domingo, 14 de abril de 2019

França | Assembleia dos coletes amarelos: "Será preciso sair do capitalismo"


Rémy Herrera

O "Acto 21" dos coletes amarelos desenrolou-se, como desde há cinco meses, no sábado 6 de Abril. Mas em paralelo, de 5 a 7, efectuou-se em Saint-Nazaire, no Loire-Atlantique, um acontecimento que certamente influenciará as próximas lutas no país: a segunda Assembleia das assembleias dos coletes amarelo. Este é o núcleo central do movimento. A primeira verificou-se na Meuse, em Commercy, no fim de Janeiro, e havia reunido 70 delegações. Cerca de 200 compareceram em Saint-Nazaire, ou seja, cerca de 800 delegados estavam presentes (dois representantes mais dois observadores por delegação). E isto sem contar os voluntários, os jornalistas, os curiosos. Estes delegados haviam sido mandatados por cerca de 10 mil coletes amarelos, mobilizados em centenas de pontos de luta: rotundas, praças, portagens, mas também, quando as forças da ordem os desalojaram, em múltiplos lugares muito mais descentrados e menos visíveis (até mesmo, por vezes, em cabanas ao acaso). Em toda a França, a resistência. 

 
Havia, parece, uma "ameaça contra a ordem pública". Foi o pretexto utilizado pelo maire de Saint-Nazaire (David Samzun, "socialista", como ele ainda se define) para justificar a sua recusa em emprestar um local aos organizadores. Os eleitos das comunas vizinhas fizeram o mesmo e, finalmente, nenhuma sala foi posta à sua disposição. Então os coletes amarelos encontraram-se todas e todos na "sua Casa": a "Casa do Povo", antiga agência do Polo Emprego (Pôle Emploi) que eles ocupam desde Novembro último com camaradas sindicalistas. Uma "requisição cidadã", na pura tradição histórica dos clubes de sans-culottes de 1789, das bolsas do trabalho dos operários do princípio do século XX, das fábricas em greve da Frente Popular de 1936. Alguns trabalhos de arranjos e muita solidariedade permitiram-lhes reunirem-se para se reencontrarem, para se dar coragem. Para debater e para melhor se bater. E para se organizarem.

Este encontro fora inicialmente previsto para os últimos dias de Março, mas as dificuldades materiais para colmatar os fins de meios da maior parte dos participantes – somadas àquelas da logística – levaram a atrasá-la alguns dias. No princípio do mês, uma vez recebido o pagamento, aquelas e aqueles que não se deitam sobre ouro respiram um pouco melhor. Alguns queiram assistir à mesma, mas a afluência obriga os organizadores a encerrar as inscrições. Outros, ainda mais numerosos, não puderam vir pela impossibilidade de pagar a sua deslocação. Nem contar com a generosidade dos amigos, com meios risíveis. Contar só com as suas próprias forças. Mas em 1864, o primeiro considerando dos estatutos da Associação Internacional dos Trabalhadores não dizia que "a emancipação da classe operária deve ser a obra dos próprios trabalhadores"? Quando se é colete amarelo, não se tem medo da lama, da chuva, nem dos bolsos vazios.

Durante três dias, as discussões foram sérias. Muitas vezes difíceis, tempestuosas, caóticas... À imagem da mobilização iniciada em meados de Novembro, elas revelaram a determinação dos coletes amarelos, sua oposição resoluta, tenaz, a esta sociedade de desigualdades e de injustiça simbolizada pelo presidente Macron, sua condenação unânime à violências das repressões policiais de que são vítimas, sua vontade teimosa de colocar a democracia directa no centro do movimento, e pensar e reinventar formas autênticas desta última, desde a base, sem líder auto-proclamado ou chefe recuperado, de encontrar o "equilíbrio entre espontaneidade e organização". Este é o colectivo que vive, acima de tudo, na "horizontalidade". E a manutenção da unidade de um movimento que reúne contra os riscos de divisão e fractura, que solda um povo apesar de todas as suas diferenças (de percepções políticas, por vezes de origens sociais), que continua também a beneficiar de uma boa imagem e de um forte apoio junto à opinião pública, que faz as lutas avançarem.

Visíveis na Internet, os debates foram estruturados em grupos de trabalho temáticos: os modos de acção do movimento, a comunicação interna e externa, a formulação das reivindicações, os pontos de convergência com os sindicatos e outros colectivos, o futuro da mobilização... Finalmente, a sessão plenária apresenta as sínteses das discussões de comissões (elaboradas durante a noite) e um texto final. Um texto particularmente lúcido e radical. Um texto que será submetido posteriormente ao voto pelas diferentes assembleias locais de coletes amarelos. O que diz este texto?

Coisas essenciais, na realidade. Diz que as reivindicações devem ser concentradas sobre as altas de salários, de pensões de reforma e dos mínimos sociais, com uma atenção especial concedida aos nove milhões de pessoas que vivem abaixo do patamar de pobreza no país. Diz que é preciso reforçar os serviços públicos para todas e todos. Isto já é fundamental.

Este texto diz "não" à violência imposta por uma minoria de privilegiados contra todo um povo; "sim" à anulação das penas dos prisioneiros e condenados do movimento dos coletes amarelos. "As violências policiais são um acto de intimidação política, elas procuram aterrorizar-nos para nos impedir de agir. A repressão judiciária vem a seguir para abafar o movimento. (...) O que nós vivemos hoje é o quotidiano dos bairros populares desde há décadas".

Ele declara ainda sua rejeição da "trapaça do Grande Debate nacional" pretendido e manipulado pelo presidente Macron, assim como sua recusa em participar nas eleições europeias no próximo mês: "a rua nos une, as eleições nos dividem". "E na luta que se construirá a Europa dos povos. (...) É conduzindo uma luta coordenada contra nossos exploradores que lançaremos as bases de uma entente fraternal entre os povos da Europa e de alhures".

Neste 7 de Abril, o apelo da Assembleia das assembleias dos coletes amarelos de Saint-Nazaire diz também e sobretudo que "para melhorar nossas condições de vida, (...) reconstruir nossos direitos e liberdade, (...) fazer desaparecer as formas de desigualdades, de injustiça, de discriminações", para que finalmente se alcance "a solidariedade e a dignidade", será preciso mudar de sistema: "conscientes de que temos de combater um sistema global, consideramos que será preciso sair do capitalismo". E para isso, "colocar o conjunto das cidadãs e cidadãos em ordem de batalha contra este sistema".

Quanto à mensagem dirigida aos ecologistas, é uma limpidez total e muito progressista. Será que a ouvirão? Seria bom. Uma vez que a urgência ambiental está aí, verifica-se indispensável a convergência do combate pela ecologia com as lutas pelo progresso social. E "a mesma lógica de exploração infinita do capitalismo que destrói os seres humanos e a vida sobre a Terra. A fim de proteger o ambiente, será preciso mudar um sistema prejudicial aos humanos e à ecologia". Aqui está, para quem tinha dúvida sobre a orientação à esquerda do movimento...

Tais orientações e formulações não foram fáceis de fazer emergir. Alguns julgaram-nas prematuras. Outros temiam que o movimento ficasse dogmatizado, doutrinado e endurecesse demasiado. É claro que ainda estamos muito longe de uma saída do sistema capitalista. Mas já é importante saber contra o que precisamos combater. Pois os coletes amarelos, reunidos no meio da multidão e do brouahaha desta Casa do Povo "pela honra dos trabalhadores e por um mundo melhor", pelo menos compreenderam e exprimiram claramente o que mais ninguém ou quase ninguém das nossas altas direcções partidárias e sindicais, entre nossos artistas comprometidos ou nossos grandes intelectuais, nem compreende nem exprime. Sim, para esperar construir um "mundo de liberdade, igualdade e fraternidade", será preciso sair do capitalismo. Certamente. Sem isso, nada é possível. É por aqui que começa qualquer programa de alternativa verdadeira. Pois os coletes amarelos, levantados contra o insuportável, não mais deixarão de fazê-lo. O século XXI não será o fim da história; será o arranque de uma nova civilização. Pós-capitalista. 

11/Abril/2019

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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