Cargas de pancada por nada, 40
tiros num carro "por engano", esquadras inteiras a mentir em tribunal. E isto no 5º
país mais pacífico do mundo. Que faria se não fosse.
Fernanda Câncio | Diário
de Notícias | opinião
Vítor Bárcia, que terá hoje 30
anos, é agente da PSP. Há um ano, foi condenado a três meses, convertidos em multa de 680
euros, por ter dado, no meio da rua e sem razão, uma bofetada num jovem
cidadão. Foi pelo menos isso que o Tribunal da Amadora deu como provado: que em
2016 ele e outros três agentes da esquadra da Amadora iam na rua, viram um
homem que passava de bicicleta atirar uma beata para o chão, o mandaram parar e
Bárcia, "sem que qualquer motivo o justificasse, desferiu uma chapada, de
mão aberta, na face esquerda" do cidadão.
Apesar de todos os polícias terem
sustentado em juízo que o gesto de Bárcia fora, por assim dizer, "em
legítima defesa", por o jovem agredido, "numa atitude agressiva e
provocatória", ter "encostado a sua cabeça à do agente, tendo este
último empurrado o corpo daquele na zona da cara, o que fez apenas com o
intuito de salvaguardar a sua integridade física", o tribunal
considerou que mentiam: "Uma certeza exagerada, como pormenores muito
coincidentes, num relato algo forçado e, por isso, próprio de quem quer
convencer de uma realidade que não ocorreu. (...) A postura corporal, os
silêncios e concreta verbalização do discurso apresentado pelas testemunhas de
defesa não foi de molde a convencer o tribunal da realidade por si relatada."
Temos portanto um tribunal que
afirma preto no branco que quatro polícias mentiram em juízo - sem que daí,
aparentemente, advenha qualquer consequência. Aliás, nem sequer, a crer na
decisão, serviu o processo para que o condenado demonstrasse arrependimento em
relação ao crime cometido: o tribunal lamenta isso mesmo, considerando que os
seus atos são "inaceitáveis" e "causadores de alarme social".
Certo é que nem a sentença foi
muito pesada nem os atos implicaram até agora consequências de maior para
Bárcia, que já em 2015, de acordo com outra decisão do Tribunal da Amadora
(esta da semana que passou), tinha, com colegas -- não se sabe se os mesmos --,
dado um arraial de porrada num homem de 36 anos.
O Público contou a história na sexta-feira: Bárcia e colegas da
esquadra de Alfragide - tristemente famosa pelo processo em que a maioria dos
seus efetivos foram acusados de tortura, sequestro e discriminação racial, e
cujos acontecimentos tiveram lugar apenas dois meses antes do caso vertente --,
fizeram uma rusga a um restaurante. O tribunal deu como provado que mandaram os
clientes sair com a ordem "tudo lá para fora, caralho". Tendo um dos
clientes manifestado desagrado pelos modos, encostaram-no a uma parede para o
revistar. Tendo este comentado que se tratava de "uma atitude de
broncos" e que eram uma "cambada de burgessos", algemaram-no e
levaram-no preso.
Logo na carrinha de transporte
Bárcia e mais agentes começaram a agredi-lo com murros e pontapés. Chegados à
esquadra, um agente - que não foi identificado -- levou-o para a casa de banho
e mandou-o tirar a roupa e, nu, fazer flexões. A seguir Bárcia e mais agentes
bateram-lhe com os cassetetes. A tareia durou até que o advogado do homem
chegou. Ficou com trauma na face e nos ossos do nariz, edema facial e hematomas
e escoriações no corpo.
Apesar de claramente todos os
agentes presentes terem participado ou sido cúmplices dos crimes - o tribunal
fala de "conjugação de esforços com os outros agentes" - pelos vistos
só Bárcia foi acusado e condenado. Apesar do óbvio tratamento degradante a que
a vítima foi submetida, a acusação não foi além das ofensas à integridade
física. E não parece ter existido imputação de denúncia caluniosa e
falsificação de documento, apesar de ser fácil perceber que o auto de notícia
da detenção só podia ser uma obra de ficção: o homem espancado foi a tribunal
acusado de três crimes de ofensa à integridade física qualificada e dois de
injúrias agravadas (num caso e noutro, a agravação é garantida pelo facto de as
alegadas vítimas serem polícias), tendo sido absolvido de tudo menos das
injúrias.
Temos pois aqui mais um caso não
só de brutalidade policial por parte de vários elementos de uma esquadra mas
também de mentira concertada, sem que desses factos resulte qualquer consequência
ou ilação: o único condenado é mais uma vez Bárcia, que levou uma pena de dois
anos e oito meses (suspensa, pois claro) e está obrigado a pagar dez mil euros
ao ofendido. Decisões das quais naturalmente irá recorrer e em relação às quais
até agora, de acordo com o Público, a PSP não terá reagido.
Há que concluir que para a
justiça portuguesa, mesmo quando se atreve a condenar polícias, está fora de
questão a "prevenção geral" - que neste caso implicaria não só
sinalizar de forma veemente a inadmissibilidade da brutalidade policial como
penalizar a cultura de encobrimento e mentira que resulta provada nestes e
noutros casos.
Tão fora de questão que noutro
caso em julgamento, o de agressões perpetradas por agentes da PSP há dois anos em pleno Tribunal da
Amadora, o procurador encarregado do caso disse, nas alegações finais, que Hugo
Correia, um subcomissário da esquadra da Brandoa que é também acusado de ter
martelado o auto de notícia acusando a vítima de ter sido o agressor, tem
"diminuição de culpa" porque o fez "em autodefesa".
Trata-se então de um conceito
alargado, especificamente para polícias, de "legítima defesa", que
inclui até a mentira. Aquilo que para qualquer cidadão será uma agravante -
mentir e acusar outros para se safar - pelos vistos no caso de um agente da
autoridade pode ser atenuante.
Não pode pois surpreender-nos
saber que a morte de Ivanice Costa, em novembro de 2017, atingida por um dos
mais de 40 tiros disparados por um grupo de agentes da PSP contra o carro em
que seguia no lugar do pendura, foi considerada "legítima defesa" apesar de
nem ela nem o condutor do veículo estarem armados. Diz a investigação que o
condutor desobedeceu à ordem de paragem e "fez marcha-atrás aos
ziguezagues na direção dos agentes." E que estes, apesar de a marcha ser
para trás e na direção dos agentes, terão, de acordo com o relatório da
Inspeção-Geral da Administração Interna sobre o caso (que também os iliba)
disparado "pela parte da frente e lateral do veículo".
Há de haver uma explicação lógica
para isso, como para o facto de se dispararem mais de 40 tiros sobre um carro
por "se achar" - foi a própria PSP que o admitiu - que se tratava do
veículo usado por assaltantes de caixas multibanco na Margem Sul, os quais
tinham conseguido escapar a uma perseguição policial nessa noite.
Como há de haver uma explicação
lógica para a Direção Nacional da PSP ter instaurado inquéritos disciplinares
por excesso de uso da força a dois agentes que intervieram no Bairro da Jamaica
a 20 de janeiro e em relação aos quais a mesma Direção Nacional certificou, no dia dos acontecimentos, que a equipa
"teve de usar da força estritamente necessária para por cobro às
agressões."
Há explicações para tudo, até para
o facto de a PSP nunca se explicar. E para nada mudar.
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