quarta-feira, 13 de junho de 2018

Portugal | Cidades despejadas


Mariana Mortágua* | Jornal de Notícias | opinião

No Porto como em Lisboa, milhares de pessoas estão a ser despejadas das suas casas. Prédios inteiros são comprados por fundos de investimento que pouco querem saber da idade, condição social ou até mesmo dos contratos dos inquilinos. A lei facilita - basta alegar obras profundas no prédio - e a má-fé ajuda. Somam-se os casos de inquilinos idosos que, por medo e desconhecimento, assinaram novos contratos sem proteção.

Arrendar ou comprar casa tornou-se um luxo insuportável, com preços a atingirem valores absurdos (8000€/m2 no centro de Lisboa). As casas não são para morar, são para especular com máximo retorno: alojamento local ou imóveis de luxo para férias.

A situação piora a cada dia e nem Rui Moreira, nem Fernando Medina ou o Governo parecem ter pressa em travar a vaga que expulsa os portuenses e os lisboetas das suas cidades. Pelo contrário, as políticas públicas do Governo de Cristas e Passos continuam a promover a especulação.

A tempestade é perfeita e ninguém assume responsabilidades. Começou com a liberalização do mercado de arrendamento em 2006 e aprofundada por Cristas. Continuou com a liberalização selvagem do Alojamento Local, sem limites nem quotas, com taxas de impostos mais baixas face ao arrendamento de longa duração e sem distinção entre verdadeiro alojamento local e empreendimentos turísticos. Foi coroado com os regimes dos vistos gold, vistos de residência em troca da compra de casas a partir de meio milhão de euros, e dos residentes não habituais (enormes benefícios de IRS). O incentivo à loucura foi total. Mecanismos de proteção, zero.

Há quem ainda diga que esta "dinâmica" do mercado imobiliário faz bem ao país. Contos de fadas de quem quer confundir o interesse do país com os lucros de poucos especuladores. Nessas contas nunca entram os custos de cidades desertas de habitantes, gentrificadas, onde só os ricos e os turistas podem instalar-se. Cidades-montra, sem cultura própria e dependentes dos mercados internacionais.

É verdade, há novas leis em discussão para a habitação e para o Alojamento Local. Mas com a Direita não se conta - PSD e CDS defendem o mercado especulativo que criaram. O PS está temeroso - quer mudar um pouco mas não o essencial, nada precipitado, nada radical, nada que espante "investidores". E resta ainda saber se chegará a tempo de travar a onda de despejos (dúvida que acelera a ação dos fundos imobiliários).

A situação é de emergência social e as respostas têm de estar à altura. Até haver novas leis, é preciso suspender os despejos.

*Deputada do BE

LISBOA | Santos populares: Os manjericos já não são o que eram


Na noite anterior, não nesta passada madrugada de multidões, o DN passeou-se por um bairro que junta o belo que sempre foi com a inquietude do que pode vir a ser. A Alfama compacta do mês das festas ajuda-nos a perceber quanto todos a querem bem. Mas avisa quanto ela precisa de ser tratada como um vaso de manjerico

Quem vem do Tejo, acostado o barco, ou a imaginação, ao Campo das Cebolas, chega-se à fronteira sul de Alfama e é para subir. Pela tradição, dos cruzados aos vadios, deveríamos ir pelos túneis de acesso, a pé e por degraus, pelo Arco Escuro ou pelo Arco de Jesus, que são arcos de volta abatida e pouco arejados. Desaconselho o caminho, eu e os tempos, que são de festa e muita cerveja. É certo que algures, aqui e ali, há propostas em avisos colados às paredes do bairro: "Atenção, WC - 33, 2º esq. - ir primeiro ao balcão, obrigados." Mas são solução, como se lê, com a obrigação de ir, primeiro, à barraquinha fronteira de bebes. No mês das festas, tudo é máquina de fazer dinheiro: o bairro oferece não só a causa da urgência mas também a condição de a resolver - do emborcar ao urinar. Por estes dias, Alfama transforma-se num moto-contínuo do capitalismo.

Nem toda, porém. Se, como é prudente, começarmos a subir por local largo e aberto, e que se chama, lindamente, Largo do Chafariz de Dentro, encontramos também nichos de mercado em crise. Os manjericos de Santo António não se vendem. Os turistas, locais e outros, deitam olhares distraídos às mesas com o vaso, a planta côncava para a mão convexa receber-lhe o bom cheiro, a flor de papel e o pequeno mastro erguendo o estandarte com versos em quadra. Tudo comercialmente errado.

O demasiado mata a curiosidade, pela mesma razão de que um cozido à portuguesa não é o nosso prato mais apreciado entre estrangeiros. Além desse mais, há também o menos: os gentis cravos, porque de papel, parecem coisa fanada comparados com o que os paquistaneses, nas ruelas de Alfama, oferecem (embora também sem grande êxito), de plástico colorido, transparente e animado por pilhas.

Seja como for, um casal bíblico, David, vindo pela primeira vez às festas de Alfama, negro de Oeiras e filho de guineenses, e Sara, a namorada lisboeta e branca, vendedores de manjericos sem compradores, perguntam-se pela falta de êxito. Adiantam uma desculpa que acabam de ouvir: "No avião... [gesto de mão]!", proibido, kaput, não entra, disse-lhes uma inglesa, apontando o vaso. Isto de turistas é gente sem entendimento para o efémero poético, não sabem que manjericos são como as rosas, vivem o que se vive numa noite de verão.

Quadras em inglês e francês talvez ajudasse... "Mas traduzir versos não é fácil!", lamenta-se Sara. Desculpa cruel, quando outros, ali ao lado, anunciando "octopus rice" e "liqueur: cherry", faturam traduções que fazem imensas filas de apetite. Numa parede esfumada por grelhas vizinhas, um desenho do magnífico cartoonista lisboeta Nuno Saraiva traduz para as festas modernas o nosso santo medieval: Santo António faz um sermão a sardinhas... assadas e em fatia de pão. E das janelas, nos primeiro e segundo andares de prédios que foram de escritórios, tabuletas deslavadas de "despachantes oficiais", antiga tradição do largo que se tornou moribunda com o fim das fronteiras de UE, lembram que não há negócios eternos.

Já a rua de São Miguel fervilha de gente. Tanta, que a velha igreja oferece os degraus da sua escadaria para piquenique noturno. Os turistas sentam-se à volta de um trono de Santo António, meio corpo de homem. O prato do tostão foi substituído por uma ânfora a abarrotar de moedas, a maioria de 2 euros. As moedas estão à mão de semear (de colher, para o caso) porque se confia em quem paga cada sardinha a 3 euros e o chouriço corrente, só com o acrescento de ser assado, chega aos 10 euros.

Da varanda alta de um prédio, frente à torre sineira da igreja, um jovem casal com vista de nababo saúda de copo na mão. Os altifalantes pendurados nos candeeiros à moda antiga, presos à fachada, debitam uma música que chega lá acima já cansada, o que é uma bênção. Os dois da varanda são turistas, aves de arribação do famoso AirBnb, tribo que, diz-se, debica nos direitos consuetudinários dos indígenas. Frente à porta deles, a nº 12, no Beco de S. Miguel, há a foto conjunta, impressa sobre pedra, de D. Fernanda e D. Emília, vizinhas, vivendo "porta com porta", como diz a legenda. Ainda vivem assim? Alfama era um lugar de encontros que duravam mais do que as folguedos de uma noite.

Saia-se, então, do beco, volte-se à praça, subam-se as escadinhas - todas de nome "S. Miguel" -, cruze-se uma menina que se chama Rita, que logo se apresenta: "Já desfilei na marcha dos Olivais!", e posa com uma sardinha lisboeta, dessas da propaganda. Duas amigas do bairro longínquo (agora a dimensão é lisboeta, não a dos turistas), Marisa e Luena, acham que é necessário confirmar: "É verdade, há dois anos, a Rita foi mesmo da marcha!". Quase lhes disse que eu estava no estádio Santiago Bernabéu quando o Ronaldo foi recebido. E lá foram as três, com os altifalantes cheio de Beatriz Costa em modinha antiga.

Desça-se levemente pela rua da Adiça, já estamos na Cerca Moura, e não há turista que deixe de fotografar uma casinha de campo, em plena capital de ex-Império. A porta protegida por uma cobertura de telha está ladeada por azulejos com quadras e um outro com a foto de uma cadelinha. Um deles: "Vizinhos do pé da porta/ Quando não sejam leais/ Bom dia uma vez por dia/ Já são conversas demais." Num cotovelo da rua, sentada na soleira da vizinha, Lurdes, de belos 79 anos e arrecadas nas orelhas, espreita o interesse dos passantes pela sua casinha tão linda.

Lisboeta de outro bairro, Lurdes veio para ali há 61 anos, Trouxe-a o marido que era de Alfama. Mesmo destino o de Judite, 74 anos e 56 de Alfama. Vizinhas que se sentam juntas, são leais. Estiveram para se perder há cinco anos, quando Judite e o marido tiveram de sair por ordem do senhorio. Mas arranjaram casa perto e as duas lá continuam conversando. "Era bairro de varinas e estivadores, hoje há só uma banca de peixe em toda Alfama", diz uma. "Tenho de ir à Morais Soares, ao Pingo Doce", confirma a outra. O azulejo da cadela, era de Keit, que se foi há 15 anos. Esse, o azulejo, espera-se que fique sempre na paisagem dos bairro.

Mas muita coisa já partiu, como a farmácia na Rua de São João da Praça. A vidraça ainda escreve "Farmácia Central" e sobre a sua portada, no nº 26, azulejos lembram "Botica do A.J. Pinto". Estava de serviço quando a olhei: um mongol de carrapito e a sua amiga Elisa, mulata de Dalatando, Angola, vendem pinturas feitas de "café e vinho tinto." Fernando Pessoa, o conhecido poeta, é um dos retratados.

Regresso, para adeus por uma noite, ao Largo Chafariz de Dentro. David e Sara ainda não tinham resolvido o problema do sucesso. Mas ele ofereceu-lhe um manjerico do vasto stock de invendidos - e ela corou.


Ferreira Fernandes | Diário de Notícias | Foto Pedro Rocha/Global Imagens

BRASIL | "Trabalho infantil é uma chaga no país", diz especialista


Neste 12 de junho, Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil, o Brasil não tem muito para comemorar. De acordo com a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), em 2015, havia 2,7 milhões de crianças e adolescentes trabalhando irregularmente e, diariamente, pelo menos sete delas são vítimas de acidentes graves no trabalho. O cenário é desalentador e deve se agravar ainda mais com o corte de investimentos em educação e o aumento do desemprego.

Verônica Lugarini*

Segundo o último levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por meio da PNAD, em 2015 o Brasil tinha 2,7 milhões de crianças e adolescentes trabalhando irregularmente. E, dessas crianças que trabalham, sete delas são vítimas de acidentes graves de trabalho.

Além disso, o Brasil não cumpriu o objetivo de eliminar as piores formas de trabalho infantil até 2016 e agora tem até 2025 para erradicá-las. Mas, um relatório elaborado pelo Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI) e pelo Ministério Público do Trabalho – divulgado no final do ano passado – aponta que o país dificilmente cumprirá o objetivo, devido aos cortes do governo de recursos para as áreas sociais.

Em entrevista ao Portal Vermelho, a advogada trabalhista e professora de direito trabalhista da PUC-SP Fabíola Marques seguiu a mesma linha e afirmou que o cenário é pessimista e que é essencial investir em educação para tentar diminuir o número de crianças que trabalham irregularmente no país.

“Vejo esse cenário com muita tristeza porque o trabalho infantil é uma chaga no país. Não adianta mexer nas legislações se você não investir na educação das crianças. Afinal, se elas não vão para a escola, elas não têm condições de ter bons trabalhos no futuro. Ou seja, sem educação não teremos futuros cidadãos. É só prejuizo”, disse.

Perspectiva

A conjuntura política e a austeridade econômica que vêm sendo praticadas no país devem piorar os números do trabalho infantil. Fatores como alto desemprego (13,1% no 1º trimestre de 2018), a reforma trabalhista e o congelamento dos investimentos públicos até 2036 impactam principalmente as famílias que estão em situação de vulnerabilidade social. A pobreza e a falta da educação são algumas das principais causas para o trabalho infantil.

Ainda segundo Fabíola Marques, frequentemente os pais que ficam desempregados ou que têm queda na renda precisam da ajuda das crianças para garantir a sua subsistência. O que, consequentemente, faz com que a criança precise trabalhar e não tenha tempo para estudar.

Tudo isso, aponta a professora, leva a um círculo vicioso onde não há emprego para os pais e não há educação para as crianças, aumentando assim o trabalho infantil e a pobreza.

“Precisamos de salários melhores e de mais investimento em educação para que tenhamos um país seguro e com crianças que tenham algum futuro pela frente”, finalizou.

*Em Portal Vermelho | Foto: Agência Brasil

BRASIL | Eleições: Três tendências e um grande erro


Projeto do golpe está derrotado junto à sociedade. Chances de reverter os retrocessos crescem. Porém, esquerdas fazem cálculos eleitorais pequenos, desperdiçam possibiliade real de mobilização e abrem espaço para Bolsonaro

Antonio Martins | Outras Palavras | Vídeo: Gabriela Leite

Saiu neste domingo uma nova pesquisa Datafolha sobre as intenções de voto para a Presidência. Os números revelam quatro grandes tendências, que à primeira vista seriam claramente favoráveis a uma mudança de rumos – ou seja, a reverter a agenda de retrocessos imposta ao país desde o golpe de 2016. Porém, esta grande oportunidade pode ser perdida: as forças que deveriam estimular esta virada estão sem estratégia clara ou presas a um cálculo eleitoral mesquinho, que desperdiça a potência revelada pela pesquisa.

Vamos às tendências. A primeira é a imensa impopularidade do golpe de 2016. Ela está expressa na rejeição a Michel Temer, o político que simboliza a quebra da ordem democrática e a guinhada ultra-conservadora que se seguiu. Veja os números: Temer tem 82% de rejeição – ou seja, de pessoas que julgam seu governo ruim ou péssimo. Apenas 3% o apoiam. A própria Folha de S.Paulo, que apoiou a posse do ocupante ilegítimo do Palácio do Planalto, admite: ele é “o presidente mais impopular da História”.

Não se trata apenas de rejeição pessoal, ou ligada às múltiplas denúncias de corrupção que pesam contra Temer. Há um sentido político na tendência. Outras pesquisas recentes demonstraram que a grande maioria dos brasileiros rechaça – apesar da mídia – o núcleo da agenda de retrocessos. Sete em cada dez são contra as privatizações, revelou o mesmo Datafolha em dezembro de 2017. 69% rejeitam a contra-reforma da Previdência, que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, quer votar às escondidas, no apagar das luzes deste ano. Um percentual ainda maior – 81% – recusa a contra-reforma trabalhista, aprovada pelos deputados e senadores, sem debate algum, em 2017. Dado suplementar: a crise de legitimidade das instituições é geral, segundo o mais recente Datafolha. 67% dos entrevistados não confiam no Congresso. Apenas 14% confiam plenamente no Supremo Tribuna Federal; e 16% na imprensa.

Segunda tendência: a impopularidade da agenda de retrocessos repercute na fraqueza dos candidatos que defendem tais políticas. O poderoso Geraldo Alckmin não passa, no melhor cenário possível, de 7%. Álvaro Dias, que tenta posar de alternativo, tem 4%. Rodrigo Maia, no máximo 2%. Henrique Meirelles e Afif Domindos, nem isso: entre 0% e 1%, a depender dos adversários.

A terceira tendência é contraditória. No campo político que poderia expressar uma virada, há densidade eleitoral, mas ainda não há viabilidade política, devido ao ambiente de golpe. A força popular de Lula é impressionante. Depois de dois meses encarcerado, como preso político, ele permanece com 30% das intenções de voto. Se puder disputar, vencerá com folgas qualquer adversário, no primeiro ou no segundo turno. Ciro Gomes (PDT) vem a seguir, com 6% dos votos. Manuela Dávila (PCdoB) oscila entre 1% e 3%. Fernando Haddad e Jacques Wagner (PT) têm, ambos, 1%. Guilherme Boulos (PSOL) tem 1% em alguns cenários.

Exceto Lula, os candidatos que se dizem favoráveis a rever a agenda de retrocessos ganham dos conservadores clássicos. Porém, perdem de longe para Marina Silva (que oscila entre 14% e 15%) e Jair Bolsonaro (17% a 19%, a depender do cenário). O ex-capitão expulso do exército representa uma direita extra-institucional e golpista. É rejeitado pela maior parte dos conservadores (que temem a instabilidade provocada por ele). Mas sua resilência, apesar dos ataques que tem sofrido, revela que é um postulante com chances reais, precisamente porque disputa a parcela da sociedade que se sente traída e desamparada pelas velhas instituições.

Diante deste quadro, e do cenário de ruptura democrática em que vivemos, há, para quem deseja resistir aos retrocessos, duas alternativas. A primeira é não-convencional – como costumam ser as saídas possíveis, em tempos de exceção. Significa ir além do mero cálculo eleitoral. Implica definir um programa claro – em cujo centro estaria a reversão da agenda conservadora imposta à sociedade – e articular uma mobilização nacional, suprapartidária e extrapartidária, em favor da virada.

É fácil? Evidentemente, não, porque a lógica eleitoral, nas democracias contemporâneas, convida a abandonar o debate de ideias e a concientização política, em favor do marketing e da mera conquista de postos no aparelho do Estado. Mas é possível? Sim, por dois motivos. Vivemos – no Brasil e em muitas partes do mundo – uma situação atípica, em que as fórmulas e lógicas tradicionais já não funcionam e a população está disposta a buscar o novo. Além disso, a sentimento de rejeição ao golpe não arrefeceu. Voltou a tomar as ruas há menos de três meses, nos protestos gigantescos contra o assassinato de Marielle Franco. Poderá reunir multidões novamente, se estiver em jogo um projeto maior que o mero apoio a candidaturas eleitorais.

Uma saída não-convencional implicaria que Lula, Ciro, Manuela e Boulos estabelecessem uma espécie de pacto.. Embora mantendo as próprias candidaturas, estilos, projetos específicos e alianças, priorizariam um ponto, em suas campanhas: a reversão da agenda de retrocessos, rejeitada por 82% dos brasileiros. Em dado momento, haveria uma unificação. Prevaleceria a candidatura que tivesse melhores condições de vitória – eleitorais e políticas.

O outro caminho é o convencional, que tem sido trilhado até agora. Nele, o PT insiste em afirmar que sua única opção é Lula. Ao mesmo tempo, continua acreditando que, no caso provável de impedimento autoritário do candidato, um outro postulante, indicado por ele, chegará ao segundo turno – e vencerá Bolsonaro. É uma tática despolitizada e eleitoreira, muito semelhante à adotada em 2014, quando o partido optou por atacar Marina, para favorecer a chegada de Aécio – mais frágil – ao segundo turno. Resultou no pesadelo em que estamos mergulhados.

Neste mesmo script, Ciro também mantém sua candidatura e, segundo a lógica eleitoral de sempre, busca viabilizá-la com acenos à direita – ao DEM e PP. Boulos e Manuela continuam enfadonhamente em campanha, mesmo conscientes de que já não têm nem chance eleitoral, nem condições de ampliar, na eleição, seu espaço político. A resultante é a despolitização – e pode ser ainda mais grave, com a eleição de Bolsonaro ou de um candidato midiático, tirado do bolso do colete à última hora pelo conservadorismo clássico.

Há tempo e condições para evitar este cenário desolador e catastrófico. É preciso pensar e agir fora da lógica tradicional. Mas não será esse, exatamente, o sentido de toda Política digna deste nome?

Capitalistas e políticos espanhóis empenhados no saque e crimes contra a Venezuela


UE: “Una democracia de mierda”

Espreitando na web a Venezuela deparamos sem surpresa o constante na pequena prosa em castelhano do site da Frente Antiimperialista Internacionalista. Entre a imensa matéria ali constante salientamos a acusação a capitalistas e políticos espanhóis apostados no reacionarismo contra a revolução bolivariana, concretamente contra a Venezuela e seu povo.

Tais empresários e políticos de Espanha, país aqui ao lado de Portugal, certamente saudosos do fascismo franquista, também garantem a sustentação da “oposição criminosa” que mantém “o brutal cenário de violência fascista” no país. São esses mesmos espanhóis os aliados das multinacionais que são o sustento e o cérebro do reacionarismo e instabilidade provocada pelos EUA e pelo grande capital internacional cuja pátria é o cifrão.

O país aqui ao lado, Espanha, ainda agora se livrou de um governo em imensos aspetos prófranquista, mascarado de democrático, chefiado por Rajoy, mas nem por isso faz sentido almejar que o novo governo – dito socialista – arrepie caminho nas suas atitudes e exerça o controle dos capitalistas e políticos espanhóis que interferem criminosamente contra a Venezuela na perspetiva de libertarem e porem em funcionamento pleno a exploração capitalista selvagem que Chavez combateu e Maduro secunda.

Também a UE vai por via de um secretismo bacoco participando nos boicotes e instabilidade que visa derrubar o governo e regime eleito na Venezuela. UE que é afinal dominada por empórios capitalistas que comandam as suas decisões e “compram” eleitos e não eleitos que a dirigem de acordo com o diretório capitalista que explora o mundo e os povos. É o que tanto vamos vendo e sentindo ao sobreviver no quotidiano europeu.

Como poderá ser dito em castelhano:  “UE: Una democracia de mierda”.

Carlos Tadeu | PG

El Régimen de la Transición y el capital español en el saqueo de América latina. Narcotráfico, paramilitarismo e imperialismo

Ponencia presentada en el Seminario “Geopolítica y Relaciones Internacionales en el siglo XXI”, organizado por el ISRI. La Habana, Cuba, del 25 al 27 abril de 2018.

“Una nueva sucesión de golpes de Estado2, más o menos encubiertos, recorre nuevamente América Latina en un intento de revertir las alianzas aintiimperialistas que siempre han tenido a Cuba como eje y que Chávez recreó. Los tambores de guerra contra la Venezuela Bolivariana no dejan de resonar, buscando nuevas vías tras el brutal escenario de violencia fascista protagonizado en 2017 por una “oposición” criminal financiada y dirigida por multinacionales extranjeras, como ha ocurrido una vez tras otra en la desangrada Patria Grande. La novedad desde el golpe contra Chávez en 2002 es que los resortes que mueven la banda armada que perpetra el crimen están dirigidos, también, por capitalistas y políticos españoles”.

Ángeles Maestro. Web del Frente Antiimperialista Internacionalista, 6 de mayo de 2018

A Cimeira Kim-Trump: factos, fantasias e perspectivas


Tim Beal [*]

Com a aproximação da Cimeira de Singapura entre os presidentes Trump e Kim fomos submergidos sob um dilúvio de artigos de opinião. A maior parte deles são desinformados, alguns ignorantes. Sintomas são confundidos com problemas, consequências com causas. A causalidade é frequentemente invertida. Exemplo: há muita concentração sobre as armas nucleares da Coreia do Norte (com pouca atenção prestada às dos EUA) sem que seja examinada a razão para a sua existência. A Coreia do Norte desenvolveu um dissuasor nuclear em resposta a uma ameaça dos Estados Unidos. Sem a ameaça não haveria dissuasor. A questão então não é porque a Coreia do Norte tem um dissuasor – isto é óbvio embora apologistas dêem-se a grandes trabalhos para sugerir explicações bizarras – mas, ao invés, porque os EUA ameaçam a Coreia do Norte. Quais são os impulsionadores da política americana? A chave para o entendimento do que está em curso, e portanto para chegar a soluções, é perguntar as questões certas.

Esta literatura florescente é emitida com banalidades e trivializações . De modo redundante, destacam camuflagens óbvias como percepções; Jimmy Carter conta-nos que "A prioridade principal dos líderes da Coreia do Norte é preservar o seu regime e mantê-lo tão livre quanto possível do controle externo". Bastante verdadeiro, mas não será isto o que fazem, ou deveriam fazer, todos os governos? E a seguir temos jornalistas a tropeçarem em clichés;Eugene Robinson no Washington Post pontifica que "a Coreia do Norte é uma das mais brutais ditadura do mundo, um reino eremita dominado por um regime fanático e paranóico. Sua liderança não é suicida, contudo, e Kim é claramente invejoso da tecnologia e riqueza ocidental". Um reino eremita por definição não desejaria tecnologia estrangeira e muito menos estaria "invejoso" dela. Por que utilizar apenas uma ideia cliché numa sentença se se pode condensar duas na mesma?

Talvez a ideia mais imbecil seja exemplificada por David Ignatius: "Trump e Kim Jong Un tem um bocado em comum. Será isso uma coisa boa?" Sabemos um pouco mais acerca de Trump do que de Kim mas é evidente que eles têm personalidades muito diferentes. E as suas situações, as quais dão origem a motivações e aspirações, dificilmente poderiam ser mais diferentes.

E assim por diante.

A fim de limpar o ar sobre um tema que é muito complexo mas também uma situação tolamente simples é útil declarar resumidamente uns tantos factos salientes e identificar algumas ilusões.

Factos

Contexto histórico e geopolítico 

Primeiramente os antecedentes históricos que apresentam o contexto para a situação que se desenvolveu:

Em 1945, no fim da Guerra do Pacífico, os Estados Unidos dividiram a Coreia. A União Soviética anuiu a esta iniciativa americana e Staline foi criticado, razoavelmente ou não, por se inclinar a esta divisão a qual teria consequências calamitosas. A península coreana era muito inabitual por ser um beco sem saída geográfico e ser racialmente homogénea. Não havia restos de invasões e migrações tal como era comum em muitas partes do mundo. Não era como os divididos Balcãs com tensões étnicas a ferverem em fogo lento. Os EUA quiseram proteger seu botim de guerra conquistado ao Japão de qualquer envolvimento, por ameaça ou contágio, da União Soviética. A ocupação da Coreia do Sul deu-lhe uma cabeça-de-ponte no nordeste do continente asiático e estabeleceu uma "presença militar avançada" para conter e ameaçar a União Soviética e dominar a área. Ao longo do tempo o foco naturalmente mudou-se para a China (em 1945 os EUA ainda "possuíam" a China, ou grande parte dela sob Chiang Kai-shek). Entretanto este inquilino da política dos EUA ainda se mantém; a península coreana é um subconjunto de uma política mais geral. Quando os EUA olham para a Coreia vêem a China. Embora o relacionamento americano com a Coreia dividida se tenha desenvolvido por si próprio ao longo de décadas, os coreanos ainda são vistos essencialmente como piões a serem movidos, e talvez sacrificados, a fim de dar um cheque mate à China.

A relevância disto é vista no desconforto profundo que o establishment de política externa dos EUA sente quanto ao acordo de Trump para uma cimeira com Kim Jong Un. Eles temem que a sua ignorância e o seu desejo narcísico de obter um Prémio Nobel possa inadvertidamente por em perigo o que percebem como a pedra angular da política dos EUA na Ásia. Assim, por exemplo, temos o antigo responsável do Pentágono, Van Jackson, a escrever:

Será que a estratégia americana na Ásia – a qual necessita uma presença militar avançada em lugares como a Coreia do Sul – mais ou menos prioritária do que alcançar a desnuclearização? Em suma, que futuros alternativos na Coreia servem mais ou menos os interesses dos EUA? Não há sinal de que Trump tenha lutado com estas questões...

Tweets recentes de Trump sobre a Coreia do Norte sugerem que ele está desesperado por um acordo, o qual lhe traria muito precisadas manchetes favoráveis em meio a muitos escândalos políticos internos. Ele também continua a deixar pistas de que realmente quer afirmar que é o homem que terminou a Guerra da Coreia, muito embora nunca tenha parado para perguntar porque é que a Coreia do Norte, também, sempre tenha desejado que os Estados Unidos anuíssem ao fim da guerra. Com um tratado de paz na mão, Kim minaria o mais importante factor único justificativo da presença de tropas dos EUA na Coreia e, por extensão, a aliança com a Coreia do Sul. Kim não precisa pedir a retirada imediata das tropas como parte do tratado de paz. Ao primeiro sinal de fricção pós paz, Kim pode acenar com aquele tratado na cara da América e dizer: "Yankee go home". Isso imediatamente dispararia debates em Seul acerca do futuro da aliança e, com um tratado de paz na mão, activistas anti-americanos no Sul terão um argumento muito mais forte para pressionar a saída dos Estados Unidos do que em décadas passadas.

Se Trump loucamente deixar irromper a paz na Coreia então os ianques podem ser forçados a deixá-la e isso minaria a contenção da China.

A mítica ameaça norte-coreana

Apesar do alarde e histeria implacáveis acerca da "ameaça norte-coreana", trata-se claramente de um mito, um engendro para servir outros propósitos, geopolíticos, para beneficiar o complexo militar-industrial. Os Estados Unidos têm o mais poderoso poder militar do mundo, como a história nos diz, e o seu próprio orçamento militar e quase tão grande quanto o do resto do mundo em conjunto. Com o seu sistema de alianças – NATO, Coreia do Sul, Japão, Austrália (e não esquecer a Nova Zelândia) a sua vantagem sobre qualquer possível adversário é incrível: maior do que a China sete vezes, do que a Rússia 15 vezes e do que a Coreia do Norte talvez mais de 1000 vezes.

A Coreia do Norte pode ameaçar retaliar contra um ataque dos EUA, embora isto fosse uma "opção Sansão" suicida. Mas isso é da natureza da dissuasão . Entretanto ela não pode iniciar um ataque aos Estados Unidos; não há motivo possível, nada a ser ganho, a derrota e destruição seria certa. A Coreia do Norte não pode "ameaçar os Estados Unidos" e nunca será capaz disso. Que a ameaça da Coreia do Norte tenha ganho tal credibilidade apesar de ser obviamente ridícula constitui um dos grandes golpes de propaganda do nosso tempo.

Há um certo número de consequências disto, mas duas merecem menção especial.

A Coreia do Norte é frequentemente acusada de trapacear acordos feitos com os EUA. As evidências reais apontam em outra direcção mas, mesmo se isto fosse verdade, realmente não importaria muito. Não é possível trapacear o facto de que a Coreia do Norte poderia alterar o equilíbrio de poder. Acumular algum plutónio ou urânio, ou um míssil ou dois, não levaria a lugar algum; os EUA ainda têm uma preponderância de poder esmagadora. O mesmo não se aplica na outra direcção, naturalmente. Se os EUA conseguem que a Coreia do Norte se desarme e a seguir rompe suas promessas e ataca-a, como com a Líbia, então a Coreia do Norte poderia ser destruída, como o foi a Líbia.

Também se segue que a dissuasão nuclear da Coreia do Norte ao invés de ser uma ameaça ao mundo como se diz frequentemente é de facto um reforço da paz. O cientista político dos EUA Kenneth Waltz destacou que armas nucleares na posse de um pequeno país ameaçado (ele estava a pensar no Irão ) dissuadem um agressor maior. O país poderoso não pode atacar o mais fraco por temor da dissuasão e o mais fraco não pode atacar o mais poderoso pelas razões acima discutidas. A paz, talvez inquieta, mas ainda assim nada menos que a paz, prevalece.

Fantasias

Duas fantasias americanas inter-relacionadas são relevantes aqui – excepcionalismo e solipsismo.

Excepcionalismo

A noção de que os Estados Unidos são um país "Excepcional" tem uma longa história que remonta à suas origens. De facto o líder puritano John Winthrop utilizou a analogia bíblica de uma "cidade sobre a colina" para a qual todo o mundo olharia antes de realmente alcançar a costa de Massachusetts em 1630. Desde então o excepcionalismo tem sido um tema recorrente na política americana e foi abraçado por George W. Bush , Hillary Clinton e Barack Obama –"Acredito no excepcionalismo americano com cada fibra do meu ser" .

Se a América é "excepcional" então está acima das regras normais do direito internacional e pode, por exemplo, invadir outros países ou interferir nos seus assuntos internos com impunidade. Um artigo recente na revista do establishment Foreign Policy depois de a eleição venezuelana ter produzido um resultado que não é do agrado de Washington ilustra esta mentalidade: "Está na hora de um golpe na Venezuela" . O excepcionalismo facilmente transmuta-se em imperialismo . Os duplos padrões estão no cerne do excepcionalismo e isto manifesta-se de vários modos, mas de particular relevância aqui é a ideia de que é bastante certo e adequado para os Estados Unidos terem armas nucleares mas não, por exemplo, a Coreia do Norte. Como o Conselho Editorial do Washington Post,sem qualquer sentido de ironia e sem mencionar quaisquer concessões ou compromissos americanos, "Trump deve fazer com que a Coreia do Norte fique completamente limpa" . As negociações e os seus resultados não são encarados como algo que tenha qualquer elemento real de reciprocidade. Don Balz, do Washington Post, descreve isto de forma bastante inconsciente:
[Um resultado com êxito da cimeira produziria]... um quadro que incluísse um acordo explícito dos norte-coreanos para desnuclearizar; uma disposição da sua parte para constranger seu programa de míssil balístico (e não apenas mísseis de longo alcance que pudesse alcançar os Estados Unidos mas também aqueles que ameaçam seus vizinhos imediatos); e um compromisso para um sistema de verificação intrusivo.

Em contrapartida, os Estados Unidos poderiam oferecer ajudar na produção de um tratado de paz entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul, comprometer-se a não invadir a Coreia do Norte, manter a possibilidade de relações diplomáticas se a Coreia do Norte cumprir suas promessas e provavelmente oferecer garantias de assistência económica no futuro.
Não há qualquer sugestão de que os Estados Unidos possam desnuclearizar-se ou mesmo reduzir seus próprios programas militares; isso é para que façam os outros. Os Estados Unidos meramente fazem algumas vagas promessas de que podem conformar-se à prática internacional e estabelecer relações diplomáticas.

Não há percepção de que isto é uma questão de força bruta, do forte a tentar impor a sua vontade ao fraco, do mesmo modo como o patrão da Mafia faz exigências semelhantes. Isto é visto como a ordem natural das coisas e nisto há um perigo. Um estado conscientemente a aplicar a ameaça de força para escorar exigências irrazoáveis pode fazer isso de maneira racional e voltar atrás se os custos se verificarem demasiado elevados. Um estado imbuído da mentalidade do excepcionalismo pode não comportar-se tão racionalmente. Embora a mentalidade do excepcionalismo deva ser intensamente satisfatória para a elite americana há uma resistência crescente, tanto de adversários como de aliados, ao excepcionalismo americano impulsionado parcialmente, mas não exclusivamente, pela grosseria de Trump. Isto está resumido na foto icónico de Angela Merkel, punhos sobre a mesa, a olhar furiosamente um Donald Trump sentado na reunião do G7 no Canadá.

Solipsismo

Filosoficamente, solipsismo significa considerar-se a si próprio como a única realidade conhecida e que tudo o mais é incerto, mas também, por extensão, significa ser auto-centrado em grau extremo. Bruce Cumings descreveu o Juche como "o núcleo opaco do solipsismo nacional norte-coreano". Ele não está sozinho nisto mas de facto o solipsismo pode ser muito mais adequadamente aplicado aos Estados Unidos, os quais não estão sob sítio do modo como está a Coreia do Norte. Isto manifesta-se de muitos modos mas um de especial relevância é que a forma como a cimeira Kim-Trump foi formulada virtualmente exclusivamente em termos do que está a ser exigido da Coréia do Norte, ao invés de [definir] quais são as questões. Isso acontece mesmo com as organizações que defendem a paz, como por exemplo, Philp Yun, do Fundo Ploughshares, que escreveu "A melhor opção de Trump para desnuclearizar a Coreia do Norte" . Os EUA podem querer o desarmamento unilateral da Coreia do Norte, mas a Coreia do Norte quer paz e segurança. Negociações são, por definição, um diálogo desafiante entre duas ou mais partes, mas essa compreensão essencial é muitas vezes ofuscada pelo solipsismo americano. O bom negociador tenta entender o que o outro lado quer, mesmo que seja apenas para explorar esse conhecimento. A empatia é um atributo chave.

Outro problema com o solipsismo americano é o privilégio dado a aspectos internos. A política externa dos EUA é muitas vezes joguete de conflitos internos. Exemplo: os principais do democratas do Senado exigiram que Trump mantivesse a linha nas conversações com a Coreia do Norte. Isso, é claro, tem a ver não com a Coreia mas sim com Trump. 

Nicholas Kristof comentou com pesar no New York Times:

Infelizmente, os democratas no Congresso estão respondendo de uma maneira bastante trumpiana: eles parecem mais preocupados em solapá-lo do que em apoiar um processo de paz com a Coreia do Norte. Eles estão do mesmo lado do Conselheiro de Segurança Nacional, John Bolton, subvertendo discretamente tentativas de buscar a paz.

Apesar de a segurança internacional ser complicada, há uma regra de ouro: Quando você se encontra do mesmo lado de Bolton, recue e reexamine sua posição.

Se fosse verdade, o que certamente não é, que todo país tem o governo que merece, então seria considerado apropriado que o solipsismo americano seja agora exemplificado pelo narcisismo de Trump.

Perspectivas

Na véspera da cimeira o establishment político dos EUA – o Blob , como tem sido chamado – está a ficar com medo. Há medos de guerra, mas também há um medo maior da paz. Eles estão preocupados que Trump, no seu desejo de um Prémio Nobel, pela publicidade e índices de audiência, irá sucumbir à astúcia e bajulação de Kim Jong Un e concordar com um acordo que ponha em perigo a hegemonia americana.

Os três consiglieri americanos

O perigo de guerra ainda existe mas é menor do que há um ano. Têm sido manifestadas preocupações de que Trump iria à cimeira esperando rendição incondicional e quando descobrisse não ser o caso precipitar-se-ia e reactivaria planos para um ataque à Coreia do Norte. Felizmente Trump parece ter sido algo corrigido em relação ao seu antigo falso optimismo (talvez por Pompeo?) e assim o choque será menor. Ele ainda pode sair, mas isso é cada vez mais improvável pois daria o mérito da paz a Kim.

A argumentação militar contra a guerra é tão forte quanto no ano passado (e a argumentação política ainda mais forte); como Mattis admitiu as consequências seriam "catastróficas". Contudo, Mattis e os militares não desejam a paz como indicam as suas observações no Diálogo de Shangrilá (ironicamente Singapura) – "Nosso objectivo permanece a completa, verificável e irreversível desnuclearização (CVID) da Península Coreana". A CVID é uma exigência consagrada dos EUA e apesar de poder representar uma lavagem cerebral ela tem sido utilizada habitualmente como uma exigência inaceitável para parar negociações. Isto provavelmente é o que Mattis quer, nem guerra nem paz mas a continuação do impasse que serve muito bem a política asiática dos EUA.

Bolton é uma questão. Ele não quer o impasse mas sim a crise. Ele tentou descarrilar a cimeira e quase teve êxito quando em 24 de Maio persuadiu Trump a cancelá-la. Além de sussurrar aos ouvidos de Trump o seu maior truque tem sido advogar uma "solução Líbia". O ponto chave acerca disso não foi a mecânica da desnuclearização, como é frequentemente sugerido, mas algo muito mais significativo. A secretária de Estado Condoleezza Rice persuadiu Kadhafi a desarmar-se com promessas de que os EUA não iriam derrubar seu governo. A secretária de Estado Hillary Clinton, com a aprovação de Obama, renegou aquelas promessas. Kadhafi foi brutalmente assassinado e a Líbia virtualmente destruída. Essa lição não foi perdida em Pyongyang. Ao levantá-la de forma tão destacada, Bolton tentava forçar a Coreia do Norte a se afastar da cimeira.

Parece ter sido Pompeo quem persuadiu Trump a retornar às conversações. Pompeo é mais difícil de decifrar do que Mattis (impasse) ou Bolton (crise). Diz-se que ele tem ambições de se tornar presidente de modo que um acordo com êxito como secretário de Estado lhe asseguraria um ponto de partida importante. Ao mesmo tempo, ele desejará que a culpa por qualquer fracasso ou por consequências não pretendidas seja atribuída a Trump, não a ele.

A desnuclearização aspiracional é a chave para a paz 

A administração Trump recusou o pedido de Moon Jae-in de comparecer à cimeira e participar na assinatura de um acordo. Chega de aliados.

Resta Kim Jon Un e sua equipe. O seu objectivo – empurrar Trump rumo à coexistência pacífica enquanto retém capacidade suficiente para deter um ataque dos EUA – é bastante claro. O que não se sabe é que êxito terá Kim ao negociar com Trump. Onde se comprometerá e onde traçará a linha?

"Desnuclearização da península coreana" é uma frase infeliz herdada dos dias de Kim Il Sung quando a mais provável potência nuclear na península coreana, além dos EUA, era a Coreia do Sul. Ela concentra a atenção sobre sintomas (dissuasão nuclear) ao invés de concentrá-la nas questões substantivas (a hostilidade política dos EUA). No entanto tem a virtude da imprecisão e da ambiguidade e isso pode ser a sua graça salvadora.

Se a cimeira está destinada a romper o impasse actual e abrir uma resolução no futuro ela precisa colocar a questão da desnuclearização dentro de uma ambígua cápsula do tempo aspiracional. O modelo aqui pode ser o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP). Assinado cinquenta anos atrás foi um acordo entre os Estados Nucleares Existentes (ENE) e o resto. Signatários não nucleares não desenvolveriam armas nucleares e em contrapartida os ENE os assistiriam com energia nuclear e, crucialmente, movimentar-se-iam rumo ao seu próprio desarmamento nuclear. Cinquenta anos depois ainda estamos à espera, ainda com esperança.

Se a desnuclearização norte coreana pode ser analogamente tornada aspiracional (e não vamos esquecer que a nuclearização dos EUA não está na agenda, embora Kim possa levantá-la) então progressos podem ser feitos. Isto pode ser suplementado por entusiasmos de relações publicas – a assinatura de sublimes declarações de paz, anúncios de normalização de relações diplomáticas, novos gestos tais como estender a moratória quanto a testes nucleares e de mísseis, até mesmo a abertura de um McDonald's em Pyongyang – mas a base essencial da dissuasão deve permanecer por enquanto. Os chineses têm uma política sábia de colocar problemas difíceis em adiamento para as gerações futuras resolverem. Algo como esta abordagem é exigida aqui. Se, ao longo do tempo, os EUA abandonarem sua política de hostilidade, aceitarem a coexistência pacífica, abandonarem a guerra económica e diplomática contra a Coreia do Norte, então a necessidade de dissuasão nuclear da Coreia do Norte se desvaneceria. Exactamente como isso ocorreria é difícil de prever, mesmo de encarar; os Estados Unidos afinal de conta têm uma má reputação quando se de trata de honrar acordos.

A questão chave é saber se Trump aceitará isto. Ele pode muito bem aceitar. Está interessado num Prémio Nobel (um bocado de bajulação aí, presidente Moon!) e no que aparece nos écrans de TV. Ele não está interessado nos pormenores, ou no texto geral. Ele veio directamente de uma desastrosa reunião do G7 no Canadá e pode estar particularmente ansioso para ter um triunfo em Singapura.

Além de Kim Jong Un, o actor chave aqui é Mike Pompeo, presidente à espera. Qual será o seu papel?

Paz no ar 

No entanto, mesmo que a cimeira se desfaça, muito progresso foi feito desde que o Discurso de Ano Novo de Kim Jong Un pôs o processo em andamento; a paz está no ar. As relações da Coreia do Norte com a China e a Rússia melhoraram muito e ambas estão cada vez mais relutantes em aceitar as exigências americanas de "pressão máxima". As relações inter-coreanas avançaram (a velocidade com que os dois líderes se uniram após o abortado cancelamento de Trump foi notável). Se os apoiantes de Moon Jae-in se saírem tão bem quanto o esperado nas eleições de 13 de junho, no que é encarado como um referendo sobre suas políticas, então a detente Norte-Sul ganhará um novo ímpeto.

A paz pode não estar ali na esquina mas os sinais são nitidamente esperançosos. 

11/Junho/2018

[*] Académico neo-zelandês, investigador da geopolítica asiática. Ensina em universidades da Grã-Bretanha, China, Coreia do Sul, Indonésia e Nova Zelândia. Escreveu North Korea: The Struggle against American Power (2005) e Crisis in Korea: America, China and the Risk of War (2011).

O original encontra-se em www.zoominkorea.org/... 

Este artigo encontra-se em https://resistir.info/ 

Trump ganha sempre


O acordo com Kim Jong-un pode ser mais uma exibição do que uma solução concretizada. Mas o que é evidente é que, em Singapura, Trump está a dizer aos governos europeus e aos seus concorrentes asiáticos que hoje é ele quem manda.

Francisco Louça | Expresso | opinião

Talvez o momento mais revelador da conferência de imprensa de Trump em Singapura, hoje de manhã, tenha sido quando falou na “perspetiva do negócio imobiliário” quanto à vontade de construir “condomínios nas lindas praias da Coreia do Norte”, “maravilhosa localização” entre os turistas da China e os da Coreia do Sul, cheios de dinheiro para irem ao exótico. Eu vi essas praias quando a TV coreana passava as imagens do lançamento dos mísseis, explicou o Presidente norte-americano. Isto é puro Trump: um empresário e não um estadista, que luta contra os concorrentes e promove negócios, mas só considera de modo instrumental a ordem política que resulta da sua ação. Ora, há muitos que o desprezam por isso, ele não faz parte da aristocracia da política, tem maus modos, é petulante, gaba-se do “meu instinto, o meu talento” para ler a alma de Kim Jong-un, é volúvel e incapaz – pois ganha precisamente por isso.

Trump arrisca muito no plano interno, embora esteja a despejar dinheiro para os ricos (um generoso sistema fiscal) e para os pobres (nota-se menos, mas ampliou alguns programas sociais com impacto), só porque juntou uma coligação de aventesmas e esses são os seus candidatos no outono deste ano. Mas arrisca pouco no plano internacional. Aí ganhou tudo até agora: rompeu o acordo com o Irão e Merkel prometeu resistir, mas as empresas europeias já fugiram, a começar pelas que tinham os maiores contratos, a Total e a Airbus; entrou em choque no G7 com todos os outros e Macron, que tinha apostado tudo nos abraços da Casa Branca, veio ufano espanejar um G6 sem os EUA, o que é pura fantasia; mudou a sua embaixada para Jerusalém e deu luz verde a Netanyahu para disparar, e assim ficamos.

E no que arrisca menos é na guerra comercial. Uma economia que tem o poder do dólar e que enfrenta quem tem grandes excedentes comerciais fica sempre a ganhar neste tipo de braço de ferro. Assim foi no passado com Nixon e com Reagan e assim será agora. A Alemanha, a UE e a China sofrerão os custos desta guerra e a economia norte-americana no seu todo só tem a ganhar (mesmo que algumas empresas de jeans e agroalimentar percam). Para mais, Trump tem o controlo do sistema internacional de pagamentos interbancários, pelo que pode usar sanções efetivas contra qualquer empresa, e tem o dólar: os EUA vão emitir dívida pública no valor de 2,4 biliões (triliões, na notação norte-americana) no próximo ano e meio, para financiar o seu gigantesco défice, e os chineses e europeus vão adquirir esses títulos de dívida. Ou seja, vão comprar dólares com os seus excedentes comerciais, para os emprestarem aos EUA, e ficam vulneráveis nos dois lados da operação. Se precisar de reduzir e restruturar a sua dívida, Trump pode forçar uma desvalorização do dólar; querendo reduzir o défice comercial, ameaça os seus concorrentes e consegue pressioná-los nas exportações e no financiamento. Vai sempre recuando na competição com a China, mas não é no imediato que esta potência ultrapassará os EUA, e, quando vier o tempo, já haverá outro inquilino na Casa Branca.

O acordo com Kim Jong-un pode ser mais uma exibição do que uma solução concretizada. Mas o que é evidente é que, em Singapura, Trump está a dizer aos governos europeus e aos seus concorrentes asiáticos que hoje é ele quem manda.

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