Na noite anterior, não nesta
passada madrugada de multidões, o DN passeou-se por um bairro que junta o belo
que sempre foi com a inquietude do que pode vir a ser. A Alfama compacta
do mês das festas ajuda-nos a perceber quanto todos a querem bem. Mas avisa
quanto ela precisa de ser tratada como um vaso de manjerico
Quem vem do Tejo, acostado o
barco, ou a imaginação, ao Campo das Cebolas, chega-se à fronteira sul de
Alfama e é para subir. Pela tradição, dos cruzados aos vadios, deveríamos ir
pelos túneis de acesso, a pé e por degraus, pelo Arco Escuro ou pelo Arco de
Jesus, que são arcos de volta abatida e pouco arejados. Desaconselho o caminho,
eu e os tempos, que são de festa e muita cerveja. É certo que algures, aqui e
ali, há propostas em avisos colados às paredes do bairro: "Atenção,
WC - 33, 2º esq. - ir primeiro ao balcão, obrigados." Mas são
solução, como se lê, com a obrigação de ir, primeiro, à barraquinha fronteira
de bebes. No mês das festas, tudo é máquina de fazer dinheiro: o bairro oferece
não só a causa da urgência mas também a condição de a resolver - do emborcar ao
urinar. Por estes dias, Alfama transforma-se num moto-contínuo do capitalismo.
Nem toda, porém. Se, como é
prudente, começarmos a subir por local largo e aberto, e que se chama,
lindamente, Largo do Chafariz de Dentro, encontramos também nichos de mercado
em crise. Os manjericos de Santo António não se vendem. Os turistas, locais e
outros, deitam olhares distraídos às mesas com o vaso, a planta côncava para a
mão convexa receber-lhe o bom cheiro, a flor de papel e o pequeno mastro
erguendo o estandarte com versos em quadra. Tudo comercialmente errado.
O demasiado mata a curiosidade,
pela mesma razão de que um cozido à portuguesa não é o nosso prato mais
apreciado entre estrangeiros. Além desse mais, há também o menos: os
gentis cravos, porque de papel, parecem coisa fanada comparados com o que os
paquistaneses, nas ruelas de Alfama, oferecem (embora também sem grande
êxito), de plástico colorido, transparente e animado por pilhas.
Seja como for, um casal bíblico,
David, vindo pela primeira vez às festas de Alfama, negro de Oeiras e filho de
guineenses, e Sara, a namorada lisboeta e branca, vendedores de manjericos sem
compradores, perguntam-se pela falta de êxito. Adiantam uma desculpa que acabam
de ouvir: "No avião... [gesto de mão]!", proibido, kaput, não entra,
disse-lhes uma inglesa, apontando o vaso. Isto de turistas é gente sem
entendimento para o efémero poético, não sabem que manjericos são como as
rosas, vivem o que se vive numa noite de verão.
Quadras em inglês e francês
talvez ajudasse... "Mas traduzir versos não é fácil!", lamenta-se
Sara. Desculpa cruel, quando outros, ali ao lado, anunciando "octopus
rice" e "liqueur: cherry", faturam traduções que fazem imensas
filas de apetite. Numa parede esfumada por grelhas vizinhas, um desenho do
magnífico cartoonista lisboeta Nuno Saraiva traduz para as festas modernas o
nosso santo medieval: Santo António faz um sermão a sardinhas... assadas e em
fatia de pão. E das janelas, nos primeiro e segundo andares de prédios que
foram de escritórios, tabuletas deslavadas de "despachantes
oficiais", antiga tradição do largo que se tornou moribunda com o fim das
fronteiras de UE, lembram que não há negócios eternos.
Já a rua de São Miguel fervilha
de gente. Tanta, que a velha igreja oferece os degraus da sua escadaria para
piquenique noturno. Os turistas sentam-se à volta de um trono de Santo António,
meio corpo de homem. O prato do tostão foi substituído por uma ânfora a
abarrotar de moedas, a maioria de 2 euros. As moedas estão à mão de semear (de
colher, para o caso) porque se confia em quem paga cada sardinha a 3 euros e o
chouriço corrente, só com o acrescento de ser assado, chega aos 10 euros.
Da varanda alta de um prédio,
frente à torre sineira da igreja, um jovem casal com vista de nababo saúda de
copo na mão. Os altifalantes pendurados nos candeeiros à moda antiga, presos à
fachada, debitam uma música que chega lá acima já cansada, o que é uma bênção.
Os dois da varanda são turistas, aves de arribação do famoso AirBnb, tribo que,
diz-se, debica nos direitos consuetudinários dos indígenas. Frente à porta
deles, a nº 12, no Beco de S. Miguel, há a foto conjunta, impressa sobre pedra,
de D. Fernanda e D. Emília, vizinhas, vivendo "porta com porta", como
diz a legenda. Ainda vivem assim? Alfama era um lugar de encontros que duravam
mais do que as folguedos de uma noite.
Saia-se, então, do beco, volte-se
à praça, subam-se as escadinhas - todas de nome "S. Miguel" -,
cruze-se uma menina que se chama Rita, que logo se apresenta: "Já desfilei
na marcha dos Olivais!", e posa com uma sardinha lisboeta, dessas da
propaganda. Duas amigas do bairro longínquo (agora a dimensão é lisboeta, não a
dos turistas), Marisa e Luena, acham que é necessário confirmar: "É
verdade, há dois anos, a Rita foi mesmo da marcha!". Quase lhes disse que
eu estava no estádio Santiago Bernabéu quando o Ronaldo foi recebido. E lá
foram as três, com os altifalantes cheio de Beatriz Costa em modinha antiga.
Desça-se levemente pela rua da
Adiça, já estamos na Cerca Moura, e não há turista que deixe de fotografar uma
casinha de campo, em plena capital de ex-Império. A porta protegida por uma
cobertura de telha está ladeada por azulejos com quadras e um outro com a foto
de uma cadelinha. Um deles: "Vizinhos do pé da porta/ Quando não sejam
leais/ Bom dia uma vez por dia/ Já são conversas demais." Num cotovelo da
rua, sentada na soleira da vizinha, Lurdes, de belos 79 anos e arrecadas nas
orelhas, espreita o interesse dos passantes pela sua casinha tão linda.
Lisboeta de outro bairro, Lurdes
veio para ali há 61 anos, Trouxe-a o marido que era de Alfama. Mesmo destino o
de Judite, 74 anos e 56 de Alfama. Vizinhas que se sentam juntas, são leais.
Estiveram para se perder há cinco anos, quando Judite e o marido tiveram de
sair por ordem do senhorio. Mas arranjaram casa perto e as duas lá continuam
conversando. "Era bairro de varinas e estivadores, hoje há só uma banca de
peixe em toda Alfama", diz uma. "Tenho de ir à Morais Soares, ao
Pingo Doce", confirma a outra. O azulejo da cadela, era de Keit, que se
foi há 15 anos. Esse, o azulejo, espera-se que fique sempre na paisagem dos bairro.
Mas muita coisa já partiu, como a
farmácia na Rua de São João da Praça. A vidraça ainda escreve "Farmácia
Central" e sobre a sua portada, no nº 26, azulejos lembram "Botica do
A.J. Pinto". Estava de serviço quando a olhei: um mongol de carrapito e a sua
amiga Elisa, mulata de Dalatando, Angola, vendem pinturas feitas de "café
e vinho tinto." Fernando Pessoa, o conhecido poeta, é um dos retratados.
Regresso, para adeus por uma
noite, ao Largo Chafariz de Dentro. David e Sara ainda não tinham resolvido o
problema do sucesso. Mas ele ofereceu-lhe um manjerico do vasto stock de
invendidos - e ela corou.
Ferreira Fernandes | Diário de
Notícias | Foto Pedro Rocha/Global
Imagens
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