As vivências e os efeitos
traumáticos da guerra colonial continuam a ser um assunto tabu em Portugal. Contra
o silêncio, o psicólogo Vasco Luís Curado acaba de lançar um livro com memórias
de horror, sofrimento e perda.
Há poucos ex-combatentes
portugueses que aceitam falar dos traumas da guerra nas antigas colónias em
África, nomeadamente nas frentes de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. São
memórias de momentos traumáticos, que muitos evitam recordar ou tornar público.
Mas Vasco Bastos, hoje com 71 anos de idade, fá-lo sem tabu.
O soldado do então Batalhão 2909
da Companhia de Cavalaria 2690 revela à DW África um dos mais dramáticos
acontecimentos ocorridos durante a missão que cumpriu no norte de Angola, na
região dos Dembos, província do Bengo, entre 1970 e 1972.
"Fomos apanhados em várias
emboscadas e [houve] uma que me traumatizou, a mim e não só", conta o
ex-combatente. "Íamos a passar, entretanto fomos apanhados por uma mina
que estava num trilho. O rapaz, que era ali do Fundão [município do distrito de
Castelo Branco, centro de Portugal], passou também, mas ao passar ele pisou
aquilo... Desapareceu!"
"Era no meio de uma mata
densa, durante a noite", explica emocionado. "Aquilo foi um
traumatismo danado. No fundo da mata densa, não tínhamos nada! E tivemos que andar
a apanhar os bocadinhos dele para depois o transportar até a uma clareira.
Apanhar os bocados do corpo do homem, senhor…!"
Um assunto tabu
Hoje, passados mais de 40 anos,
Vasco Bastos é um dos antigos militares do exército colonial português assistido
social e psicologicamente pela APOIAR - Associação de Apoio aos Ex-combatentes
Vítimas do Stress de Guerra, criada em 1994.
De 15 em 15 dias, participa numa
sessão de terapia de ajuda mútua.
Graças ao apoio prestado pela
associação, a sua vida modificou e tem sabido gerir os efeitos dos traumas da
guerra, que também afetaram familiares. No entanto, confessa, as vivências
daquele período negro não se dissipam com facilidade.
"Para mim, está sempre
presente. Ainda cá está e há-de morrer comigo", diz Vasco Bastos.
Na qualidade de psicólogo
clínico, Vasco Luís Curado - português nascido em Angola e que viajou de Luanda
para Lisboa na ponte aérea de 1975 - recolheu dos seus pacientes, sob
anonimato, várias memórias estilhaçadas sobre a guerra colonial. Confirma que
há ainda muitas marcas de traumas da guerra.
"Há, mas não em todos",
afirma. "A maioria dos estudos aponta que 15% dos combatentes terão
sintomas de stress pós-traumático ou alguma alteração psicológica provocada por
acontecimentos traumáticos de guerra. Portanto, não são sequer a maioria."
Ao todo, nos 13 anos de guerra, quase um milhão de portugueses foram
mobilizados.
Por várias razões, a guerra
colonial ainda constitui um tabu na sociedade portuguesa, reconhece Luís
Curado. "Porque o próprio combatente tem relutância em se expor. Não sente
que a população em geral o compreenda", diz o psicólogo. "A guerra ou
o serviço militar obrigatório em cenário de guerra retira o indivíduo do seu
meio natural de vida, e as experiências que ele ali acumula só podem ser
partilhadas pelos camaradas, por outros que passaram pelo mesmo. Agora, a
sociedade em geral tem dificuldade em lidar com isso."
Brandos costumes?
"Obviamente que não"
A vontade que a sociedade tem de
esquecer o passado colonial e a violência usada nesse passado é outro fator
apontado pelo psicólogo. "Porque, apesar de ter havido [a revolução do] 25
de Abril, ainda persiste entre nós aquela mentira salazarista de que somos um
povo de brandos costumes. Obviamente que não somos. Como é que se constrói um
Império que dura séculos em vários continentes com brandura?! Não é com
brandura que isso acontece. É com violência."
"Como nós não queremos olhar
para a nossa violência, a violência portuguesa está recalcada", acrescenta
Luís Curado. "Porque queremos formar de nós uma ideia de brandura, de
colonizador especial, é inconveniente que estes combatentes nos venham
relembrar a violência que existiu no Império e na manutenção das
colónias."
Contra o silêncio, Luís Curado
decidiu dar voz a 48 soldados portugueses que combateram em Angola,
Guiné-Bissau e Moçambique. São relatos que revelam diferentes episódios,
tormentas e experiências, vividos entre 1961 e 1974, agora narrados no livro
"Declarações de Guerra - Histórias em carne viva da Guerra Colonial".
Desta forma, o autor pretende
contribuir "para um reconhecimento impedido por divisões profundas na
sociedade portuguesa, mais interessada na integração na Europa do que no seu
passado colonial".
João Carlos (Lisboa) | Deutsche
Welle
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