo a denúncia das atrocidades
cometidas pelo exército de Israel em Gaza e, ao mesmo tempo, ignorar o
anti-semitismo contido em qualquer acto contra os imigrantes árabes na Europa.
Este exemplo é extensivo à
maioria dos comportamentos dos governos de Israel em relação aos árabes –
atitudes anti-semitas nuas e cruas. Desde a rejeição da autodeterminação dos
palestinianos, à expulsão de centenas de milhares das suas terras, arrasando as
suas casas, aldeias, vilas e cidades, passando pela humilhação quotidiana de
que são vítimas os habitantes de Gaza, da Cisjordânia, de Jerusalém Leste, dos
Montes Golã. Porém, segundo a filosofia assumida pela União Europeia,
anti-semitismo é revelar as práticas violentas e arbitrárias dos ocupantes, a
perseguição dos ocupados. Anti-semitismo, em suma, é lembrar que Israel se
coloca à margem do direito internacional recusando-se a cumprir 40 resoluções
do Conselho de Segurança e 100 decisões da Assembleia Geral da ONU.
Aliás, a definição assumida pela
União Europeia pode levar-nos bastante mais longe pelos caminhos do absurdo. Um
dos 11 exemplos de anti-semitismo citados pela AIRH é «negar a intencionalidade
do genocídio do povo judeu às mãos da Alemanha Nacional-Socialista». Pelo que o
primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, é um rematado anti-semita. Foi ele quem expôs a tese de que Hitler apenas queria
expulsar os judeus da Alemanha e só optou pela matança depois de
encorajado pelo Grande Mufti de Jerusalém, que lhe terá sugerido: «queime-os!».
Consta, porém, que a decisão
assumida pelos ministros da Administração Interna da União Europeia não é
vinculativa. E qual será o governo que se atreverá a não integrá-la no seu
código de conduta? Olhem o que está a acontecer com o Partido Trabalhista
britânico de Jeremy Corbyn, que teve a ousadia de não se identificar com quatro
dos 11 exemplos da AIRH. Anti-semita será talvez o menor dos insultos com que
vem sendo mimoseado pelas muitas antenas internas e externas de transmissão do
sionismo internacional e do regime de Israel.
Lei racista e anti-semita
O momento escolhido pelos
ministros da União Europeia para esta decisão sobre o anti-semitismo não
poderia ser mais oportuno. Sucede à adopção pelo Estado de Israel de várias
medidas que reforçam o seu carácter de entidade exclusiva de judeus, impondo
assim um filtro étnico e racista a não-judeus, dos quais a maior parte dos
atingidos são semitas.
A Lei do Estado Nação aprovada pelo Parlamento de Israel é o
exemplo mais flagrante de imposição de um contexto anti-semita em sentido
absoluto, não de acordo com a definição xenófoba adoptada pela AIRH.
Estabelece que o Estado de Israel é de todos os judeus, vivendo ou não em
Israel, e que os não-judeus nascidos na Palestina não poderão ser cidadãos israelitas.
Como se não bastasse existir já um muro e muitas cercas de arame farpado
separando fisicamente israelitas de palestinianos – todos semitas – foi agora
construído o muro legislativo.
O governo austríaco, conhecido
pelas intransigentes posições xenófobas e anti-semitas, porque é ferozmente
contra os refugiados e imigrantes, especialmente árabes, foi quem tomou a
iniciativa de elaborar o documento transformado em definição de anti-semitismo
para vigorar na União Europeia. Por sinal um executivo de extrema-direita em
que um dos parceiros da coligação, o Partido da Liberdade (FPO), é o herdeiro
do partido fundado por Adolfo Hitler e que está actualmente de excelentes
relações com o governo de Israel. Como diz o porta-voz do governo de Viena na
União Europeia, «tenho a certeza de que o governo austríaco está totalmente
comprometido ma luta contra o anti-semitismo; fomos nós que lançámos o processo
que conduziu à declaração».
O caso austríaco não surge
isoladamente, nem fora de contexto. O Estado de Israel é um dos grandes aliados
do governo neonazi da Ucrânia nascido do golpe de Estado de 2014, em cujas
operações de combate participaram elementos do exército israelita como irmãos
de armas do grupo fascista Svoboda.
Associar o sionismo praticado
pelo governo de Israel ao fascismo pode ser criminalizável, mas nem por isso
deixa de ser uma realidade.
Estas ligações fazem, afinal,
todo o sentido se tivermos em conta as relações fraternais entre as
administrações Netanyahu e Trump com o objectivo comum de resolver de
vez a questão palestiniana, recorrendo a todo o arsenal anti-semita que
seja necessário.
A União Europeia limitou-se,
afinal, a fazer o que é de sua natureza, seguir o rasto do eixo
israelita-norte-americano. Consta, aliás, que o texto inicial para os ministros
subscreverem era bastante mais aguerrido na criminalização do anti-semitismo,
versão xenófoba, do que o conteúdo final.
O que vem provar, se ainda fosse
necessário, que a intenção original da iniciativa é dificultar e penalizar as
críticas ao Estado de Israel à medida que este vai agravando a violência e a
marginalização de índole racista contra os palestinianos.
Os dirigentes europeus podem
assim, em sã consciência, multiplicar acções, declarações, repressões, guerras
contra alvos árabes. Afinal, nada disso é anti-semitismo.
Anti-semitismo, sim, é acusar o
Estado de Israel de suprimir os direitos dos palestinianos, se for necessário
retirando-lhes a vida. Os cidadãos da União Europeia que tenham tento no que
dizem, escrevem, quiçá pensem, ou então que se cuidem…
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